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Como nasceram os desfiles de moda: uma história de sedução

Começaram por servir para vender roupa e hoje assumem-se como um espectáculo e até lançam perfumes. A história dos desfiles de moda mostra como o desejo é o melhor marketing.

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Ao raiar do século XX, o costureiro francês Paul Poiret teve uma ideia que à primeira parecia não fazer sentido nenhum: em vez de pôr senhoras com a estatura física das suas clientes a desfilar à frente delas para que estas escolhessem o que comprar, pagou a manequins norte-americanas altas, atléticas e nos caminhos da emancipação para o fazer. As modelos não tinham nada a ver com a sua clientela, que se sentiu indignada, mas ao mesmo tempo toda a roupa parecia mais apetecível, ao ponto de se tornar símbolo de uma mulher moderna. Depois da onda de contestação, as clientes acabaram por aceitar a estratégia e, mais do que isso, começaram a desejar aquela roupa como quem deseja sempre tornar o seu eu melhor, mais atraente, eventualmente outro. Que golpe baixo, senhor Poiret.

Com a ideia de Paul Poiret subiu à passerelle — ou ao espaço que a antecedeu — o desejo e a contemplação de alguma coisa a que se aspira, em vez do anterior olhar sobre a mulher quotidiana que qualquer uma das suas clientes já era. “Ele faz uma tournée pelos Estados Unidos e é um novo paradigma entre os vários que as casas de moda e de alta-costura têm vindo a sofrer”, diz ao Observador Paulo Morais-Alexandre, professor de História da Moda na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC). Mas olho vivo: do século XIX aos dias de hoje, a história dos desfiles de moda não se faz apenas de atração por essas “maravilhosas esculturas vivas que são as roupas”, como diz o professor. Não esqueçamos a publicidade, o marketing e o dinheiro que comandam esta indústria de aspirações.

Kate Moss e outras modelos em 1998, num desfile da Chanel. © AFP/Getty Images

No princípio eram as vendas. Se hoje se olharem os desfiles de moda será desafiante pensar numa realidade em que os salões onde aconteciam eram ainda mais exclusivos e a roupa 100% usável. A discussão entre uma moda de autor e outra, dita “vestível”, não seria uma questão quando, no século XIX, o objetivo de uma passagem de modelos era fazer com que as clientes conhecessem as roupas, se enamorassem delas e as comprassem. Como ir a uma loja, mas com todo o elã de um evento social. Estas festas incluíam normalmente manequins que se passeavam com as criações enquanto tomavam um chá e interagiam com os convidados. Mas isto só depois de a alta-costura se deixar fundar pelo britânico Charles Frederik Worth (1825-1895), o primeiro costureiro, defende Morais-Alexandre.

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Frederik Worth significa uma inversão na forma como se olha para a roupa. “As mulheres queriam ser vestidas por ele. Portanto a noção de alta-costura tem a ver já não com a modista que vai a casa da pessoa, mas a pessoa que vai a casa do costureiro.”

Worth significa uma inversão na forma como se olha para a roupa e necessariamente como se deseja. “As mulheres queriam ser vestidas por ele. Portanto a noção de alta-costura tem a ver já não com a modista que vai a casa da pessoa, mas a pessoa que vai a casa do costureiro”, continua o professor. É também ele que começa a contratar mulheres para vestirem as roupas — chamam-lhes manequins, tal como os objetos à escala do corpo humano onde encaixam as roupas. Evidencia-se esta particularidade curiosa que faz da roupa uma escultura viva: “Não tem comparação ver uma peça de roupa num cabide ou a movimentar-se em cima de uma pessoa, com tridimensionalidade.” A roupa tem de ser experimentada, tem de ver-se em movimento, em ação, e ver uma modelo com um coordenado é imaginarmo-nos com ele. O problema é quando a modelo não nos representa. “O Poiret faz essa maldade, vai haver ali um engano: eu tenho um 1,40 metros de altura e sou gorda, mas se eu usar este vestido fico como a mais bela das manequins, com 1,80 metros, bela e deslumbrante.”

