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Como o Brexit pode ser uma oportunidade para a União Europeia

Vítor Bento propõe, em novo ensaio, que se aproveite o Brexit para realizar uma convenção político-económica destinada a gizar e acordar uma solução sistémica e integrada para a UE e para a zona euro.

    Índice

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1. Introdução

Dificilmente o Brexit deixará de provocar uma crise existencial na União Europeia (UE). Desde logo porque esta é confrontada, pela primeira vez, com a sua própria mortalidade e isso não pode deixar de ter consequências na formatação dos quadros mentais. Depois, porque, como referiu um informado analista irlandês, “[t]odos sabem que enquanto o Grexit seria um julgamento sobre a Grécia, o Brexit foi um julgamento sobre a UE” (Brendan Simms em After Brexit, should the Eurozone pursue full political union?, na New Statesman). E por fim, porque a saída voluntária de um membro vai iluminar um caminho cuja porta, até aqui, era vista como escondendo o equivalente adulto de um quarto escuro cheio de monstros ameaçadores, e de que, por isso, ninguém se atrevia a aproximar.

Iluminado o caminho e eliminado o papão que guarda a porta, à medida que o processo do Brexit vá transformando os monstros ideados em riscos concretos, o problema passará do campo da imaginação para o campo da razão. Pelo que, a não ser que a iluminação do terreno desconhecido desvele perigosos alçapões, a saída da União Europeia passará a ser uma opção racional no cálculo dos interesses dos restantes membros, e o caminho de entrada deixará de ser visto como via de sentido único.

Uma coisa parece certa: as consequências do Brexit serão mais geopolíticas do que económicas. A separação surge numa altura em que o mundo em geral, e a Europa em particular, se tornaram mais instáveis e deixa a UE estrategicamente enfraquecida

Isto, só por si e tal como a legalização dos divórcios fez aos casamentos, mudará a natureza da UE e reformatará os contornos dos processos negociais no seu seio. E no seio da zona euro em particular, pois que é por lá que passam as principais tensões da integração europeia. Os próximos dois anos serão por isso cruciais para testar a solidez do laços que mantêm os restantes membros ligados e a atracção da porta de que até aqui todos temiam aproximar-se.

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Em qualquer caso, uma coisa parece certa: as consequências do Brexit serão mais geopolíticas do que económicas. A separação surge numa altura em que o mundo em geral, e a Europa em particular, se tornaram mais instáveis e deixa a UE estrategicamente enfraquecida. E o euro, cujo balanço de uma década e meia de existência está longe de ser satisfatório, vai estar no centro do “exame de consciência” por que a UE irá inevitavelmente passar. E embora os problemas desse balanço se manifestem dominantemente no campo económico, as soluções – ou a falta delas – serão dominantemente do campo político.

Portanto e resumindo: o Brexit constitui um forte choque sobre a integração europeia, que obrigará a UE a reflectir sobre o seu funcionamento, em geral, e sobre a moeda única, em particular. No entanto e não obstante as subjacentes implicações económicas, os desafios que irá colocar à UE serão predominantemente políticos, ou, mais precisamente, geopolíticos. Haverá resposta à altura?

2. Brexit era inevitável

Não se pense que a decisão de deixar a UE foi, como tem sido dado a entender, um acidente do processo democrático ou o resultado de um conflito de gerações ou de níveis educacionais. Longe disso. Os factores mais imediatamente influentes naquela deliberação podem ter sido circunstanciais, como a crise dos refugiados e o receio de invasões migratórias, e podem ter-se manifestado nos referidos epifenómenos geracionais ou de educação escolar, mas o resultado seria inevitável, mais cedo ou mais tarde.

