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Como Rui Rio governou o Porto. 12 histórias para conhecer melhor o novo líder do PSD

Ao fim de 12 anos à frente da câmara do Porto, ficou com a fama de ser um gestor rigoroso. Mas também teve muitas polémicas: do Aleixo ao Bolhão, da cultura ao FC Porto, dos "popós" aos arrumadores.

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Este artigo foi originalmente publicado a 12 de janeiro de 2018.

22h30. 16 de dezembro de 2001. Rui Rio descia finalmente ao piso térreo do quartel-general onde se instalara para assistir à noite eleitoral. Ainda estava à procura de se refazer daquela vitória surpreendente. Minutos antes, tinha confessado a um jornalista que “nem as melhores sondagens” previam um resultado daqueles. Vestia um fato azul escuro e uma gravata avermelhada quando se apresentou aos apoiantes. Foi recebido em ombros e ao som de gritos “Rui Rio, vai em frente, tens aqui a tua gente!”. As primeiras palavras eram para eles: “Todos os que andaram comigo fizeram-no por desinteresse e convicção. Porque eu não tinha nada para dar a ninguém. Todos nos davam como derrotados. Fiquei só com os desinteressados, mas é com esses que eu gosto de ganhar”.

Ainda a refazer-se da vitória, Rui Rio respondia com uma surpreendente honestidade aos jornalistas. Primeira medida como presidente da câmara? Não tinha. “Eu acreditava que era possível, mas sabia que era muito, muito difícil”, confessava. O baque emocional era tal que, segundo relatos do Público naquela noite, terá tomado calmantes para aguentar a contagem dos votos. A 16 de dezembro de 2001, e contra todas as expectativas e resistências (incluindo as do próprio partido), Rui Rio vencia as eleições para a Câmara Municipal do Porto, derrotando o candidato socialista e favorito, Fernando Gomes. Na mesma noite, Pedro Santana Lopes ganhava a câmara de Lisboa contra o outro favorito, João Soares, e António Guterres demitia-se de primeiro-ministro. Estava aberta a porta para o PSD regressar ao poder com Durão Barroso.

Começavam assim os doze anos de Rui Rio à frente dos destinos do Porto. Doze anos marcados pela recuperação das finanças da cidade — mesmo asfixiada pela crise financeira que se abateu no país a partir de 2009 –, e que lhe valeram o rótulo de gestor rigoroso. Mas foram também doze anos de gestão igualmente marcados por muitas polémicas: da demolição do Bairro do Aleixo, às controversas obras do Metro do Porto, do Mercado do Bolhão e do Pavilhão Rosa Mota, passando pela guerra com os agentes culturais da cidade, com o FC Porto e com os arrumadores de carros.

Agora que se tornou o novo presidente do PSD, é bom perceber o que fez Rui Rio à frente da Câmara do Porto. O recém-eleito líder social-democrata não respondeu às perguntas enviadas pelo Observador. Estes 12 anos ajudam a perceber quem é o novo presidente do PSD.

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Ainda a refazer-se da vitória, responde com uma surpreendente honestidade aos jornalistas. Primeira medida como presidente da câmara? Não tem. “Eu acreditava que era possível, mas sabia que era muito, muito difícil”, confessa. O baque emocional foi tal que, segundo relatos daquela noite, terá tomado calmantes para aguentar a contagem dos votos. 

Os resultados económicos de Rui Rio: menos 100 milhões de dívida

Quando recebeu a Câmara Municipal do Porto das mãos de Nuno Cardoso, que substituíra Fernando Gomes quando este aceitou mudar-se para Lisboa, Rio encontrou uma dívida total de mais de 154,6 milhões de euros, um valor que nos primeiros quatro anos de mandato cavalgaria até aos 214,5 milhões (em 2004). Daí em diante, foi sempre a descer: o autarca despediu-se da Câmara com uma dívida total de 104 milhões de euros. Mais: conseguiu terminar os doze anos à frente da cidade com a autarquia a demorar apenas seis dias a pagar aos fornecedores.