Alta-costura que vende perfumes

Entre a segunda metade do século XIX de Worth, o início do século XX de Poiret e a segunda metade do século XX muita coisa mudou na vida quotidiana das mulheres e na moda feminina — tornou-se prática, leve e libertadora do corpo que, a pouco e pouco, se foi despartilhando. Com menos dinheiro durante as guerras mundiais (entre 1945 e 46 foi organizado em França o Théâtre de la Mode, uma exposição de manequins e coordenados pelos melhores designers de então para fazer renascer a cena parisiense), o paradigma manteve-se no que toca às passagens de modelos e até com alguma formalidade no andar, como aconteceu nos anos 60, por exemplo. Enquanto Twiggy é a cara da nova rapariga londrina, descontraída e divertida, a acelerar ao passo das revoluções sociais, nos desfiles das grandes maisons mantêm-se os cabelos imaculados e os passos lentos pelas passadeiras, os movimentos com calma para que a primeira fila possa apreciar ao pormenor.

Twiggy a desfilar em Londres, em maio de 1967. © McKeown/Express/Getty Images

É em meados do século que se dá outra alteração estrutural na forma da alta-costura faturar e portanto na forma de apresentar o seu produto: o negócio das grandes casas de costura passa a ser a venda de acessórios e cosméticos — um tendência criada com o perfume Chanel nº 5, aponta Paulo Morais-Alexandre. Os eventos de moda tornam-se assim momentos de publicidade: a sua motivação deixa de ser vender peças de roupa e passa a ser criar atenção e desejo em torno da marca.

“Quando a Renault está num grande prémio durante duas horas, as pessoas estão a ter duas horas de publicidade de Renault e a ouvir que a Renault vai à frente. Isso ecoa muito mais do que qualquer outra publicidade ou anúncio — nós até mudamos de canal, se for preciso”, exemplifica o professor. Depois, é pôr a sedução a trabalhar: não se tem dinheiro para um vestido Dior mas tem-se dinheiro para um baton; não há para um casaco Chanel, mas há para uma mala ou uns óculos. Os desfiles passam a ser máquinas de divulgação ao serem reproduzidos nas revistas femininas e de moda a cada estação e tornam-se cada vez mais espetaculares, em busca dessa atenção da imprensa.

Modelos no desfile de primavera/verão 1988 de Sonia Rykiel. © Pierre Guillaud/AFP/Getty Images

A reiteração dos desfiles como momentos imprescindíveis à manutenção do entusiasmo do público e à sobrevivência das marcas está visível na transformação das passerelles em espetáculos teatrais — um paradigma que Paulo Morais-Alexandre diz não ter terminado ainda. A substituição de míticos costureiros como Hupert de Givenchy por jovens criativos e com uma noção mais global do que é um desfile, como John Galliano e Alexander McQueen, mostra o caminho que estes eventos — aqui poder-se-á dizer espetáculos com toda a propriedade — seguiram. McQueen em particular assumiu por diversas vezes a passerelle como o lugar ideal para aquilo que só acontece uma vez na vida: as roupas ficam, mas o ambiente musical, as expressões de desafio ou de horror nas caras dos modelos, ou até o anel de fogo da Semana da Moda de Londres no outono/inverno de 1998/99 só acontecem uma vez. No seu caso, o choque inesperado entre o grotesco das cenas e o belo que se espera da passerelle é o grande motivo do bulício à volta do evento.

Uma modelo no centro de um anel de fogo no final do desfile de outono/inverno 1998 de Alexander McQueen. © AFP/Getty Images

A curta vida das supermodelos

A par do fenómeno dos desfiles a caminho das performances, um par de raparigas começa a tomar conta das semanas da moda, correndo-se o risco de não se falar tanto da roupa que vestem como delas. Modelos como Naomi Campbell, Cindy Crawford, Linda Evangelista, Christy Turlington ou Claudia Schiffer não faziam apenas desfilar roupas, faziam também as publicidades das casas de alta-costura e as capas de qualquer Vogue. Não são tanto as roupas que usam que interessam, são elas. Em 1991, Naomi Campbell, Christy Turlington, Linda Evangelista e Cindy Crawford fecham o desfile da Versace — , ainda com Gianni Versace no comando –, a cantar o hit de George Michael “Freedom! ‘90”, a desfilar quase dançando, e marcam um ponto sem retorno: estão as quatro em palco numa clara referência ao videoclip onde também entram, um piscar de olho capitalizado pela marca, mas que nada tem a ver com ela. Começa a falar-se das suas vidas, entram na corrida os paparazzi, e o nome das roupas que vestem é acessório. Nos anos 90 não passava uma semana sem que se usasse a expressão supermodelo — e agora o que é feito dela?

“O primeiro a ver isso é o homem mais inteligente que há na moda”, diz Paulo Morais-Alexandre. “O Karl Lagerfeld é o homem que acaba com as supermodelos. Sempre teve as suas e quis que a mulher Chanel não fosse igual às outras todas. Depois percebe que a chamada de atenção para as supermodelos está a tirar a atenção fulcral da moda. Nos dias de hoje sabemos quem são as modelos, mas elas já não têm a força que tinham na década de 80 e 90”, defende o professor.