O Tratado de Maastricht abriu um caminho de divergência entre o Reino Unido e o resto da União Europeia

AFP/Getty Images

O fosso que se foi abrindo, desde o Tratado de Maastricht, entre os interesses do RU e o curso do processo de integração só poderia conduzir a um de dois desenlaces: ou o sucessivo alargamento das excepcionalidades concedidas ao RU, tornando a sua relação cada vez mais solta e mais difícil de conciliar com o desígnio cada vez mais integrador prosseguido pela UE; ou a saída do RU da UE, como veio a acontecer.

Ao longo da sua história e decorrente da sua natureza insular, o RU sempre entendeu o continente europeu como o germinador natural das mais sérias ameaças à sua independência. Por isso, a activa inviabilização de qualquer hegemonia no continente, promovendo e ajudando a sustentar um equilíbrio de poderes que minimizasse o potencial de ameaça à sua soberania sempre constituiu parte da sua defesa estratégica.

O Reino Unido sempre entendeu o continente europeu como o germinador natural das mais sérias ameaças à sua independência

Com o final da segunda guerra mundial e a emergência da guerra fria, o império soviético passou a constituir a principal ameaça, quer à parcela ocidental da Europa, de que o RU faz parte, quer a uma nova ordem mundial de base anglo-americana. Nesse novo xadrez geoestratégico, o RU via os EUA como escudo protector e a parcela ocidental do continente europeu – onde uma Alemanha derrotada e dividida e uma França militarmente derrotada, apesar de maquilhada de vencedora, não pressagiavam que tão cedo aí se materializasse qualquer risco de hegemonias – como o território da sua primeira linha de defesa.

Por isso, quando a Alemanha e a França, apoiadas pela Itália e pelo Benelux, decidem iniciar uma cooperação económica em 1958, rapidamente o RU se lhes procurou juntar, embora a oposição francesa só lhe tenha permitido concretizar esse desígnio 15 anos depois da fundação do então Mercado Comum.

Até ao Mercado Único, o Reino Unido não teve qualquer problema existencial com a sua participação no processo. Foi até, com Thatcher, um activo promotor do Acto Único Europeu. Porém, a partir de Maastricht, o curso da integração europeia entrou em divergência com os interesses do RU.

Mas tendo começado como União Aduaneira, o processo de integração foi evoluindo, para uma Comunidade Económica, um amplo Mercado Único, uma zona sem fronteiras, uma política externa comum, e uma União Económica e Monetária, e foi-se alargando-se geograficamente, dos 6 fundadores aos actuais 28 membros, num caminho que visa, de forma mais ou menos explícita, atingir a união política de quase toda a Europa.

Até ao Mercado Único, o RU não teve qualquer problema existencial com a sua participação no processo. Foi até, com Thatcher, um activo promotor do Acto Único Europeu e um dos primeiros a ratificá-lo. Porém, a partir de Maastricht, o curso da integração europeia entrou em divergência com os interesses do RU.

Participar na moeda única, cedendo soberania monetária a uma instituição supranacional, abrir as suas fronteiras, ou comprometer-se a um exército comum foram passos que o atávico entendimento da soberania britânica já não permitiu dar. Ainda assim, manter-se dentro da União, com negociada isenção dessas obrigações, continuou a ser percebido como correspondendo ao seu melhor interesse, quanto mais não fosse para, fiel à histórica linha estratégica de activamente inviabilizar o estabelecimento de qualquer hegemonia continental, ir entravando o processo que conduziria inexoravelmente a uma união política europeia. O que não terá sido indiferente ao entusiástico apoio dado ao grande alargamento da UE após a queda do muro de Berlim, pois que seria previsivelmente muito difícil prosseguir com intenções de integração política perante tantos e tão diversos novos membros.

