Índice
Índice
Investir milhares de milhões de euros apenas para retirar tempo de viagem na ligação ferroviária entre Lisboa e Porto? A relação entre o investimento previsto e os minutos poupados no percurso foi várias vezes apresentada como argumento contra projetos mais ambiciosos para a construção de linhas de alta velocidade em Portugal.
Se reduzir o tempo de distância entre as duas maiores cidades portuguesas — cujas áreas metropolitanas juntas representam quase metade da população residente, cerca de 4,5 milhões de pessoas — não convence todos, dados revelados esta semana mostram como a nova linha prevista terá o efeito complementar de aproximar também outras cidades do país, incluindo algumas do interior.
A distância entre Aveiro e Lisboa vai demorar menos 40 minutos a percorrer, enquanto Leiria ficará a menos 2h33 minutos de Lisboa (em tempo ferroviário). Viajar entre Guarda e o Porto pode demorar menos 53 minutos e para a Lisboa o tempo encurta 36 minutos. Estes foram alguns dos exemplos indicados numa apresentação feita pelo presidente da Infraestruturas de Portugal, António Laranjo, na conferência Portugal Railway Summit 2021 realizada esta terça-feira por via virtual. São performances que a nova infraestrutura vai permitir, mas que dependerão da resposta por parte dos operadores ferroviários.
A linha de alta velocidade Lisboa/Porto é o projeto emblemático do PNI (Programa Nacional de Investimentos) 2030 que, segundo o responsável pela gestora da rede ferroviária, é um investimento disruptivo face à política seguida nos últimos anos, e no plano anterior. Enquanto o Ferrovia 2020 — em execução está vocacionado para o transporte de mercadorias e para as ligações internacionais, com uma forte componente de recuperação dos ativos. O PNI 2030 promete um “salto disruptivo”, apostando no segmento dos passageiros, designadamente no principal eixo estruturante de Norte a Sul.
No mesmo evento e no dia seguinte, o ministro das Infraestruturas sublinhou igualmente o efeito de coesão territorial.
“Não é só reduzir o tempo de viagem entre o Porto e Lisboa para 1h15. É colocar Leiria a 35 minutos de Lisboa, Coimbra a 35 minutos do Porto, Braga a 2 horas de Lisboa. Todo o território que se encontra ao longo da faixa Atlântica fica, no máximo, a um par de horas. É uma revolução na estrutura do território e no tipo de relações pessoais, familiares e económicas que se podem estabelecer. Também muda completamente a nossa capacidade de afirmação. O país passa a ter uma metrópole de escala Europeia, com cerca de 8 milhões de pessoas. Mas este não é um investimento só no litoral. Todas as ligações ferroviárias ao interior estão ligadas ao eixo litoral.”
Ainda que não haja garantia do apoio do PSD, apesar da expetativa manifestada por Pedro Nuno Santos, e das eternas fraturas no setor sobre a bitola (que o Observador irá desenvolver num artigo autónomo), há alguma convicção na ferrovia que desta vez é mesmo para avançar depois de 20 anos de discussão, polémicas, anúncios e recuos que o Observador recorda neste trabalho.
As voltas que a alta velocidade deu (no papel) para aqui chegar
A nova linha ferroviária entre Lisboa e Porto é um regresso a 1999? Nesse ano, um grupo de trabalho apresentou ao então ministro João Cravinho uma proposta para ligar Lisboa ao Porto por comboio em 1h15 minutos. Custo? Mil milhões de contos. Traduzido para euros dá um valor muito próximo dos 4.500 mil milhões de euros (5.000 milhões de euros) anunciados agora.
Mas se o valor do investimento e o tempo de percurso são quase os mesmos, a ligação que está no Programa Nacional de Investimentos em Infraestruturas (PNI 2030) é o resultado de 20 anos de discussões, revisões, derrapagens e travagens bruscas. Pelo caminho ficaram 150 milhões de euros gastos em estudos e milhares de páginas produzidas, e nem um quilómetro de TGV construído ou em condições de avançar rapidamente.
