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“Triste realidade da vida moderna”. Do stress diário à falta de tempo livre, das horas perdidas no trânsito à dependência da tecnologia, a expressão podia encaixar em muitas coisas. Theresa May, primeira-ministra britânica, usou-a para falar de solidão. E usou-a em janeiro deste ano, no dia em que apresentou Tracey Crouch como ministra da solidão. Sim, leu bem: uma pessoa destacada no Governo especificamente para combater algo muitas vezes encarado como um estado de alma natural, mas que, sabe-se hoje, levado ao extremo, pode causar danos severos à saúde — e não apenas mental. No limite, a solidão pode até acelerar a morte.
Crouch foi entretanto substituída por Mims Davies (demitiu-se em desacordo com o Governo, a 1 de novembro, por causa de uma lei de combate ao vício do jogo), mas com aquela nomeação — da primeira ministra da solidão em todo o mundo –, May deu continuidade ao trabalho da deputada trabalhista Jo Cox, assassinada em 2016 por um militante de extrema direita enquanto fazia campanha contra o Brexit. Jo Cox dedicou grande parte da sua vida ao estudo da solidão e chegou mesmo a criar uma comissão para o tema, que, não só estudou o fenómeno, como avançou com sugestões para o debelar — entre elas a necessidade de designar um ministro para o tema, que fosse capaz de gizar uma estratégia global de ataque ao que é já tratado como uma epidemia dos tempos modernos.
No último relatório publicado pela comissão de Jo Cox, traça-se um enquadramento negro da solidão no Reino Unido. Os dados mostram que nove milhões de britânicos estão, ou de vez em quando, ou sempre sós, que cerca de 200 mil idosos não tiveram uma conversa com um amigo ou familiar em mais de um mês e que, para mais de 3,6 milhões de pessoas com mais de 65 anos, a televisão é a principal forma de companhia. Mas os dados vão mais longe e mostram que o problema é transversal e não afeta apenas os idosos: 43% dos jovens que beneficiam dos serviços da Action For Children (instituição de solidariedade infantil que ajuda crianças e jovens negligenciados no Reino Unido) sente solidão, 50% das pessoas com deficiência vão sentir-se sós em algum momento da vida e 8 em cada 10 cuidadores também se sentem isolados, como resultado de tratar de algum familiar próximo.
Os efeitos da solidão podem ser devastadores para a saúde. A investigadora norte-americana Julianne Holt-Lunstad (que é citada pela comissão de Jo Cox) fez acender o alerta vermelho quando, em agosto de 2017, avançou com conclusões perturbadoras durante a 125.ª Convenção Anual da Associação Americana de Psicologia. Disse a professora da Universidade Brigham Young que a solidão pode ser tão mortal como fumar 15 cigarros por dia. Holt-Lunstad conduziu duas investigações, a primeira delas envolvendo 148 estudos em que participaram mais de 300 mil pessoas, e a segunda englobando 70 pesquisas e uma amostra de três milhões de cidadãos. As conclusões mais surpreendentes? Aqui vão elas: as pessoas com boas relações sociais têm menos 50% de risco de morte prematura e a solidão é um fator de maior risco para a saúde do que a obesidade.
Parece assustador, mas ainda há mais. É que não é apenas no plano individual que o cenário se traça em tons negros. O relatório de Jo Cox leva a questão mais longe e reforça as consequências do fenómeno no plano social. A comissão que estuda o tema pegou na calculadora e fez as contas (alarmantes): a solidão custa, atualmente, 2,8 mil milhões de euros anuais às empresas britânicas — sobretudo devido à quebra na produtividade que origina — e as comunidades desligadas socialmente podem fazer com que a economia britânica saia prejudicada em 36 mil milhões de euros por ano. Do lado da solução há mais um dado: por cada libra investida (1,14 euros) a combater a solidão, a sociedade poupa 1,26 libras (1,43 euros).
A sociedade toda para atacar um problema
E foi do lado da solução que o governo britânico se posicionou. Nove meses depois de nomear a ministra da solidão, publicou a estratégia de combate ao problema. Um plano que assenta em dois pressupostos enfatizados por Jo Cox: primeiro, que a solidão não escolhe idades nem estratos sociais; depois, que é preciso um esforço conjunto de todos os setores da sociedade para a combater.