Valery Giscard d’Estaing fala na abertura, em 2002, da fracassada Convenção Europeia que deveria escrever uma Constituição para a UE

AFP/Getty Images

Em 2001, o Conselho Europeu reunido em Laeken reconheceu a necessidade de aproximar mais a comunidade dos cidadãos e de simplificar os Tratados existentes, ponderando “se esta simplificação e reorganização não poderia levar, no longo prazo, à adopção de um texto constitucional na União” (ênfase acrescentada). Para o efeito convocou uma Convenção, encarregada de elaborar “um documento final que poderá conter, ou diferentes opções, indicando o grau de suporte que cada uma recebeu, ou recomendações se um consenso for alcançado”. E de “fornecer um ponto de partida para as discussões na [subsequente] Conferência Intergovernamental que tomará as decisões finais”.

O Tratado Constitucional, aprovado no final de 2004, nunca poderia ter sido ratificado pelo RU, uma vez que institucionalizava sub-repticiamente um estado europeu

Para dirigir a Convenção foi nomeado um Praesidium, liderado pelo ex-Presidente francês, Valery Giscard d’Estaing, e tendo como vice-presidentes, Giulio Amato, ex-primeiro ministro italiano e Jean Luc Dahene, ex-primeiro ministro Belga. Com o militante voluntarismo com que dirigiu os trabalhos e controlou a agenda e a ordenação dos temas para discussão, o Praesidiumformatou significativamente o resultado da Convenção, orientando os seus membros na direcção de um formato particular, um pleno Tratado Constitucional” e dessa forma “definiu a agenda, e restringiu significativamente a margem de manobra, da subsequente Conferência Intergovernamental”, que haveria de concluir o novo Tratado e acabou estabelecendo uma Constituição para a Europa (Mareike Kleine, Leadership in the European Convention, in Journal of European Public Policy, Dezembro de 2007).

Este Tratado voluntarista, comummente designado por Constituição Europeia ou Tratado Constitucional, e aprovado no final de 2004, nunca poderia ter sido ratificado pelo RU, uma vez que institucionalizava sub-repticiamente um estado europeu, pois que uma Constituição pressupõe um Estado, e aprovada aquela, estaria implicitamente reconhecida a existência deste.

Felizmente para si, o voluntarismo eurocrático que afunilou o processo do novo Tratado, acabou “sendo indiscutivelmente a sua ruína” (Mareike Kleine, Leadership in the European Convention, no Journal of European Public Policy, Dezembro de 2007). Chamados a manifestar-se em referendo, os cidadãos franceses e holandeses rejeitaram-no, dispensando o RU de ter sequer que se pronunciar sobre a sua ratificação. O documento rejeitado foi substituído pelo Tratado de Lisboa, mais alinhado com as menos ambiciosas orientações de Laeken e visando simplesmente melhorar o funcionamento de uma União com um número de membros substancialmente aumentado.

Com a crise do euro abriu-se um caminho de integração política por via administrativa, com um crescente poder assumido por um “directório administrativo”, sem responsabilização directa perante qualquer circunscrição política, enquanto os povos viam estreitar-se o espaço de influência sobre as decisões relevantes para a sua vida. 

A relação do RU com a UE ficou assim pacificada, até que crise do euro veio acelerar de novo a divergência entre as duas entidades. Tendo começado por parecer favorável aos desígnios britânicos, com o enfraquecimento da união monetária e das perspectivas da sua expansão, a crise acabou por acelerar a dinâmica da integração. A necessidade de assegurar a integridade e a eficácia do funcionamento da união monetária desenvolveu poderosas forças centralizadoras, que se foram traduzindo numa crescente intervenção das instâncias supra-nacionais, como a Comissão e o BCE, e no correlativo condicionamento do espaço de decisão nacional.

Abriu-se como que um caminho de integração política por via administrativa, com um crescente poder assumido por uma espécie de “directório administrativo”, sem responsabilização directa perante qualquer circunscrição política, ao mesmo tempo que os povos, continuando a exercer a sua soberania a nível nacional, viam estreitar-se cada vez mais o espaço de influência sobre as decisões relevantes para a sua vida. Dificilmente se poderia encontrar um caminho mais divergente dos interesses britânicos, empenhados em preservar o máximo da sua soberania. Pelo que o Brexit se tornaria inevitável.