A preocupação com as contas era uma constante na era de Rui Rio. De tal forma que, como contava o Observador, o autarca mantinha um cartão na sua secretária com a palavra “Não“, que mostrava sempre que os vereadores apresentavam propostas que custavam mais dinheiro — ou mais do que ele achasse razoável.

* O ano de 2001 só deve ser considerado como ponto de partida, visto que Rui Rio só tomou posse no início de 2002.

Mesmo na sua vida pessoal, Rio não tem fama de ser um grande gastador — bem pelo contrário. Os que trabalharam com ele na Câmara do Porto falam de “um homem sério, rigoroso, disciplinado, quase luterano“. Quando foi desafiado pela jornalista Anabela Mota Ribeiro, durante uma entrevista de vida, a fazer um autorretrato respondeu imediatamente com o exemplo das boas finanças da câmara. “Não faço isto para ter esta imagem, faço porque é correto. Nunca devi nada a ninguém. Dizem-me: ‘Não é crime nenhum dever’. Mas não me sinto bem”, respondeu.

Nessa mesma entrevista, Rio recorda como começou por amealhar 50 escudos numa caixa de latão das cigarrilhas do avô. E também confessa que, “salvo situações extraordinárias”, nunca gastou mais dinheiro do que aquele que efetivamente ganhou e que nunca gostou de pedir dinheiro ao pai. “O meu pai não era muito diferente de mim“, justificou, a rir. Chegou a definir-se como demasiado rigoroso para a maioria dos portugueses e menos rigoroso do que a maioria dos alemães, perceção própria que o impediu, em parte, de se mudar para a Alemanha, como sonhara o pai.

Rui Rio tinha sido uma escolha pessoal de Durão Barroso e uma imposição da concelhia do Porto à distrital controlada por Luís Filipe Menezes, o seu rival de sempre. Nem ele nem a máquina que o acompanhava sonharam sequer que fosse possível vencer aquelas eleições. As primeiras saídas à rua foram confrangedoras: pouca mobilização, pouca notoriedade e pouca mediatização. O objetivo assumido entre os apoiantes era evitar a maioria absoluta de Fernando Gomes e conseguir uma derrota honrosa. A vitória foi, a todos os níveis, surpreendente.

Tivemos de tomar conta de um barco gigantesco. Não estávamos preparados para aquilo. Nem sequer tínhamos consciência do que tínhamos pela frente”, conta um dos membros do primeiro executivo de Rio. Perante este cenário, o autarca pouco mais podia fazer do que “fechar-se no seu gabinete, rodeado da sua pequena equipa, e pôr mãos à obra”, alimentando o mito do político merceeiro, mais preocupado em pôr as contas em ordem do que com o que o rodeava. “Rio viajava pouco e não tinha paciência para as relações públicas e para as festas do croquete. Faltava-lhe essa mundividência, esse lado cosmopolita. Sempre foi muito resiliente, determinado e metódico, mas nunca teve aptidão para as festas e para o glamour“, completa outra fonte que acompanhou o percurso do antigo autarca desde a adolescência.

Os números de Rui Rio parecem dar-lhe razão: mesmo que os seus três mandatos tenham coincidido com a crise financeira no país, conseguiu reduzir a dívida da Câmara do Porto em mais de 100 milhões de euros, um feito reconhecido pela oposição e celebrado pelos apoiantes. Ainda teve de lidar com aquilo que dizia ser a “dívida oculta” que existia na Câmara do Porto, de cerca de 70 milhões de euros. No final do seu mandato, como fazia questão de repetir em cada intervenção pública, as empresas municipais não deviam “um tostão” aos bancos. E tudo isto foi conseguido ao mesmo tempo que investia 140 milhões de euros em reabilitação de bairros sociais — e via a Baixa da cidade ganhar uma nova vida.

A grande questão está no método escolhido pelo autarca: para a oposição, com PCP e Bloco de Esquerda à cabeça, Rio conseguiu isso à custa do corte no investimento. O gráfico seguinte, baseado em números oficiais, dá força a esta tese.

