Dez anos antes de a bola começar a rolar neste texto, saiu dos pés de Deco cheia de critério e quando chegou aos de Alenitchev, já não era uma bola, era a chave para abrir em definitivo a defesa do Mónaco. O russo deu com a fechadura e devolveu a chave, em forma de bola. Deco recebeu, rodou para a direita e apontou para esquerda. Há quem lhe chame golo. Mas também há golos que não podem ser contados numa única palavra. Mais do que marcar um golo a Flávio Roma, Deco mandava entrar para a história do futebol, em definitivo, o Porto dos melhores sonhos de Pinto da Costa, o Porto inventado no laboratório de José Mourinho. Carlos Alberto, antes de Deco, e Alenitchev, depois de Deco, encheram o resultado que deu a Liga dos Campeões aos vencedores da Taça UEFA da temporada anterior.
Dez anos (e um dia) mais tarde, bem longe de Gelsenkirchen, onde foi campeão da Europa pela primeira vez, a dois passos da Avenida da Boavista, Deco passa as derradeiras horas de uma longa jornada portuguesa. Veio para estar na apresentação do jogo que há-de acontecer em sua homenagem, no dia 25 de julho, entre o FC Porto e o FC Barcelona, no estádio do Dragão, com os campeões da Europa de 2004 e de 2006. Ficou para assistir à final da Liga dos Campeões em Lisboa, e na véspera vestiu a camisola pelas antigas glórias da UEFA. Tudo isto começou um dia, aos solavancos, em Alverca.
Momentos de uma carreira: a ignição
Tempos houve em que Luís Filipe Vieira queria um jogador e o Benfica entendia que esse jogador não tinha lugar na Luz. Um exemplo: em 1997, Vieira, na condição de presidente do Alverca, clube satélite das águias, ficou com os miúdos da casa mãe, sem cabedal (estatuto) para suportarem as exigências da camisola vermelha. Aos 19 anos, Deco, que saíra do Brasil para jogar na primeira divisão e no Benfica, via-se de um momento para o outro no Ribatejo e entrava no futebol profissional português pela porta do cavalo: a Liga de Honra.
Como lhe tinham vendido um sonho de outro tamanho, à chegada, a decepção foi enorme: “quando cheguei tive a noção que não era o Benfica e que era o Alverca. Foi aquela confusão toda! Foi muito difícil. Até fiquei um pouquinho danado, não sabia o que ia acontecer. Mas depois foi uma experiência muito boa”.
A uma distância de dezassete épocas desportivas, a memória leva Deco para o lado bom do passado. Vamos fazer a curva do tempo e levá-lo até lá, para ver se é verdade que tudo corria mesmo sobre rodas. Deco deixa-se conduzir pela entrevista. Fica à espera da pergunta. E a história do primeiro carro em Portugal? “Vim para o Alverca com o Cajú. Eles ficaram de nos arranjar um carro e deram-nos um Carocha. O carro não pegava. Para ligar era sempre complicado. Era uma aventura chegar aos treinos. Mas pronto! Naquela época tudo era engraçado, uma alegria. Ultrapassei bem”.
Nem os problemas de ignição do Carocha retardaram a aceleração da carreira daquele que viria a ser o motor ideal para os topos de gama do futebol internacional. No Brasil, Carocha é Fusca. Cada Fusca tem seu objecto do desejo, o brucutu. Não se perde muito tempo e a explicação é simples: brucutu era a peça metálica do esguicho do pára-brisas do Fusca, peça muito roubada do carro para fazer anéis, toscos, brutos, como um desenho animado, o Brucutu, boneco popular ao ponto de Roberto Carlos, em pleno auge criativo, ter feito uma música com ele.
Havia outras jóias de gente (clube) pobre no Alverca, para além de Deco. Maniche também por lá andava. Constituíram naquele meio-campo uma das sociedades de maior rendimento da história do futebol português.