Depois da votação britânico, caminhamos para uma separação amigável ou para um divórcio litigioso?

LAURENT DUBRULE/EPA

O grande desafio que agora se coloca, com importantes contornos geopolíticos, é saber se teremos pela frente uma separação amigável entre as duas partes, mutuamente vantajosa dentro das circunstâncias, ou um penoso e destrutivo divórcio litigioso que enfraquecerá a Europa e o chamado mundo ocidental e cujas consequências poderão ir, na pessimista visão de alguns, desde “tornar mais provável um sistema internacional desordenado” (Joseph S. Nye, Jr., no A Symposium of Views: Brexit: The Unintended Consequences, The International Economy, Primavera de 2016), até ao “fim do sistema mundial que o ‘Ocidente’ construiu depois da Segunda Guerra Mundial” (Bowman Cutter, idem).

3. Consequências para a União Europeia

A saída do RU, desde logo, encolhe significativamente a UE, altera-lhe a relevância e a perspectiva geoestratégica, e vulnerabiliza a sua integridade. Em dimensão, medida pela população e pelo PIB, a UE vê-se reduzida em 13% e 16%, respectivamente; em termos geoestratégicos, perde um dos principais “garantes” da sua capacidade militar, diminuindo-lhe a capacidade defensiva, perde relevância dentro da NATO (ao ver reduzido em 1/3 o seu contributo para as despesas de defesa da aliança, que passa a quedar-se nuns meros 13%), amplia a perspectiva continental em detrimento da marítima, e “perde” um lugar permanente, com o associado poder de veto, no Conselho de Segurança da ONU; e ao nível político, verá enfraquecido no seu seio o campo doutrinário demo-liberal, credibilizada a reversibilidade do projecto integrador e ameaçada a integridade da zona euro. Entre outras consequências.

Por outro lado, a própria natureza da UE mudará, pois que, por um lado, o processo do Brexit, ao desvelar o conteúdo concreto dos riscos de saída, fará da reversibilidade uma opção racional presente na relação dos estados membros com a União. E, por outro lado, esta passará a ser “um animal diferente”, como refere um profundo conhecedor do projecto de integração, porque “terá que viver sem o pragmatismo britânico, e com enfraquecida resistência a mais centralização e regulação” (Otmar Issing, idem).

Por outro lado ainda, e na medida em que o RU constituía como que um discreto, mas essencial, polo de “calibragem” no funcionamento do eixo franco-alemão, a sua perda potenciará os níveis de tensão nesse funcionamento e reforçará a centralidade alemã.

A União Europeia fica assim mais dependente de terceiros – EUA e, até certo ponto, o próprio Reino Unido – para a sua própria defesa e dos seus membros, contradizendo, e desvalorizando, a relevância estratégica que o projecto de integração pretende assegurar.

Mais do que económicas, as consequências do Brexit serão sobretudo geopolíticas. O enfraquecimento defensivo da UE deixará os países do leste europeu particularmente desconfortáveis. Especialmente num momento em que, por um lado, o mundo se torna perigosamente mais instável em geral e, por outro, e mais especificamente na orla da UE, a Turquia vai revertendo paulatinamente o caminho de “ocidentalização” do Ataturk e a Rússia se torna mais “assertiva” no seu posicionamento geoestratégico e se constitui numa renovada ameaça existencial para aqueles países. A União Europeia fica assim mais dependente de terceiros – EUA e, até certo ponto, o próprio RU – para a sua própria defesa e dos seus membros, contradizendo, e desvalorizando, a relevância estratégica que o projecto de integração pretende assegurar.

Só fortalecendo a sua própria capacidade militar, poderá a UE mitigar aquela dependência e preservar a sua relevância estratégica. Mas isso dificilmente será conseguido sem fortalecer a da Alemanha, o que não deixaria de gerar intranquilidade à sua volta. Daí que não seja de surpreender um rearranjo das alianças preferentes dos países do leste europeu, com uma reaproximação ao eixo anglo-americano para efeitos defensivos e de posicionamento geoestratégico, ao mesmo tempo que preservam a predominância dos laços económicos dentro da UE. Com o consequente desenterrar da querela “nova Europa / velha Europa”.