A linha que agora renasce tem o selo de alta velocidade — não se fala nos 350 km/hora, mas o tempo de 1 hora e 15 minutos implica que se esteja próximo desse patamar — mas será em bitola ibérica (uma distância entre os dois carris que só se utiliza em Portugal e Espanha), ao contrário do que estava previsto no projeto de Sócrates que caiu no final da década passada. O projeto prevê a instalação da travessa polivalente (traves de madeira sobre as quais assentam os carris) que permite uma transição relativamente rápida para a bitola europeia se e quando Espanha optar por esta soluções nas ligações que tem a Portugal, nomeadamente a Norte.
O programa também retoma a ligação de alta velocidade para Vigo com uma nova ligação entre Porto e Valença, igualmente em bitola ibérica, mas a linha já não será toda construída num corredor novo e de uma só vez. Haverá um faseamento na construção que procura aproveitar os novos troços para dar mais capacidade e otimizar a ligação feita pela Linha do Norte, sem ser necessário esperar que tudo esteja construído. A opção pela bitola ibérica garante essa interoperabilidade, para além de permitir usar os comboios atuais de longo curso, os Alfa Pendulares, que estão a ser modernizados.
Primeiro avança a construção de um novo troço entre Soure a Vila Nova de Gaia. Para o fim, fica o mais caro e mais exigente do ponto de vista de engenharia. A chegada ao Porto, que exigirá uma nova ponte no Douro — um investimento que pode chegar aos 500 milhões de euros para chegar à estação de Campanhã, de acordo com o jornal Público — , e a entrada em Lisboa que passará por uma extensão de 30 km ou mais de percurso em túneis e viadutos. No final do processo teremos uma linha nova com vários pontos de cruzamento com a Linha do Norte (até para potenciar os tráfegos urbanos e regionais) no Porto, Aveiro, Coimbra e Lisboa, e com a Linha do Oeste em Leiria.
Se até Soure (sul de Coimbra) os troços novos vão correr mais ou menos paralelos à atual infraestrutura. Para Sul, o projeto passa por recuperar o corredor a oeste que chegou a ter avaliação de impacte ambiental aprovado para nova linha de TGV programada há mais de 10 anos. Sem o aeroporto da Ota para servir, a nova ligação pretende colocar Leiria no mapa da ligação Lisboa/Porto, o que permitirá encurtar a distância ferroviária entre esta cidade e Lisboa para 35 minutos, como destacou o ministro das Infraestruturas no Parlamento.
Os estudos e projetos terão de ser atualizados, mas há muito trabalho feito de há dez anos que pode ser aproveitado e os técnicos acreditam que identificação dos terrenos pelos quais a linha vai passar e os limites à sua ocupação terão mantido o caminho livre para passagem da nova linha. Agora é preciso avançar com os estudos prévios e voltar a submeter o projeto a impacte ambiental. O calendário até 2030 é exigente, admitem, mas exequível.
Das duas horas para 1h15 minutos
A versão inicial do PNI, conhecida no início de 2019, previa um reforço de capacidade na Linha do Norte com a quadruplicação nos troços onde existe o maior estrangulamento a nível de tráfego. No fundo seria prosseguir com o interminável processo de modernização da Linha do Norte (que começou nos anos de 1990) para aumentar a capacidade de resposta com mais condições de segurança da linha vertebral da rede ferroviária portuguesa.
Pela Linha do Norte passam o longo curso, os regionais, os urbanos, as mercadorias, e uma parte importante do tráfego que usa outras linhas como a Beira Baixa ou a Beira Alta. É incontornável e apresenta vários pontos de congestionamento.
Estavam previstas quatro intervenções: No troço Cacia/Gaia seria instalado um novo canal de alta prestação em via dupla para separar tráfegos lentos e rápidos. No troço Soure/Coimbra/Mealhada seria construída uma nova via dupla com o mesmo objetivo, no troço entre o Vale de Santarém e o Entroncamento era anunciada uma variante para acelerar a circulação e no troço Alverca/Azambuja seria construída uma terceira via reversível até Castanheira do Ribatejo que seria quadrupla daqui à Azambuja.
Os investimentos estimados eram de 1,5 mil milhões de euros e permitiriam ainda encurtar o trajeto entre as duas maiores cidades portuguesas para 2 horas. Hoje o percurso em Alfa Pendular demora pouco menos de três horas, permitindo um ganho de tempo modesto (depende da velocidade) face ao concorrente automóvel.