Se “no final dos anos 70 os desfiles ganham visibilidade pública e os anos 80 são a afirmação categórica do desfile de moda como um grande espetáculo”, segundo Bárbara Coutinho, diretora do Museu do Design e da Moda (MUDE), no final dos anos 90 algumas marcas tornam-se minimais na forma de apresentar as suas coleções, “sem distrações, para jornalistas e compradores”, considera Paulo Gomes, produtor de moda que acompanhou a evolução da profissão em Portugal desde os anos 80, época do nascimento da indústria no país. No entanto, “o impasse comercial fez com que voltasse uma noção de espetáculo em que a coleção é quase o guarda-roupa do espetáculo, procura dar-se emoção”, diz.

Vingaram portanto os desfiles espetaculares e teatrais. Ou aqueles que deixam a audiência de boca aberta com os cenários que constroem: depois da Fendi ter feito da muralha da China passerelle em 2007 e ter continuado a ronda das maravilhas com a Fonte de Trevi em 2016, ou de a Chanel ter montado um supermercado no outono/inverno de 2014-15 e ter ido a Cuba pouco depois de Obama, o céu é o limite.

Do supermercado ao aeroporto, os cenários mais originais da Chanel

Há “génios de marketing” envolvidos nestas operações que colocam quem tiver mais seguidores na primeira fila e onde todas as formas de fazer desfiles podem, hoje, coexistir, considera o professor da ESTC. No entanto, Morais-Alexandre acaba por recuar nesta posição que parece ter a estratégia de vendas como primordial, colocando o enfoque no designer. “Acho que não se pode dissociar o desfile do criador. É como uma peça de teatro, em que não se pode dissociar o trabalho dramatúrgico da sua transformação em espetáculo. Efetivamente a passagem é a transformação de uma peça de roupa (como numa peça de teatro) através de uma dramaturgia do figurino e depois a sua transformação em espetáculo. Obviamente que o criador tem um papel fundamental em dizer como quer que a sua peça de roupa seja mostrada, aí não há marketing que valha.”

O desfile da Fendi na Fonte di Trevi, em Roma. © Getty Images

Um coliseu, seis mil pessoas e Ana Salazar

Paulo Morais-Alexandre afirma que “há um desejo de estar presente que não pode vulgarizar-se” e daí a exclusividade que se liga sempre aos desfiles — o ritual de ficar à porta, à espera, de não saber se se vai entrar e a desejada primeira fila. Houve experiências no passado que puseram à prova este elitismo: no período entre as guerras, Elsa Schiaparelli vai aos Estados Unidos e enche pavilhões com milhares de pessoas que a querem ouvir falar sobre a sua roupa; em 1998 Yves Saint Laurent celebra 40 anos de profissão com uma desfile-retrospetiva na final da Taça do Mundo. E que dizer das seis mil pessoas que encheram o Coliseu dos Recreios para ver o “acontecimento de moda” de Ana Salazar, nos anos 80, em Lisboa?

Os contextos internacional e o português são diferentes e qualquer comparação levanta questões. A indústria criativa da moda “é muito mais recente do que em França, por exemplo, onde há um reconhecimento do valor económico e cultural da moda. Naturalmente o investimento e impacto mediático é outro”, avisa Bárbara Coutinho. Nos anos 1980 em que tudo começa a acontecer efervescentemente em Lisboa, Ana Salazar é pioneira ao fazer desfiles de moda muito performativos em salas públicas, como o Coliseu ou a Sociedade de Geografia. “Tem o entendimento de que o desfile de moda é um espetáculo. E fá-lo para o público em geral e não apenas para potenciais compradores ou jornalistas. Ela diz inclusivamente que a determinada altura o desfile já não eram só as roupas que se estavam a passar, era também o público que se tinha arranjado e preparado”, conta Bárbara Coutinho.