* O ano de 2001 só deve ser considerado como ponto de partida, visto que Rui Rio só tomou posse no início de 2002;
** Em 2003, a Câmara foi obrigada a pagar 24,5 milhões às empresas detentoras do Parque da Cidade, valor que avolumou a rubrica de investimento nesse ano. Nessa medida, esse valor não foi contabilizado neste gráfico.

Rui Rio só conseguiu o que conseguiu porque vendeu os anéis e deixou ficar os dedos“, reclama uma fonte ligada ao Bloco de Esquerda. Bloquistas e Rui Rio mantiveram, aliás, um conflito que se arrastou durante praticamente todo o mandato, com o presidente da câmara a recusar-se a fazer um inventariado dos bens da autarquia por alegada falta de meios — decisão que motivou vários reparos em várias auditorias externas realizadas às contas da câmara.

Era precisamente isso que notava a BDO & Associados, numa auditoria realizada em 2013, a que o Observador teve acesso: “O processo de inventariação dos bens imóveis não constitui uma garantia da sua plenitude, uma vez que este processo não contemplou a sua confrontação com outras fontes de informação, nomeadamente com os dados da Conservatória do Registo Predial. Desta forma não nos foi possível validar a plenitude do saldo da rubrica Bens de Domínio Público do Activo”, pode ler-se no referido documento.

Reservas repetidas, de uma forma ou de outra, em todos os anos de governação de Rui Rio. O Bloco de Esquerda chegou mesmo a acusar Rio de ter sido responsável pela “maior operação de subtração do património da cidade” desde os saques das tropas invasoras de Napoleão e dos absolutistas de D. Miguel, ao alienar mais de 200 milhões de euros em património, números que o antigo autarca sempre contestou. Em 2017, o atual executivo de Rui Moreira fez as contas e chegou à conclusão de que, “entre 2001 e 2013, a Câmara do Porto vendeu ou permutou mais de 84 milhões de euros em imóveis ou terrenos“.

Um olhar para a evolução da receita efetivamente conseguida e da despesa efetivamente paga (diferente das previsões iniciais feitas em qualquer orçamento), torna possível perceber que não existiu uma oscilação relevante naquelas rubricas, pelo que a redução da dívida terá de ter sido alcançada necessariamente por outra via que não apenas a redução da despesa da autarquia.

* O ano de 2001 só deve ser considerado como ponto de partida, visto que Rui Rio só tomou posse no início de 2002.

Mais do que questionar a imagem deixada por Rui Rio, a de um gestor rigoroso, alérgico ao desperdício de recursos e a investimentos pouco cuidadosos, os adversários que o antigo autarca deixou no Porto — e foram muitos — não esquecem a forma “ruinosa” como geriu o processo de demolição do Bairro do Aleixo, as obras da Metro do Porto que provocaram um contencioso de milhões de euros com o Estado português e os avanços e recuos em projetos como a renovação do Rosa Mota ou do Mercado do Bolhão, com prejuízo para autarquia.

A implosão do Aleixo. O projeto que foi abaixo e uma auditoria “assassina”

10h35. 16 de dezembro de 2011. Rui Rio acabava de embarcar no “Douro Spirit”, o barco da Douro Azul que o levará até meio do Rio Douro, juntamente com outras 100 pessoas que aceitaram o convite de Mário Ferreira, proprietário da empresa. Vai assistir dali à implosão da torre 5 do Bairro do Aleixo. Traz uma gabardina cinzenta e uma gravata cor de laranja. Meses antes, resistira às pressões de toda a oposição para suspender o processo de demolição do Aleixo. Para lá das razões ideológicas, os adversários criticavam o envolvimento com o caso BPN de Vítor Raposo, investidor que ia ficar com 60% do Fundo do Aleixo. Rio ignorou todos os apelos. E o dia finalmente chegara.