Mas o poder político quis ir mais longe — a perspetiva de mais milhões de euros de fundos para o plano de recuperação ajudou na ambição — e acelerar o trajeto entre as duas maiores cidades para pouco mais de uma hora, aproximando também as distâncias entre as cidades intermédias de Coimbra e Aveiro. E a única forma de assegurar um tempo de viagem inferior a uma hora e meia seria construir uma linha nova, é esta a mudança de paradigma, já que não se trata apenas (e já seria necessário) aumentar a capacidade da Linha do Norte, mas também de melhorar a performance.
Pedro Nuno Santos sublinhou no Parlamento que a melhor solução para encurtar a distância entre Lisboa/Porto é uma linha nova. E por isso deixa de ser necessária a intervenção prevista na zona de Santarém na Linha o Norte. O investimento neste desvio já não se justifica, ainda que o ministro tenha assegurado que não fica posta em causa a intervenção nas costas do sul necessária por razões de segurança.
Trata de uma “mudança radical” e o ministro apelou a que se dê força a esta linha nova. “Precisa do apoio mais do que um governo, E o pior que pode acontecer é quando muda o Governo ou às vezes até o ministro reequacionar tudo.” Entre os socialistas teme-se a oposição do PSD que o ministro já tentou em algumas intervenções colar no apoio às novas linhas. Os social-democratas ainda não se manifestaram sobre os projetos em concreto apresentado no novo Programa de Infraestruturas, apesar de o ministro das Infraestruturas ver sinais de compromisso.
Mas em que se gastou tanto tempo? E porque mudou tantas vezes mudou o projeto do TGV?
Traçado em forma de T deitado, ligação a Espanha por Cáceres ou por Badajoz, alta velocidade versus velocidade alta, a bitola europeia ou ibérica, só passageiros ou também mercadorias, uma linha nova de raiz ou troços novos combinados com a partes modernizadas da Linha do Norte. Esta é uma síntese possível das opções, algumas tornadas fraturantes por discussões intermináveis de “especialistas”, que marcaram os avanços e recuos de 20 anos de discussão sobre a alta velocidade em Portugal. Mudanças políticas, crises financeiras, derrapagens nos custos com as parcerias público privados e os constantes ataques às soluções técnicas propostas transformaram o TGV de um sonho consensual e popular num projeto maldito, ou tabu, como afirmou António Costa em 2018 numa entrevista ao jornal espanhol ABC.
Fact Check. Jornal recuperou notícia com 20 anos sobre TGV em Portugal?
A linha Lisboa/Porto apresentada em 1999, e recordada pelo jornal Público quando foi conhecido o programa de infraestruturas, ainda não era um projeto, mas uma ideia de um grupo de trabalho. O desenvolvimento desta ideia nos anos seguintes deu origem a uma opção de traçado que incluía também uma ligação a Espanha, o chamado T deitado que a partir do centro da linha Lisboa/Porto dava origem a um outra linha para Madrid, assegurando que as duas maiores cidades portuguesas estariam a uma distância competitiva da capital espanhola.
Mas o T deitado esbarrou com a oposição espanhola cujo Governo tinha prometido uma linha de TGV de Madrid a Badajoz no caminho para Lisboa. O braço-de-ferro ibérico ainda durou alguns anos e o desacordo foi tema central de algumas cimeiras luso-espanholas.
Em 2001, a RAVE (Rede de Alta Velocidade), empresa pública criada para promover o projeto, liderada por Manuel Moura, apresenta um projeto mais ambicioso, o qual prevê a construção de quatro linhas com ligação a Espanha, em Vigo, Salamanca, Madrid (via Badajoz) e Algarve. O Investimento seria de mais de mil milhões de contos e previa a construção de 120 km por ano de nova linha até 2008.
Com a queda do Governo de António Guterres e a chegada de Durão Barroso ao poder em 2002, o entusiasmo pelas obras públicas arrefece com o discurso de que Portugal estava de tanga. Dois anos depois de ter conseguido fazer parte do clube de fundadores do euro, o país enfrentava o primeiro procedimento por défices sucessivos em Bruxelas. O Executivo põe em espera a construção do aeroporto na Ota, mas o TGV não parou.