“A Ana Salazar tem o entendimento de que o desfile de moda é um espetáculo. E fá-lo para o público em geral e não apenas para potenciais compradores ou jornalistas. Ela diz inclusivamente que a determinada altura o desfile já não eram só as roupas que se estavam a passar, era também o público que se tinha arranjado e preparado.”
Bárbara Coutinho, diretora do Museu do Design e da Moda

Até aí havia desfiles de moda no país mas sempre como eventos ocasionais, sem a ideia do designer de moda: “Eram sempre um misto de alfaiates e alguém que ia a Paris buscar os modelos para fazerem apresentações nos seus próprios ateliers”, conta a diretora do MUDE. O caminho para a profissionalização foi feito por apaixonados pela área que, como Ana Salazar, traziam algumas ideias de como se fazia nas semanas da moda internacionais. Paulo Gomes começou por ser editor de moda do Independente e assim tomou contacto com o modo de fazer parisiense, londrino ou milanês. Depois veio adaptar algumas ideias na ModaLisboa, num contexto onde “já havia desfiles, como é óbvio, mas não tinham periodicidade, não havia equipas formadas. Havia a Ana Salazar que fazia uns espetáculos de encher o Coliseu, de 40 ou 50 minutos, vinha já com um outro olhar de fora”.

No que um desfile tem de espetáculo performativo, público e total, as Manobras de Maio, a partir de 1986, são um marco importante em Portugal, com alunos de escolas de arte a inscreverem-se com os seus projetos para serem apresentados ao ar livre no Bairro Alto. Aí começaram Filipe Faísca, Eduarda Abbondanza, José António Tenente, nomes que se vão reencontrar — se é que alguma vez deixaram de se ver nesta Lisboa pequena — na ModaLisboa no início dos anos 90, o evento impulsionador e profissionalizante da moda em Portugal.

Lisboa passou-se: são 30 anos de Manobras de Maio

Não deixe para a próxima estação o que pode comprar hoje

Se os desfiles são, desde o final dos anos 70, uma forma de comunicação da marca e de todos os seus produtos, afirma Bárbara Coutinho, estão hoje a tentar acompanhar a velocidade dessa comunicação. Acontecem em live streaming, o que por um lado adensa o desejo com uma falsa presença do internauta na sala; são reportados ao minuto nas redes sociais de quem está na primeira fila; quando as fotografias chegam às revistas dessa semana (ou pior: desse mês) já estão desatualizadas; e o que dizer do momento em que chegam às lojas, uma estação depois?

“Só o facto de o mundo hoje ser global mas o hemisfério norte e o hemisfério sul estarem em estações diferentes gera um pouco de ruído da parte do consumidor. Para a moda de luxo faz mais sentido ser mais próximo do ato de consumo”, exemplifica Paulo Gomes. O modelo see now, buy now (veja agora, compre agora), em que as peças ficam disponíveis no momento do desfile, quer acabar com os seis meses de espera há muito superados pelas marcas de fast fashion que apresentam novidades quase quinzenalmente. Marcas como a Burberry, Tom Ford, Rebecca Minkoff, Thakoon ou Tommy Hilfiger adoptaram o sistema no ano passado, depois de a Burberry ter lançado a ideia.

Numa era em que os desfiles são transmitidos em direto pelos telemóveis, Tommy Hilfiger é um dos criadores que aderiu ao "see now, buy now". © Getty Images for Tommy Hilfiger

Em Portugal, a primeira experiência começa em março, com Nuno Baltazar, que não se apresentou no Portugal Fashion de outubro passado para se dedicar a este modelo. “Enquanto criativo, este modelo é mais entusiasmante do que apresentar uma coleção agora e só daqui a quatro ou cinco meses ir para a loja”, disse ao jornal Público nessa altura. Agora que a ModaLisboa se prepara para dar os ares do próximo outono/inverno no Centro Cultural de Belém, Nuno Baltazar vai falar de primavera e verão porque “já não há espírito de novidade” e “as marcas e os designers têm de se adaptar à velocidade e à necessidade dos consumidores”, dizia na mesma entrevista.

Para o designer de moda, que em outubro passado dizia não ir permitir fotografias no showroom que vai inaugurar em março, esta tendência recente é também mais inteligente financeiramente: o retorno económico de um desfile já não chega seis meses depois. O investimento para montar um desfile é grande, meses de preparação e construção das coleções, mais o aparato efémero da apresentação. Há quem desista e se afaste por dificuldade em acompanhar, “é preciso labutar horrivelmente, é preciso uma estrutura e muito dinheiro, por muitos apoios que haja” lembra Paulo Morais-Alexandre. Sempre na vanguarda, a Burberry veio introduzir um modelo de venda que se prepara para mudar a forma como compramos, mas que ainda não está generalizado e enfrenta o peso do ritmo estabelecido nas últimas décadas. As próximas estações vão ditar se resulta ou não. Quando esta marca apresentou um desfile com manequins em holograma em Pequim conseguiu fazer história, mas não fundou uma escola.

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