Para o governo britânico, construir uma sociedade coesa do ponto de vista social exige que todos sejam convocados a desempenhar o seu papel. Desde logo o governo, através dos seus mais variados departamentos e ministérios, que deve atuar como um catalisador dos vários contributos, mas também as autoridades locais (responsáveis por pensar em estratégias e espaços para enriquecer as suas comunidades), os serviços públicos (que devem ter uma abordagem holística a pensar no bem-estar das pessoas), as empresas (responsáveis por criar espaços e momentos de convívio dentro e fora do local de trabalho, tanto para os funcionários como para os clientes), o setor voluntário, os amigos, famílias e grupos comunitários. O próprio governo explica que colaborou com mais de 40 organizações para elaborar a sua estratégia — desde instituições de caridade, empresas e instituições públicas.
O primeiro compromisso: estudar e medir o problema
O pressuposto é simples: não é possível atuar sobre algo que não se conhece bem. Por isso, o governo britânico assume, como preâmbulo de medidas mais efetivas, o compromisso de recolher mais dados e medir a solidão de forma mais consistente. Mas primeiro, há que definir bem o conceito a ser tratado — até porque solidão não é o mesmo do que isolamento. Confuso? Vai ver que não.
No documento que explica a estratégia de combate ao problema, o governo assume a seguinte definição: “Solidão é um sentimento subjetivo e indesejado de falta ou perda de companhia, que acontece quando há uma incompatibilidade entre a quantidade e a qualidade de relações sociais que temos e aquelas que queríamos ter“. Trocado por miúdos: se faz parte do grupo de pessoas que até gosta de estar isolado e procura esse isolamento, não quer dizer que sofra de solidão — para que isso acontecesse, tinha de desejar estar acompanhado e não conseguir.
Para cumprir o compromisso de aprofundar o estudo do problema, o executivo britânico recorreu ao seu instituto de estatísticas para criar uma metodologia baseada em quatro perguntas: “Com que frequência se sente sozinho?”, “com que frequência sente falta de companhia?”, “com que frequência se sente excluído?” e “com que frequência se sente isolado dos outros?”. O governo vai incentivar a que também instituições de solidariedade e outros fornecedores de serviços adotem este pacote para estudar o fenómeno, comprometendo-se a organizar mesas redondas, nos próximos meses, para discutir os resultados.
Receitas médicas com atividades sociais, carteiros atentos a idosos e mais apoio a cuidadores
Um dos eixos centrais do programa britânico prende-se com o papel atribuído aos serviços públicos e às várias organizações — que, no entender do governo, devem estar preparados para fazer a ligação entre as pessoas que sofrem de solidão e a ajuda necessária para que possam abandonar o problema.
Uma perspetiva que “constitui um ponto de viragem na forma como os serviços públicos e organizações vão promover as relações sociais como parte central do seu papel diário“, pode ler-se no documento do governo. “Vão desenvolver o conhecimento necessário para identificar a solidão e pôr em ação mecanismos para ligar as pessoas ao apoio de que precisam”.
O conceito de prescrição social
Estamos habituados a recorrer aos médicos de família para sair de lá com um papel onde está escrito o nome do medicamento que vai curar o nosso mal de saúde. Mas, no caso da solidão, não é assim tão simples; o problema não se cura com medicamentos — embora eles possam ser prescritos em alguns casos, nomeadamente quando há outras patologias associadas.
Por isso mesmo, o governo britânico apoiou-se no conceito de prescrição social. Parece um palavrão mas, na prática, quer dizer que os vários serviços vão estar dotados do conhecimento necessário para fazer um aconselhamento social.
Os médicos de família, por exemplo, vão desempenhar um papel fulcral nesta estratégia. Os dados do governo britânico dão conta de que 76% destes profissionais dizem receber nos seus consultórios 1 a 5 pacientes por dia com problemas de solidão. Para aproveitar essa proximidade com o problema, o executivo comprometeu-se a que, em 2023, todos os médicos de família saibam direcionar os seus pacientes para focos de ajuda — que podem incluir desde atividades variadas (como aulas de cozinha, grupos de caminhadas ou cursos artísticos), como apoio para encontrar um emprego ou até serviços de habitação.