Portugal cede a Espanha e o T deitado cai na Figueira da Foz
Depois de várias cimeiras sem acordo, Portugal acaba por ceder à intransigência espanhola e deixa cair o famoso T deitado, já com o ministro Carmona Rodrigues, para viabilizar a linha Lisboa/Madrid via Badajoz. Em novembro 2003 realiza-se na Figueira da Foz a cimeira mais histórica para o projeto de alta velocidade onde são anunciadas quatro ligações a Espanha, para além do Lisboa/Porto, já com calendários fixados e estimativa global de custo de nove mil milhões de euros. Faltava o resto e era muito.
Em junho de 2004, nos últimos dias de Durão Barroso como primeiro-ministro, é publicada a resolução do Conselho de Ministros que estabelece as prioridades da rede portuguesa de alta velocidade.
Linha Porto-Vigo, como linha de alta velocidade, com uma estação intermédia entre o Porto e a fronteira luso-espanhola de Valença/Tuy, com horizonte temporal de 2009.
Linha Lisboa-Madrid, como linha especialmente construída para a alta velocidade, com estação intermédia em Évora e na fronteira luso-espanhola de Elvas-Badajoz. Deve igualmente a sua parametrização permitir a circulação de composições ferroviárias de mercadorias compatíveis com as características do traçado e as exigências de exploração, com horizonte temporal de 2010.
Linha Lisboa-Porto, como linha especialmente construída para a alta velocidade, com estações intermédias em Leiria, Coimbra e Aveiro, com horizonte temporal de 2013.
Linha Aveiro-Salamanca, como linha de alta velocidade, permitindo a circulação de composições ferroviárias de passageiros e mercadorias, com estação intermédia em Viseu, com horizonte temporal de 2015.
Linha Lisboa-Faro-Huelva (via Évora), como linha de alta velocidade, com uma estação intermédia em Beja, com horizonte temporal de 2018, dependente de estudos técnico e de viabilidade económica.
Nos seis meses seguintes, sob o comando de António Mexia na pasta das obras públicas, são estudadas as soluções para viabilizar a linha Lisboa/Porto, aquela que teria mais tráfego e uma exploração comercial mais relevante, mas também a mais cara e difícil de executar do ponto de vista de engenharia. Desde logo, o maior problema era a entrada em Lisboa (e também no Porto, mas em menor escala).
Ou usava-se o corredor da Linha do Norte com uma linha nova ou o reforço de capacidade da atual infraestruturas, numa zona de elevada ocupação territorial e obstáculos físicos, ou entrava-se pelo sul. Ainda se estudou a Ponte 25 de Abril para esta opção, mas não tinha capacidade. Já a construção uma terceira travessia no eixo Chelas/Barreiro obrigava um percurso mais longo e com uma exploração comercial menos interessante.
No início de 2005, a RAVE revela um projeto para ligar Lisboa e o Porto em 1h35 minutos em 2012. O investimento ascenderia a 3,8 mil milhões de euros, um valor mais baixo porque deixava para mais tarde o concretização de novas entradas em Lisboa e no Porto.
O projeto integrava troços modernizados da linha do Norte, incluindo um troço com bi-bitola de 75 quilómetros, e um novo corredor de 230 km de alta velocidade em dois troços: Soure/Carregado e Ovar/Gaia Os técnicos da RAVE admitiam que incluir novas entradas nas duas cidades custaria quase o dobro, até seis mil milhões de euros, com uma nova ponte no Porto e a entrada em Lisboa pelo Norte através de um novo corredor. Seriam 240 milhões e euros por cada minuto tirado ao trajeto, para chegar a um tempo de percurso de 1h10 minutos, sublinhou na altura o ministro. Em vez disso estava prevista a quadruplicação da Linha do Norte do Carregado até Lisboa. E até havia um preço de referência para a viagem entre Lisboa e Porto: 35 euros.
Em vésperas de eleições legislativas, após a demissão imposta ao Governo de Santana Lopes, o então ministro das Obras Públicas, António Mexia, anunciou como muito provável a construção da terceira travessia Chelas/Barreiro como porta de entrada da linha de TGV vinda de Madrid.