O euro dificilmente pode ser apresentado como uma história de sucesso, sobretudo para os participantes menos ricos e que viram aumentar o fosso económico que os separa dos mais ricos.

Por sua vez, o euro poderá vir a constituir-se num elemento de acrescida tensão no processo de integração europeia. Por um lado, porque continuando a ser considerado nos Tratados como destino obrigatório de todos os membros da EU, como se pode ver no artigo 3º, número 4 do Tratado da União Europeia e artigo 119º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (ainda que a Dinamarca disponha de uma derrogação especial), é pouco provável que os países que ainda preservam a autonomia monetária, e pelas referidas razões geopolíticas, se revejam nesse desígnio. No entanto, a centralidade da zona euro, e o seu peso decisório dentro da União, aumentará significativamente, dada a maior desproporção que o Brexit introduz na relação entre o “in” e o “out” da zona euro. O grupo da autonomia monetária, ainda que só perca um elemento, verá o seu peso económico reduzido a metade (menos de 14% do total) e o seu peso populacional passar de quase 1/3 para menos de ¼, pelo que se torna praticamente irrelevante no processo decisório, salvo nas matérias que requerem unanimidade.

Por outro lado, porque o euro dificilmente pode ser apresentado como uma história de sucesso, sobretudo para os participantes menos ricos e que viram aumentar o fosso económico que os separa dos mais ricos. E, nessas condições, e tendo em conta o já referido contexto geopolítico, dificilmente se pode constituir num objectivo ainda almejado para o grupo da autonomia monetária. Ao mesmo tempo que a experiência do Brexit não deixará de influenciar a opinião pública dos países para quem a participação no euro apresente, ou pareça apresentar, um saldo desfavorável. Embora um eventual abandono da zona euro tenha mais, e mais complexos, escolhos do que os que vierem a ser iluminados por aquela experiência.

A experiência do Brexit não deixará de influenciar a opinião pública dos países para quem a participação no euro apresente, ou pareça apresentar, um saldo desfavorável

STEPHANIE LECOCQ / POOL/EPA

Assim, duas forças se oporão dentro da UE, relativamente ao euro. De um lado, e actuando em sentido centrípeto, a eficácia da zona euro irá requerer uma maior integração política. De outro lado, as razões geopolíticas actuarão em sentido centrífugo e visarão uma relação mais solta entre o euro e os membros não aderentes. Em qualquer caso, a política, mais do que a economia, dominará as consequências do Brexit na UE, bem como o próprio futuro da zona euro. A solução mais abrangente poderá passar por “uma eurozona mais integrada e uma UE menos integrada”, como defendeu recentemente Wolfgang Munchau (The high price of Europe’s misguided pragmatism, Financial Times, 24/Jul/16). O que, em última instância, poderia ser suficiente para reverter o próprio Brexit.

4. Os Problemas da Zona Euro

Com mais de década e meia de existência, a União Económica e Monetária (UEM) já tem tempo histórico suficiente para que o seu desempenho possa ser avaliado sem grandes riscos de enviesamentos conjunturais. É certo que essa existência foi atravessada pela maior crise económica e financeira do pós-guerra, mas na medida em que esta teve impacto praticamente universal, pelo menos nas economias mais avançadas, o desempenho da zona euro pode ser aferido pela comparação com o de outros agrupamentos relevantes.

E nessa comparação – tomando como referência, por exemplo, o grupo de países da UE que não adoptam o euro e o conjunto das principais economias desenvolvidas fora da UE –, o desempenho da zona euro, em particular do seu núcleo fundador, e medido pelo crescimento do PIB per capita, é, desde a sua fundação, o pior de todos.