O governo acredita que, não só pode estar aqui uma das formas de combater o problema, como pode ajudar a aliviar o peso sobre o serviço nacional de saúde: o executivo estima que a prescrição social possa reduzir em 28% as consultas de medicina geral e em 24% os atendimentos em urgências.
O Reino Unido compromete-se, ainda, a incentivar outros agentes — como farmacêuticos, assistentes sociais ou mesmo funcionários dos centros de emprego — a fazer esta prescrição em 2019/20. E dá um exemplo concreto de uma parceria alcançada com a empresa de correios Royal Mail, e que vai acrescentar mais uma tarefa diária aos carteiros: conferir, durante as suas entregas, se as pessoas mais velhas estão em estado de solidão. Para o fazerem, vão recorrer a um conjunto de perguntas pré-definidas, com as respostas a serem analisadas por profissionais, quer do poder local, quer de associações de voluntariado, para encaminhar os casos mais graves para a respetiva ajuda. Os testes vão ser feitos em Liverpool, Whitby e New Malden.
Atuar em momentos de risco para a solidão
O governo britânico entende que existem certos eventos súbitos na vida que podem desencadear um fenómeno de solidão. Seja a morte de um parente próximo, a emigração, a mudança de casa ou de emprego, um acidente que deixe a pessoa incapacitada, o nascimento de um filho ou quando esse filho já é adulto e deixa a casa dos pais. Como tal, entende que tem de atuar nesses momentos, ajudando as pessoas a vencerem o problema, muitas vezes antes mesmo de ele se instalar.
Neste sentido, uma das medidas propostas é o reforço do serviço ‘Tell Us Once’ — que permite que uma pessoa comunique uma morte apenas uma vez e que essa informação seja partilhada com vários organismos governamentais. O executivo acredita que este serviço pode ser aplicado à solidão: se alguém reportar o óbito de alguém próximo, é identificado o potencial de se instalar o problema e essa pessoa pode ser reencaminhada para a ajuda necessária.
Outro exemplo prende-se com o apoio dado aos cuidadores — aqueles que tratam de pessoas incapacitadas. O governo britânico reservou uma verba de mais de 500 mil euros para um programa totalmente direcionado para estas pessoas, que possa criar espaços e serviços adaptados à sua realidade, assim como investir em mais conhecimento sobre esta realidade para desenvolver posteriores formas de ajuda.
Também as pessoas com deficiência não são esquecidas nesta estratégia global de combate à solidão. O executivo inglês quer que os serviços de saúde e as restantes organizações saibam fazer uma prescrição social adequada a estes casos, não esquecendo, também, o papel do emprego. No Reino Unido, menos de metade dos adultos com deficiência está no mercado de trabalho e o governo quer mudar esta realidade, encorajando as empresas a ceder espaços de trabalho e dar formação a estas pessoas, fazendo com que se sintam menos excluídas. Em paralelo, o governo vai criar cinco programas de teste até março de 2019, para desenvolver oportunidades de voluntariado para pessoas com algum tipo de incapacidade.
Investimento em espaços comunitários, transportes e tecnologias digitais
Parece quase um lugar-comum, mas, para que as pessoas se relacionem, é necessário que haja espaços onde esse encontro possa acontecer. É por isso que um dos pontos centrais do programa britânico se centra no reforço desses lugares vitais para o combate à solidão. O governo inglês sublinha que, nos inquéritos feitos às pessoas para compreender o fenómeno, havia três fatores recorrentes considerados fulcrais para ultrapassar este mal: o acesso a espaços comunitários, uma boa rede de transportes e um bom planeamento habitacional.
Aproveitar os espaços existentes e criar novos
O Estado britânico vai dedicar uma verba de dois milhões de euros para aumentar o número de espaços comunitários, seja criando novos (como cafés, jardins ou espaços artísticos), ou reaproveitando os existentes. Para esse efeito, o Ministério da Educação vai publicar, no final de 2018, um guia para as escolas perceberem como podem maximizar as suas instalações através da abertura da escola à comunidade e da promoção de eventos para lá dos horários das aulas. O programa governamental salienta até que, com isso, as instituições de ensino podem gerar algum retorno financeiro, que pode ser usado a favor das atividades educativas.