A chuva e o vento que se faziam sentir não conseguiam afastar os insultos vindos da margem. A polícia foi obrigada a lançar gás pimenta sobre os moradores do Aleixo. Na esplanada coberta, junto à piscina do convés, já se serviam bolinhos, salgados e sumo de laranja. O upper deck fora convertido em camarote para que Rui Rio pudesse assistir, na primeira fila, ao momento. Às 11h41, o autarca subiu, finalmente, ao piso superior. A implosão estava por minutos. Às 11h45, dava-se a detonação. Rio descontraía finalmente. Atrás de si, houve quem sugerisse brindes. O presidente da câmara resistia. É preciso “respeitar as pessoas que viveram ali”, dizia aos jornalistas. “Podem ter tido ali vidas aborrecidas e deprimentes, mas ninguém gosta de ver a sua casa demolida“. Assumindo que a crise financeira e a retração do crédito podia atrasar todo o processo, estava confiante: acreditava que ainda ia assistir, como autarca, à demolição da última torre. Às 12h15 as máquinas começaram a remover os destroços da demolição da torre 5 do Aleixo, mas Rio já não assistiria a esse momento.

Nem a esse, nem à demolição da totalidade do Bairro do Aleixo. Enquanto presidente da Câmara do Porto, ainda veria a implosão da torre 4, mas as outras três torres resistiriam até hoje. Porquê? Rio justificou-se com a crise financeira que afetou o país e, em particular, com o setor da construção civil; os adversários e uma auditoria realizada pelo serviços da própria câmara atribuíram responsabilidades à gestão do então autarca do Porto.

É preciso recuar no tempo para perceber como foi preparada a demolição do Aleixo. Depois de aberto um concurso público, a Câmara do Porto atribuiu à Gesfimo, uma empresa do universo do Grupo Espírito Santo, a condução do processo. Em 2o09, foi criado um Fundo Imobiliário através do qual a autarquia e parceiros privados se comprometiam a demolir o bairro, sendo que os privados estavam obrigados, entre outros aspetos, a construir de raiz, a comprar habitação ou a reabilitar casas numa área equivalente à do Aleixo. Para dar liquidez ao fundo, Vítor Raposo deveria subscrever (em 2012) 60% das unidades, sendo que a Espart-Espírito Santo Participações Financeiras (SGPS) participaria com 30% do capital inicial e a Câmara com os restantes 10%. Isso não veio a acontecer.

A implosão estava por minutos. Às 11h45, dava-se a detonação. Rio descontraía finalmente. Atrás de si, houve quem sugerisse brindes. O presidente da câmara resistia. É preciso “respeitar as pessoas que viveram ali”, dizia aos jornalistas. “Podem ter tido ali vidas aborrecidas e deprimentes, mas ninguém gosta de ver a sua casa demolida.“
Declarações de Rui Rio, no dia da implosão da torre 5 do Aleixo

Vítor Raposo nunca chegou a avançar com o capital que lhe estava reservado. A 22 de novembro de 2011, o então sócio de Pedro Lima (filho de Duarte Lima) seria detido no aeroporto de Lisboa pela Polícia Judiciária, por causa de um negócio suspeito que envolvia crédito concedido pelo BPN e a aquisição de dois terrenos em Oeiras. Quase quatro anos depois, em abril de 2016, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmaria a decisão da primeira instância e condenaria Vítor Raposo a quatro anos de prisão efetiva, na sequência do caso Homeland, cujo ator principal foi Duarte Lima.

A saída de cena de Vítor Raposo obrigou, logo em 2012, à recomposição do Fundo do Aleixo, cujo capital passou dos 2,6 milhões de euros para os 5,3 milhões. Para o lugar do empresário, entrou António Oliveira, com 37% do capital. A Espart, do GES, e a Câmara do Porto, ficavam com 30% e 33% das participações, respetivamente, aumentando a exposição da autarquia a todo o processo. A queda de todo o universo Espírito Santo precipitou o resto: o Fundo do Aleixo ficou sem liquidez e perto da extinção.