Os desempenhos divergentes na zona euro têm razões “estruturais”, decorrentes de as preferências sociais dominantes nos países do sul serem incompatíveis com as preferências sociais subjacentes à política monetária e cambial, alinhada com as dos países do core

E a comparação é particularmente significativa se feita com os EUA, onde a crise financeira também bateu forte. Mas, além desta observação geral, verifica-se que, dentro da zona euro, os desempenhos têm sido marcadamente divergentes, com os países do sul – Espanha, Grécia, Itália, e Portugal – a empobrecer, em termos absolutos e relativos, face aos países do core e ao “resto do mundo”.

Os desempenhos divergentes têm razões “estruturais”, decorrentes de as preferências sociais dominantes nos países do sul – habituados a utilizar a inflação e as desvalorizações cambiais como instrumento de reconciliação das suas inconsistências – serem incompatíveis com as preferências sociais subjacentes à política monetária e cambial adoptada pela zona euro e alinhadas com as dos países do core (sobre as preferências sociais divergentes dentro da zona euro e suas consequências, ver Vítor Bento, Euro Forte, Euro Fraco, Bnomics, 2012).

As razões de cada um têm vindo a somar à divergência económica uma divergência política cada vez mais notória, e que vai tornando a gestão política do euro, e a sua unidade, cada vez mais difícil

Mas foram substancialmente agravadas pela forma errada e assimétrica como as autoridades europeias conduziram o processo de ajustamento da zona euro à crise – que começou por ser financeira e internacional, mas que se metastizou numa crise do euro (uma análise mais pormenorizada da forma errada como a crise foi enfrentada e das suas consequências pode ser encontrada num ensaio meu publicado no Observador, em 8 de Fevereiro de 2015, intitulado Eurocrise: uma outra perspectiva).

Tudo isto não poderia deixar de ter consequências políticas. Todos os países, devedores e credores, acabaram por acumular razões de queixa, mas ninguém tem razão. Ou seja, todos têm razões particulares e parcelares, mas ninguém tem uma razão que seja sistemicamente integrante. E assim, as razões de cada um têm vindo a somar à divergência económica uma divergência política cada vez mais notória, e que vai tornando a gestão política do euro, e a sua unidade, cada vez mais difícil.

5. Grandes Tendências Envolventes

Em cima dos descontentamentos específicos da zona euro e a complicar o seu entorno político, três desapontantes tendências de âmbito mais vasto têm vindo a manifestar-se nas economias desenvolvidas. Uma demografia que aponta para um envelhecimento da população, aumentando o número de dependentes por activo e criando uma forte pressão sobre os sistema distributivos e o chamado “estado social”; e uma crescente desigualdade social nas economias desenvolvidas decorrente de um desproporcionado crescimento dos rendimentos do percentil mais elevado da distribuição, ao mesmo tempo que os efeitos da globalização económica – que proporcionou uma considerável melhoria social às populações dos países mais pobres que nela participaram activamente – têm acarretado a estagnação ou o decréscimo dos rendimentos de uma parte considerável da restante população.

É num contexto de frustração de expectativas que tem que ser percebido o caminho de radicalização política nas sociedades avançadas, com a desvalorização do centro político e das posições moderadas

THILO SCHMUELGEN/EPA

As duas primeiras tendências, mais acentuadas na Europa, e em particular no sul, apontam para um cenário prospectivo pouco favorável ao crescimento económico nos países desenvolvidos e pressagiador da agudização dos conflitos distributivos de que a terceira já dá conta. E constituem um contexto propício à frustração – já em curso, aliás, há perto de uma década – das expectativas sociais que a memória relativamente recente das décadas de progresso económico e social que se seguiu à segunda guerra mundial fundou, e que a propaganda, política e do marketing do consumo, tem alimentado. Frustração que por sua vez se traduz num crescente descontentamento com o establishment político e na consequente contestação.