O executivo de Theresa May vai ainda partilhar boas práticas dos centros de emprego que também já utilizam as suas instalações a favor da comunidade. E dá até o exemplo do centro de Wakefield, que criou um grupo de conversa para refugiados sírios — o que facilita a sua integração e, como tal, reduz as possibilidades de se desenvolver o fenómeno da solidão.
O apelo para que se aproveitem os espaços para fomentar as ligações sociais estende-se, também, às empresas. O governo vai incentivar as companhias a fazê-lo e exemplos bem-sucedidos não faltam: a cadeia de supermercados Sainsbury’s criou um conceito de mesas de conversa que vão ser testadas em 20 lojas, para fomentar que as pessoas se relacionem e, assim, se possa combater a solidão.
Uma rede de transportes que fomente a coesão social
É mais uma evidência: as pessoas dependem dos transportes para todas as atividades da sua vida — nomeadamente para as interações sociais. Sem surpresa, esta área não é esquecida no programa inglês para o combate à solidão. No documento, o governo refere que já investiu “biliões” na modernização e reforço destas infraestruturas, sublinhando também o apoio de mais de 280 milhões de euros por ano para estimular os serviços locais de autocarros e a compra de 400 novos mini-autocarros para o transporte comunitário.
Mas há mais trabalho a fazer, garante o executivo. Uma das medidas anunciadas prende-se com o financiamento, em 2019, de programas de formação para condutores comunitários — que fazem o transporte de pessoas idosas ou com deficiência. Como resultado, haverá mais profissionais capacitados para fazer a ligação de quem mais necessita com o mundo. Outra das iniciativas prende-se com a realização de parcerias com empresas de transporte de passageiros que estejam a desenvolver iniciativas para combater a solidão. E dá-se o exemplo da empresa Go South Coast, que implementou um novo layout nos seus autocarros para tornar mais fáceis as interações entre os passageiros.
Juntar as pessoas através da habitação
O governo britânico parte do pressuposto que a habitação também pode ser um elemento-chave na inclusão social — sublinhando a importância de um planeamento cuidado, que equilibre os espaços públicos e privados. Neste sentido, o programa prevê o financiamento de pesquisas sobre o impacto da habitação comunitária, que combine casas privadas com espaços comuns, no combate à solidão.
Além disso, o Estado vai também promover alguns eventos, como conferências, seminários e mesas redondas, que juntem representantes do setor imobiliário para debater o papel do design das casas no bem-estar — e, por consequência, no combate à solidão. O Ministério da Habitação compromete-se a publicar resultados no final da primavera de 2019.
O poder das ferramentas digitais no combate à solidão
Em pleno século XXI, não podemos pensar apenas em espaços físicos quando falamos de infraestruturas. As ferramentas digitais também devem ser usadas, de acordo com o programa, para aproximar as pessoas — embora o governo reconheça que a tecnologia também tem o potencial de gerar solidão.
O executivo de Theresa May elenca os investimentos já em marcha nesta área — nomeadamente os 10 milhões de euros gastos para garantir conhecimentos básicos do meio digital a 800 mil pessoas ou a colocação de wi-fi gratuito em todas as bibliotecas do país.
Mas, diz o governo, há mais a fazer. Desde logo a inclusão deste tema como critério para a atribuição do fundo para a inovação e inclusão digital, no valor de 450 mil euros, lançado em setembro deste ano — e que visa aumentar a inclusão digital de idosos e pessoas com deficiência. O Ministério para o Digital e Indústrias Criativas vai ainda organizar mesas redondas com empresas de tecnologia para avaliar o impacto do digital na solidão.
Uma cultura que facilite a integração social
É talvez a parte de mais difícil execução em qualquer programa. A cultura não se muda por decreto, é sabido, mas há medidas que podem encorajar mudanças num tema ainda tão estigmatizado — o governo revela que 30% dos britânicos reconhece sentir-se constrangido em assumir que sente solidão, o que dificulta a busca de ajuda e superação do problema. Ainda assim, o executivo criou aquilo que considera serem “pequenos passos” para caminhar no sentido de uma cultura mais inclusiva, que reconheça a importância das interações sociais e esteja atenta a fenómenos de solidão.