Momentos de uma carreira: o útero
A breve e introdutória referência a Indaiatuba pode esperar. O passado já aconteceu, não sairá do sítio, a ele poderemos regressar dentro de duas ou três linhas. Porque paramos então de contar, porque paramos logo nos preliminares do encontro? Porque as coincidências continuam a entrar no alinhamento, a mexer na ordem natural das coisas. Estamos no lounge de um hotel de cinco estrelas. Diante de nós temos Deco, um campeão da Europa em 2006 pelo Barcelona e em 2004 pelo FC Porto. E quem acaba de entrar? Julen Lopetegui, actual treinador do FC Porto e antigo jogador (guarda-redes) do Barcelona. Estes dois, Deco e Lopetegui, nunca se cruzaram em campo. O intervalo geracional não o permitiu. Entre um e outro há uma diferença de dez anos, há o sentido inverso no caminho para os clubes, e há, pasme-se, o destino a fazer com que os dois estejam agora no mesmo espaço, mas que estejam de costas um para o outro, sem terem como saber dessa proximidade e dessa distância, tão à medida de uma nota de reportagem.
Já podemos entrar em Indaiatuba. Brasil de 1981. Ou de 1982. Criança recorda bem, mas não recorda tudo. Deco tem 4 ou 5 anos. Lembra da primeira bola como se fosse hoje. Foi no Estado de São Paulo, “em Indaiatuba, meus pais mudaram para lá quando eu tinha dois anos. Foi lá na Vila Mercedes. Não havia muita coisa para fazer lá naquela altura. Era chegar da escola e jogar futebol. Comecei a jogar à bola com 4 ou 5 anos”.
Nessa altura, a Folha de S. Paulo anuncia que barco afunda no Pará com 530 pessoas. Na mesma Folha o São Paulo tenta o centésimo golo no Morumbi, frente a um Corinthians sem Sócrates. E o Flamengo, nos pés de Zico, agarra a Copa Libertadores, vencendo no Chile o Cobreloa, a polícia e Pinochet. Mozer também jogava nesse inesquecível Mengão. Em 1981 ou em 1982, nada no Brasil nem no mundo fazia adivinhar a tragédia do Sarriá, no dia em que o futebol morreu, tantas vezes se disse, depois de ela ter acontecido.
A gestação do jogador Deco acontece nos anos de luto da melhor seleção de todos os tempos. O garoto evolui. Supera etapas. Sobe degraus com a bola. Aos 11 anos é chamado pelo Guarani: ” foi quando comecei a ter alguma responsabilidade. Eram os treinos, o futebol passou a fazer mesmo parte da minha vida. Não era profissional, mas também já não era só uma diversão”.
Esse caminho foi dar ao Corinthians. Até que um dia o telefone tocou. Era o Benfica, do outro lado da linha, do outro lado do Atlântico. Durante os anos desse caminho, o Brasil voltara a ser campeão do mundo, nos Estados Unidos, mas numa vitória de penáltis contra uma muralha defensiva chamada Itália. O tetra fez o país feliz, mas não matou as saudades do futebol lindo de ’82.
Uma nova ilusão ganhava corpo através do menino fenómeno para a Copa de 1998. Uma ilusão do tamanho de um continente, do tamanho do Brasil inteiro, caía em cima de Ronaldo. E mais desportos contribuíam para o ego brasileiro. Brasileiro ganhava até no ténis! Gustavo Kuerten vencia o Roland Garros de 1997. Que coisa mais inédita. Nessa onda informativa, nos títulos dos jornais não havia espaço, nem motivo, nem uma linha para o jogador que o Benfica descobrira no subsolo do Paulistão: “na altura eu não queria sair do Brasil. Estava no Corinthians, já tinha feito vários jogos na equipa principal, mas acabaram por não chegar a acordo e eu acabei no CSA (Centro Sportivo Alagoano) até vir para Portugal. Fiquei animado com o convite do Benfica, mas confesso que naquela altura não tinha tanta vontade de sair do Brasil”.
O Brasil, pai e mãe de tanto talento, punha no mundo mais um jogador de futebol.
Momentos de uma carreira: a nação
Ordem, progresso, Portugal. Aos poucos o campeonato português organizou o jogo e a vida do miúdo. Encontrou a ordem em Vidal Pinheiro. Em poucos meses, em poucos jogos, tão poucos jogos que se contam com os dedos das duas mãos. Breve, mas marcante, o Salgueiros teve uma importância até agora desconhecida.
Do vermelho que não o quis ao vermelho que o recebeu de braços abertos, passou pouco mais de uma época. “O Benfica não exerceu a opção que tinha. Acabei indo para o Salgueiros por causa do presidente, José António Linhares, o falecido Linhares, que foi uma das pessoas mais fantásticas que passaram na minha vida e por quem eu tinha um carinho enorme e que foi muito importante na minha vida. Acabei por vir para o Salgueiros, por pouco tempo, porque logo a seguir vou para o Porto. O Porto já tinha algum interesse em mim quando eu fui para o Salgueiros”.