TGV já descarrila no calendário e custos. PS quer linha nova entre Lisboa e Porto
Quanto os socialistas voltam ao poder em 2005, já há vozes que se levantam contra o projeto “manta de retalhos” deixado pelo anterior Governo e que exigem uma linha nova de TGV entre Lisboa e Porto. Entre eles estão Jorge Coelho, antigo ministro das Obras Públicas, e vários quadros do setor. É apontada uma comissão para reavaliar a solução.
Quando em maio, o Governo está a preparar o plano de investimentos de 20 mil milhões de euros em infraestruturas, uma das bandeiras da primeira legislatura de José Sócrates, é informado de que os números do TGV, tal como tinham sido anunciados eram impraticáveis. As linhas Lisboa e Madrid e Porto-Vigo anunciadas para 2009 e 2010 só seriam possíveis de concluir em 2013. A ligação ao Porto, apontada para 2013, teria também uma derrapagem de pelo menos dois anos. E os custos dispararam: Porto/Vigo passou de 1.367 milhões de euros para 2.165 milhões de euros, Lisboa Madrid passa de 1770 milhões para mais mil milhões com a terceira travessia.
No final do ano, o projeto do TGV é apresentado com novos valores. Lisboa/Porto será uma linha nova toda em bitola europeia para alta velocidade com um investimento estimado de 4,7 mil milhões de euros (onde é que já vimos este número). E abertura no prazo de 2015. Lisboa/Madrid fica agendada para 2013 e terá um custo de 2,7 mil milhões de euros que inclui uma parte da terceira travessia do Tejo para ligar as duas capitais em 2h45.
O investimento total de 7,7 mil milhões de euros terá, dizem os estudos encomendados pelo Executivo, um impacto equivalente no PIB e a criação de 100 mil postos de trabalho. O projeto implica construir 500 km de linha nova em seis anos, a começar em 2008. A rede revista de alta velocidade mantém ainda a ligação do Porto a Vigo, mas o Aveiro/Salamanca sai das prioridades.
Dúvidas técnicas evoluem para riscos financeiros, mas concursos avançam
Só em 2007 fica definido o modelo financeiro de execução do investimento que é dividido em vários concursos de empreitada para a infraestrutura a realizar no modelo de parceria público privado (PPP). Mas o ritmo de execução é abalado pelas dúvidas sobre outras infraestruturas que se cruzam com o TGV.
O processo de reequacionamento de cada uma destas peças acaba por ter um efeito colateral no TGV. É o tempo de euforia na discussão das grandes obras públicas que chega à arena política com o alto patrocínio do Presidente da República e interesses económicos nem sempre visíveis.
Depois da crise financeira de 2008, o debate passa também a centrar-se no custo, no seu financiamento e na viabilidade económica dos investimentos. O discurso de defesa dos socialistas passa pela necessidade de puxar pela economia e pelo emprego, mas também pela existência de fundos europeus e financiamentos do BEI (Banco Europeu de Investimentos) que se perderão se as obras não avançarem.
O aeroporto da Ota foi a primeira grande obra a ser atacada, por causa da localização, dos elevados custos de investimento e de limitações operacionais para uma futura expansão. Depois de um ano de polémica, o Governo cede e encomenda ao LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil) um estudo comparativo que favorece a localização do Campo de Tiro de Alcochete proposta num estudo promovido pela CIP (Condeferação da Indústria Portuguesa). Esta reviravolta acaba por alastrar ao projeto TGV.
A decisão de mudar o aeroporto para a margem sul do Tejo exige acessos rodoviários e ferroviários rápidos a Lisboa A terceira travessia do Tejo que já estava prevista na linha entre Lisboa e Madrid ganha uma componente rodoviária e fica mais cara. O investimento na ordem dos 1700 milhões de euros seria divididos pelos projetos do TGV, aeroporto e ligação ferroviária convencional para tráfego suburbano.
Apesar de perder a ligação à Ota, que contava para as previsões de tráfego, a ligação Lisboa/Porto é de longe a que tem mais procura e a única que liga núcleos populacionais com dimensão para permitir uma exploração comercial compatível com padrões de alta velocidade. No entanto, é a linha para Madrid que avança primeiro. Em parte porque é mais barata e mais fácil de construir, mas também porque tem mais fundos e apoio em Bruxelas por se tratar de um corredor transfronteiriço.