O papel das empresas
As empresas desempenham um papel fundamental na solidão — estando até, muitas vezes, na sua origem. Um estudo publicado em 2014, e citado no programa, refere que 42% das pessoas não tinha qualquer colega de trabalho que pudesse considerar um amigo. Mas o governo quer que as companhias abandonem o lado do problema e passem para o da solução — apoiando o bem-estar dos empregados, com impactos reais na sua produtividade.
Neste sentido, foi criado um ‘Compromisso dos empregadores’ (Employer Pledge, em inglês), que nada mais é do que o reconhecimento, por parte das empresas, da importância do combate à solidão nas suas práticas diárias — que podem incluir grupos de ajuda, apoio aos funcionários em momentos mais delicados (como a paternidade, a reforma ou a perda de alguém próximo) ou até a publicação de artigos informativos na intranet das empresas. O programa revela que empresas de alto porte, como a Sainsbury’s, a Co-op ou a Cisco já aderiram a este compromisso.
O papel das escolas
Uma mudança cultural nunca poderia deixar de incluir as escolas. É por isso que a estratégia inglesa prevê a introdução, até setembro de 2020, dos temas relacionados com a solidão nos manuais escolares do Reino Unido — tanto no ensino primário como secundário –, abordando a importância das relações sociais, assim como os efeitos nocivos da sua ausência.
Vão também ser criadas, em 2019, equipas de apoio à saúde mental. A sua principal função passa por identificar os casos de solidão nos jovens, facilitando o acesso à terapia, assim como ajudar na prevenção, sempre que possível.
Portugal pode aprender com o exemplo britânico?
Apresentados os traços gerais da estratégia britânica, a questão sai-nos, inevitavelmente, boca fora: e em Portugal? Será que o problema, por cá, justifica uma intervenção idêntica a nível governamental? Adalberto Dias de Carvalho, coordenador do Observatório da Solidão do ISCET (Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo), não tem dúvidas de que o caso português “já merece a existência de uma política concertada sobre a solidão”.
“Temos todos os indicadores para acreditar que o fenómeno é muito importante e muito alastrado no nosso país. Não tenho dúvidas de que é um fenómeno endémico“, sustenta. Uma estratégia é necessária, assegura o investigador, mas, antes dela, é preciso que se reconheça o problema — e, mais do que isso, que ele seja estudado.
Adalberto Carvalho acredita que, em Portugal, “não existe consciência da autonomia e da especificidade do fenómeno da solidão”. Além disso, a vida moderna potencia uma falta de atenção relativamente ao outro. “As pessoas não têm tempo nem para olhar para os seus mais próximos. Muitas das formas de prevenção e terapia para a solidão passam por conversar, mas as pessoas não conversam. Almoça-se fora porque não há tempo de ir a casa. Ao jantar, quem tem miúdos tem de ver como estão os trabalhos de casa — esses terríveis trabalhos de casa que destroem o tempo de convívio das crianças e das famílias. Quando não é assim, vai-se para a televisão ou para o tablet“, lamenta o especialista.
Tal como acontece com o programa britânico, que se compromete a estudar e a medir o problema da solidão, em Portugal também era necessário haver um estudo aprofundado. “O fenómeno não está totalmente identificado. Não tenho dúvidas de que a solidão é muito representativa em Portugal, mas está escondida; é preciso pô-la a claro”, explica Adalberto Carvalho.
Para fazê-lo, há que refletir sobre a questão metodológica. “Há uma dimensão subjetiva muito forte nesta matéria, é quase um fenómeno de intimidade. É evidente que isto não pode ser tratado como são as doenças cardíacas ou pulmonares, que podem ser medidas de forma objetiva”, realça o professor. “Tem de se fazer um estudo a nível nacional, mas não pode ser feito com métodos apenas quantitativos, porque vai falsear os resultados”, garante.
A importância das escolas, dos hospitais e das prisões
Adalberto Carvalho considera que Portugal “poderia aprender com o exemplo britânico, que é completamente inovador”. “Temos de ter o sentido de oportunidade de aproveitar o que está bem feito, como é o caso do programa inglês”, defende. Entre o rol de medidas adotadas no Reino Unido, há uma em particular que o investigador gostaria de ver implementada por cá: o envolvimento das escolas no fenómeno da solidão. Até porque os estudos conduzidos pelo Observatório dão conta de um dado curioso. “Encontrámos mais casos de solidão nos jovens do que nos idosos. Só há uma diferença, os jovens saem mais depressa do estado do solidão do que os idosos”, explica o coordenador do organismo.