A carreira progride. O FC Porto mata dois coelhos de uma cajadada. Encontra o filão por meia dúzia de tostões e coloca mais um alfinete no Benfica, um dos desportos preferidos do seu presidente. “Eu já tinha vontade de jogar do Porto desde que fui ver um jogo no estádio das Antas. Não me lembro do adversário. Fiquei encantado com o estádio das Antas, com o clube, e passei a ter o sonho de jogar no Porto”.
A seguir à ordem (Salgueiros) e ao progresso (FC Porto), o lema da bandeira do Brasil resultou em algo completamente diferente. Resultou numa nacionalidade nova, à portas do Euro 2004. Ou talvez não tenha sido bem assim. Será que ainda se lembra da forma como o abordaram para jogar na selecção portuguesa? “foi um processo fácil. Quando eu tomo a decisão, era uma coisa que já vinha ponderando há um ou dois anos”, ou seja, ainda antes do campeão do mundo Scolari ter tomado conta do assunto. “Foi uma decisão natural. Eu não tenho de justificar para ninguém o quanto Portugal significa para mim, o quanto eu amo o país. Eu não consigo olhar para a minha vida sem olhar para Portugal. Tenho 5 filhos. 3 nasceram em Portugal. A minha carreira foi toda feita em Portugal. Fiz-me homem em Portugal. Eu não nasci aqui, mas Portugal é o meu país. Sei o valor que ele tem e o significado que tem para mim. Jogar na selecção foi um processo natural”.
Momentos de uma carreira: o fim
Antes do fim, Deco experimentou algo que nunca experimentara antes. E no último capítulo da história dos pés e da bola foi ídolo da torcida brasileira. Cedeu ao apelo do ninho. Deu a palavra ao Fluminense, recusou ofertas de outra dimensão financeira. Em jeito de balanço, o lucro foi outro, tão desportivo e emocional quando a conquista do Brasileirão consegue ser. “O regresso ao Brasil foi espectacular! Quando olho para a minha carreira não tenho muito por onde pedir mais. Fui feliz nos lugares onde eu passei, que é o mais importante. Tive dificuldades, momentos muito difíceis… o futebol não é só alegria. Mas eu consegui fazer história nos clubes por onde passei, consegui ser importante”.
Quando o jogador começa a ver o fim ao fundo da baliza, o jogador não quer nem olhar. Chegou o dia em que Deco viu que não dava mais, não tinha mais relvado por onde ir, mais bola para chutar, e que nada mais havia a fazer senão fechar a fábrica do futebol. “Foi o momento mais difícil da minha vida. A decisão mais dura que tive de tomar”. Como é que conseguiu esquecer a rotina, o vício? “Eu ainda não esqueci. Uma pessoa vai-se adaptando. Esse momento existe. A forma como vai ser, nenhum jogador sabe. Ninguém está preparado para deixar o futebol. Se nós pudéssemos, jogávamos durante a vida toda”.
De que é que mais sente falta? “Da competição. Da adrenalina da competição. Às vezes em casa, ao fim-de-semana, fico sem saber o que fazer. Aquela coisa que mais reclamava, de não ter o fim-de-semana, de não ter o feriado. Hoje eu tenho isso, mas falta-me a adrenalina da competição”. E faltou alguma coisa durante a carreira? “Faltou um título com a selecção. A maior mágoa foi a final do Euro 2004”.
O futebol deu para tudo, até para “adoptar” futebolistas. No primeiro ano de Barcelona, Deco e Ronaldinho Gaúcho foram falar com o treinador Frank Rijkaard e evitaram que Messi fosse emprestado. No final dessa época venceram o Arsenal no Stad de France e foram campeões da Europa. Agora Messi vem jogar ao Porto, na despedida de Deco, frente aos campeões da Europa de 2004. Os mesmos que apadrinharam a estreia oficial de Messi. E no mesmo estádio, no Dragão. “É impossível reunir todos. Gostava de reunir jogadores desde o tempo do Alverca, do Salgueiros, da selecção nacional, outros que jogaram comigo no Brasil ou no Chelsea”.