Em 2008 foi lançado o concurso para o troço Poceirão/Caia e no ano seguinte avança o procedimento para a terceira travessia do Tejo. A crise financeira já aí estava e os concursos para o TGV dominam a campanha legislativa de 2009 com o PSD de Manuela Ferreira Leite a empunhar a bandeira contra as obras faraónicas e o seu contributo para o endividamento público e nacional. “Sendo Governo riscarei imediatamente o TGV”, o diz a então candidata a primeiro-ministro. Sócrates vence em outubro de 2009, mas perde a maioria.
O contrato assinado com o resgate no horizonte
Em maio de 2010, com o cronómetro da crise financeira a acelerar — o resgate da Grécia estava por semanas — a teimosia de José Sócrates faz seguir para a frente a assinatura do contrato que adjudica o primeiro troço de alta velocidade em Portugal, entre o Poceirão/Caia. A empreitada de 1,5 mil milhões de euros é atribuída ao consórcio Elos, composto por empresas como a Brisa, a Soares da Costa e o grupo Lena.
O TGV avança nos compromissos do Estado, mas já vai coxo. A ligação de Madrid para no Poceirão, a 50 quilómetros de Lisboa e com o estuário do Tejo pelo meio. Dias depois de assinar o contrato, o Governo anula o concurso para a terceira travessia do Tejo, uma empreitada que teria sido ganha por um concorrente espanhol, invocando alterações técnicas e financeiras e manifestando intenção de o relançar. O que não acontece.
Com o resgate financeiro de 2011, o projeto da alta velocidade já é considerado um nado-morto em Portugal. Entre os credores da troika, a Comissão Europeia até defende a continuação da obra que é fortemente apoiada com fundos comunitários (o que naturalmente não dispensa fundos nacionais com impacto na dívida pública). Vozes mais cínicas apontam o interesse das grandes potências europeias do TGV, a Alemanha e a França — em vender comboios a Portugal.
O Governo de Passos Coelho recebe uma ajuda preciosa para deixar morrer o projeto incómodo quando em 2012 o Tribunal de Contas recusa o visto prévio ao contrato da Elos, invocando falta de dotação orçamental e ilegalidades na adjudicação. Sem o visto, o contrato não pode produzir efeitos, mas as condições contratuais permitem ao consórcio avançar com um pedido de indemnização por custos já incorridos. Não havia obra é certo, mas havia estudos, projetos, pareceres, consultores e expropriações em curso.
Em 2016, o Tribunal Arbitral condena o Estado a pagar uma indemnização de 150 milhões de euros, mas o Executivo socialista recorre para os tribunais administrativos e a decisão final ainda está pendente. Caso esta compensação avance, a conta do TGV passado duplica para 300 milhões de euros, sem um km de linha construído.
Enquanto Portugal discute, Espanha faz
O comboio de alta velocidade ficou conhecido em Portugal como o TGV, marca da francesa Alstom que é sigla para a mesma expressão em francês. Em Espanha, é o AVE e por cá ainda se ensaiou o nome de RAVE — que deu o nome à empresa criada no ano 2001 para desenvolver a rede e que foi extinta uma década depois, mas para desgosto de alguns políticos ficou o TGV, sinónimo para muitos de comboio para ricos.
Ao contrário do TGV português, o AVE tem sido um projeto consensual em Espanha. Nos anos de 1990 existia apenas uma linha de alta velocidade a operar, Madrid-Sevilha, inaugurada em 1992 para a Exposição Internacional de Sevilha. O sucesso desta operação contribuiu para uma febre da alta velocidade em Espanha que avançou com a construção de centenas de quilómetros em simultâneo na direção das principais cidades, ligando-as a Madrid numa rede em forma de estrela. Apesar da alternância entre PP e PSOE, o progresso do AVE nunca foi posto em causa politicamente, ainda que com algumas alterações de prioridades a nível regional.