O serviço da dívida virá complicar o processo distributivo, pois parte do rendimento agora gerado terá que ressarcir a distribuição feita no passado por conta da sua antecipação.

O establishment começou por atender à frustração de expectativas distribuindo rendimento futuro, antecipado através do endividamento. Mas este expediente, transitório por natureza, estará praticamente esgotado, com a sustentabilidade das dívidas públicas a ser colocada em causa, pelo que o problema de fundo será cada vez politicamente mais premente. Com uma agravante: o serviço da dívida virá agora complicar o processo distributivo, pois que, além da distribuição contemporânea, parte do rendimento agora gerado terá que ressarcir a distribuição feita no passado por conta da sua antecipação.

É, pois, neste contexto de frustração de expectativas que tem que ser percebido o caminho de radicalização política nas sociedades mais avançadas, com a desvalorização do centro político e das posições moderadas, a radicalização, a revitalização das manifestações “anti-sistema”, e a procura de representação política nas margens populistas.

6. O Futuro da UE e da UEM

É contra este pano de fundo – dos problemas de uma crise mal resolvida; da dificuldade de alguns países em se adaptarem às exigências da união monetária a que aderiram na esperança de vida fácil; das perspectivas pouco promissoras para os anseios de progresso económico e social; de uma demografia em contracção e envelhecimento; do desapontamento e prospectivo sacrifício das gerações mais jovens; de uma globalização cujos efeitos nos países mais desenvolvidos se confrontam com a aspiração de justiça social; e de radicalização política – que as angústias existenciais desencadeadas pelo Brexit na UE, e em particular na zona euro, terão que ser perspectivadas.

Terá que haver uma qualquer forma de união fiscal – seja através de um orçamento “federal”, seja através de um sistema institucionalizado de transferências fiscais –, assim como terá que ser implementado o pilar em falta da união bancária – a garantia comum de depósitos.

A UEM terá que recuperar a eficácia de que dependerá a sua própria sustentabilidade, e para isso terá que rever o seu funcionamento. E duas coisas vão tornar-se cada vez mais claras como necessárias ao eficaz funcionamento da união monetária: i) uma maior integração política; e ii) um maior alinhamento das preferências sociais dos países participantes com as regras de funcionamento. Será, pois, nesse sentido que deveremos esperar a evolução da zona euro num futuro relativamente curto. Mesmo que isso implique o seu redimensionamento e a abdicação como destino obrigatório da pertença à UE.

Terá que haver uma qualquer forma de união fiscal – seja através de um orçamento “federal”, seja através de um sistema institucionalizado de transferências fiscais –, assim como terá que ser implementado o pilar em falta da união bancária – a garantia comum de depósitos – e que implicará uma outra forma, pelo menos implícita, de “mutualização” de recursos. Ora, estes passos não serão dados sem serem acompanhados de uma qualquer forma de “federalização” do poder de decisão sobre o uso dos recursos “mutualizáveis”.

E não será possível prosseguir por muito mais tempo o desalinhamento de preferências sociais que tem marcado o funcionamento da zona euro e que muito contribuiu para a crise de que ainda se não conseguiu sair totalmente.

Isto implica diminuir os níveis de consumo – público e privado – e implementar reformas estruturais, o que envolverá, entre outras coisas, conter as expectativas sociais no futuro próximo.

Os países externamente devedores terão que aumentar os níveis de poupança para diminuir a dependência da poupança externa e terão que flexibilizar as suas economias para libertar o potencial económico, atrair investimento, e favorecer o crescimento. Isto implica, no imediato, diminuir os níveis de consumo – público e privado – e implementar importantes reformas estruturais, o que envolverá, entre outras coisas, conter as expectativas sociais no futuro próximo. Será um processo propício a maior radicalização política e à alimentação dos populismos, pelo que só será conseguível se o centro político nele se empenhar. Mas se isso não for feito, dificilmente esses países se conseguirão manter dentro da moeda única: ou saem por iniciativa própria, liderados pelos agentes da radicalização política, ou serão “incentivados” a desligar-se, por serem vistos como um entrave à união monetária.