“Existe muita solidão nos adolescentes”, concretiza. “A adolescência é a fase de transição entre a infância e a idade adulta, o que significa que há conquistas, buscas, vivências de adulto que são novas e procuradas, mas, ao mesmo tempo, está a perder-se algo do que estava para trás, na infância e que dava segurança”.
É por isso que, para o especialista, é tão fulcral o papel dos estabelecimentos de ensino. “Se virmos as preocupações, as diretrizes, os programas escolares, dificilmente encontramos algo relacionado com este tema. É um assunto tabu. Mas as escolas portuguesas têm de se preparar para estarem atentas ao fenómeno da solidão“, sublinha Adalberto Carvalho. Para isso, é preciso que tanto professores como psicólogos sejam formados para identificar o problema — e também para ajudar a preveni-lo e a resolvê-lo. “A deteção do fenómeno da solidão pode perfeitamente ser feita na escola e o sítio privilegiado para o fazer é no recreio. É preciso que pessoas treinadas observem o comportamento das crianças, porque ali nota-se bem as que estão com as outras e as que são rejeitadas e se encostam a um canto”.
Adalberto Carvalho tem uma visão coincidente com a do governo britânico também noutro ponto: na necessidade de dotar os médicos de família (assim como outros profissionais de saúde) de instrumentos para fazer a prescrição social dos pacientes afetados pela solidão. “Os médicos lidam com estas questões diariamente. Há muitas pessoas que vão aos consultórios sobretudo para falar. E o mesmo acontece nas farmácias. Tem de haver formação por parte dos profissionais de saúde, porque este assunto não é intuitivo”, ressalta. O especialista deixa, ainda assim, um alerta. “Para haver prescrição social em Portugal, as consultas vão ter de aumentar a sua duração, porque tratar a solidão não é só passar uma receita”.
Para o especialista, além das escolas e dos hospitais, também as prisões — lugares de isolamento por excelência — devem estar preparadas para lidar com o fenómeno. “Os presos também são seres humanos e tem de haver pessoas capazes de compreendê-los e ajudá-los a ultrapassar a solidão”, remata.
O coordenador do Observatório da Solidão realça ainda a parceria britânica com a empresa de correios Royal Mail para enfatizar o papel das visitas domiciliárias, sobretudo aos mais idosos. “Em Portugal, isso é assegurado, em certos meios rurais, pela GNR, que passa pelas casas das pessoas para saber como estão, se tomaram os medicamentos… É um trabalho importante, mas, uma vez mais, era útil uma formação direcionada para o fenómeno da solidão“, sublinha.
Os espaços de convívio — e os de discussão
Para o especialista, é preciso colocar as pessoas a falar e a pensar sobre a solidão. Por isso, considera que uma estratégia em Portugal deveria passar pela realização de colóquios e iniciativas de sensibilização em vários pontos do país — onde se divulgasse informação sobre o tema, mas também se auscultassem soluções para ajudar a amenizar o problema. “Tem de haver uma sensibilização para o assunto. Tem de se falar para quebrar o tabu e o esquecimento“, refere.
À semelhança do que acontece em Inglaterra, também em Portugal é necessário o reforço dos espaços públicos como parte de uma estratégia de combate à solidão. Pelo menos é o que pensa Adalberto Carvalho, que direciona a questão para as autarquias. “Podia ser uma encomenda feita à Associação Nacional de Municípios”, atira. “O poder local tem de ser sensibilizado para a criação e funcionamento de espaços de convívio, de partilha, de comunidade”. Mas o investigador deixa uma ressalva. “Não basta construir infraestruturas, é preciso que os espaços proporcionem uma interação social”.
Para o especialista, as comunidades locais desempenham um papel de protagonismo numa estratégia para Portugal. “Nas freguesias e nos municípios é onde tudo deve começar, porque é onde a sociedade civil está mais próxima e mais presente”, defende, para concluir: “E se a sociedade civil se capacitar, se motivar, se ela própria for interveniente neste processo, aí sim a problemática da solidão vai ganhar o estatuto de problema político“.