Com mais de 3000 quilómetros de linha em alta velocidade, dos quais cerca de 2.600 em bitola europeia, Espanha chegou a ser o país do mundo com mais km de TGV por habitante, rapidamente ultrapassado pela China. Mas apesar do crescimento mais ou menos constante do número de passageiros, mais de 33 milhões em 2018, Espanha era também o país onde a rede de alta velocidade era a menos usada, menos de 15 passageiros por quilómetro segundo dados de 2016 da UIC (União Internacional de Caminhos de Ferro). Apesar destes indicadores, o AVE e o boom do turismo ajudaram a Renfe, a operadora espanhola, a alcançar os primeiros lucros da sua história. Foi em 2019 e antes da pandemia.
O regresso “de mansinho” do TGV
Com o conceito do TGV banido nos anos do ajustamento financeiro, o programa de investimentos em infraestruturas apresentado em 2014 pelo Governo de Passos Coelho elege como prioridade as mercadorias, em vez de os passageiros, que não precisam de viajar a alta velocidade. O corredor da linha Lisboa/Madrid é parcialmente retomado na construção de novos quilómetros de infraestruturas (a primeira em décadas) para ligar Sines à fronteira. Apesar de consensual em termos políticos, o projeto passa do PETI (Plano Estratégico de Transportes e Infraestruturas) de Passos Coelho para o PETI3+ mais de António Costa, mas sofre vários atrasos.
A oposição culpa as cativações de Centeno que travam o investimento da Infraestruturas de Portugal, o ministro Pedro Marques acusa o PSD/CDS de não ter deixado estudos nem projetos feitos, o que faz demorar pelo menos quatro anos a concretizar os milhões anunciados. Prazos irrealistas dos políticos e falta de capacidade de resposta do mercado português de engenharia e outras áreas técnicas especializadas que perderam músculo nos anos da crise, também ajudam a explicar os atrasos.
Ferrovia. Dos milhões anunciados no papel à crise operacional da CP
As obras aceleram em 2019 e de acordo com dados avançados pelo ministro das Infraestruturas, 75% do Ferrovia 2020 (plano de investimentos) estão em obra ou em contratação para obra”, indicando que existem vários investimentos em curso e com obra concluída estão apenas 8%.
“O prazo final para financiamento comunitário é dezembro de 2023 e assim será”, garantiu o ministro no Parlamento, indicando que não se registam atrasos novos, pelo que os prazos serão cumpridos e o Ferrovia 2020 será “totalmente executado no final deste prazo”. Segundo Pedro Nuno Santos, “é normal” que no processo de contratação e investimento público haja alguns prazos que possam resvalar mas “na globalidade” os prazos estão a ser cumpridos”, acrescentou o ministro. O Governo prevê ter “tudo em empreitada” no primeiro trimestre de 2021, disse ainda Pedro Nuno Santos.
O próximo passo é o regresso dos investimentos para os passageiros, com vários projetos anunciados no Programa de Investimentos (PNI) conhecido há mais de um ano, desde a compra de material circulante até intervenções em linhas suburbanas como Sintra e a muito falada e sempre esquecida requalificação da Linha de Cascais e mais alguns passos na modernização da Linha do Norte.
Mas foi preciso uma proposta do consultor independente contratado pelo Governo para desenhar um plano de recuperação económica, para o poder político perder a vergonha de voltar ao TGV. Um regresso enquadrado pelos apelos ao investimento público para relançar as economias e na expetativa de que haverá mais dinheiro disponível de Bruxelas para grandes obras, com a bazuca.
A ligação Lisboa/Porto em alta velocidade foi uma das principais novidades do plano Costa Silva, ainda então com uma abordagem gradualista, que passa a linha completa na versão final do documento.
Como o plano Costa Silva relança as duas obras mais polémicas — o TGV e o aeroporto
Poucos meses depois, o revisto PNI 2030 retoma, sem medo, e desta vez sem necessidade de entendimento prévio com Espanha, uma nova linha de alta velocidade entre Lisboa e Porto que é o maior investimento do pacote de 43 mil milhões de euros anunciado para a próxima década.
Na apresentação do programa, o primeiro-ministro assinalou que nesta área tem havido “muita paixão, mas enorme inconsequência na ação”, apelando a um “amplo debate público e político que garante que daqui a dez anos não tenhamos de novo uma primeira página a anunciar uma obra que se anunciava há dez anos e se anuncie simplesmente: está feito“.