É claro que um tal caminho e um tal resultado não deixarão de ter consequências graves para o futuro de toda a Europa, sobretudo quando esta apresenta demasiadas vulnerabilidades e começam a sentir-se vários sinais reminiscentes dos anos 1930s.

Os países do corre económico e político da UEM terão de aceitar a responsabilização simétrica, quer de credores, quer de devedores, nos desequilíbrios externos e nos seus ajustamentos

KAY NIETFELD/EPA

Por isso, os países do core económico e político da UEM também terão que se empenhar, quer em fazer parte do processo de confluência para uma solução, quer em facilitar o caminho dos devedores, contribuindo para evitar a sua maior radicalização política. Para isso, terão que perceber uma terceira necessidade, que também deveria ser clara para o eficaz funcionamento da união monetária: a responsabilização simétrica, quer de credores, quer de devedores, nos desequilíbrios externos e nos seus ajustamentos.

O que significa, entre outras coisas, que se uns quiserem continuar a poupar mais do que conseguem investir, é necessário que outros invistam mais do que conseguem poupar, sob pena de a economia da zona euro padecer de insuficiente procura agregada e sacrificar o potencial de crescimento e de emprego. Pelo que, nesse caso, terão que ser instituídos mecanismos de eficaz reciclagem interna dos excedentes.

Seria adequado aproveitar a oportunidade aberta pelo Brexit para promover uma convenção político-económica destinada a gizar e acordar uma solução sistémica e integrada.

Além disso, sem resolver de forma eficaz e equilibrada o assimétrico legado que resultou desta crise e da forma como foi abordada, o apoio social à moeda única e a confiança no mainstream político que a suporta continuarão a esvair-se. E sem esse apoio e essa confiança, vai ser difícil assegurar a completa adesão às regras necessárias ao bom funcionamento do euro e, por conseguinte, à sua própria integridade.

Nestas circunstâncias e como já defendi noutro lado, seria adequado aproveitar a oportunidade aberta pelo Brexit para promover uma convenção político-económica destinada a gizar e acordar uma solução sistémica e integrada, dentro de uma visão macroeconómica da zona euro como um todo, que enderece, simultânea e conjuntamente, os seguintes problemas:

  • a) insuficiência de procura agregada na zona euro (indirectamente reflectida num excedente externo de 4% do PIB, acompanhado por uma taxa de desemprego de 11%);
  • b) legado financeiro – dívidas soberanas e balanços bancários – e que, na ausência do remédio histórico da inflação, constitui um colete de forças sobre a economia (cristalizando os desequilíbrios que produzem aquela insuficiência) e um risco de incontrolável derrocada financeira;
  • c) reformas estruturais necessárias para flexibilizar as economias e garantir o seu crescimento sustentado;
  • d) sustentabilidade duradoura das finanças públicas;
  • e) mecanismos institucionais que, face à ausência da via cambial (que a assegurou no passado), assegurem a compatibilização de preferências sociais desalinhadas entre si.

Não sei se há condições e vontade para isso. Mas a continuidade da zona euro e a estabilidade da Europa dependem hoje mais da política do que da economia. Embora esta não possa, nem deva, ser menosprezada, porque não há soluções políticas estáveis sem o bom funcionamento das economias.

O desafio de que dependerá a integridade das duas construções – UE e UEM – será dominantemente político. Como políticas foram as decisões que lhes deram origem, nomeadamente a criação de uma zona euro que estava longe de constituir uma zona monetária óptima

Mas o desafio de que dependerá a integridade das duas construções – UE e UEM – será dominantemente político. Como políticas foram as decisões que lhes deram origem, que as formataram e que ditaram a composição da zona euro, sabendo que esta estava longe de constituir uma zona monetária óptima.

Agosto 2016

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