Em julho de 2014, confrontado com a situação do Fundo do Aleixo, o novo presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, decidiu pedir aos serviços de auditoria da autarquia “um levantamento exaustivo” do fundo imobiliário gerido pelo GES. As conclusões da auditoria, reveladas em novembro desse ano, não deixariam pedra sobre pedra: em todo o processo houve falta de controlo de pagamentos e de obras realizadas, contabilização de faturas que “não deveriam ter sido aceites, à luz de qualquer critério”, incumprimento de prazos e de cláusulas contratuais, alterações legais que deveriam ter sido avaliadas pelo Tribunal de Contas e não foram e decisões passíveis de “apuramento de responsabilidade financeira sancionatória“.

No relatório “Apuramento das condições de constituição e funcionamento do Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado (INVESURB)”, a que o Observador teve acesso, os auditores apontaram muitas irregularidades à forma como foi conduzido todo o processo. À cabeça, o facto de o Fundo do Aleixo, ao contrário do que estava contratualizado, não ter disponibilizado “qualquer fogo para habitação social”, mesmo depois da demolição das duas torres. Ou seja, os “108 realojamentos” conseguidos, de um “total de 163” previstos, foram assegurados através de recursos próprios da autarquia, afetando a bolsa de fogos sociais disponíveis.

Os auditores da Câmara do Porto questionaram também a falta de acompanhamento das obras, chegando mesmo a dizer que não tinham obtido “qualquer evidência de diligências dos serviços para verificar a execução das empreitadas e demais trabalhos associados, prazos de execução e custos, facto crítico para a defesa dos interesses da autarquia“. Na mesma medida, os autores da auditoria notaram que, à data, o município não tinha realizado “qualquer pagamento, quer a fornecedores, quer a empreiteiros, por conta dos trabalhos de construção e reabilitação de edifícios, não obstante as faturas serem emitidas ao Município do Porto, mas pagas pelo Fundo a título de adiantamento”.

“Foram aceites faturas relativas ao Aleixo que não correspondem a custos e encargos relativos a demolições e custos associados ao loteamento. (…) Ao se permitir que o Município do Porto surja como ‘dono de obra’, de modo a que todas as faturas venham emitidas em seu nome, está-se a subverter todo o modelo negocial“, escreveram os auditores.

Mas foram duas adendas ao contrato celebrado entre a autarquia e a empresa do universo Espírito Santo que mais reservas levantaram aos auditores. A primeira, aprovada pela Assembleia Municipal, autorizou o aumento de capital do Fundo do Aleixo: a entrada do ex-selecionador nacional de futebol António Oliveira e uma maior participação da autarquia. A segunda, assinada por Rui Rio, permitiu a redução da área bruta de construção em relação ao que estava inicialmente estipulado. Nas duas alterações aos contratos, os auditores acreditam que os interesses da câmara não foram defendidos.

No final de 2011 e início de 2012, perante o incumprimento de Vítor Raposo, o Fundo do Aleixo corria o sério risco de perder a autorização da CMVM. Somava prejuízos e não conseguia atingir o património mínimo de 5 milhões de euros (o contratualizado era de 6 milhões, previstos na constituição do Fundo). É neste contexto que Rui Rio consegue fazer aprovar na Assembleia Municipal uma adenda ao contrato inicial que permite à câmara alargar a sua participação no Fundo para um máximo de 30% e a entrada de António Oliveira em cena.

Num primeiro momento, no entanto, o aumento de capital de mais 2,7 milhões de euros (549 mil euros em dinheiro e 2,2 milhões em espécie) “fez com que a autarquia ficasse com uma participação de 39% do capital, que só baixou para 30%, limite máximo definido na Adenda Contratual, através da venda de 500 unidades de participação” a António Oliveira, registando “uma menos-valia de 15.747,50 de euros“, pode ler-se na auditoria realizada pelos serviços da própria Câmara.

Além de concluírem que o aumento de capital e a menos-valia registada contradiziam “objetivamente propósitos enunciados pelo Município do Porto” do “não dispêndio de recursos na constituição do capital do Fundo”, os auditores consideraram que o princípio da concorrência tinha sido, “salvo melhor opinião, violado”, a partir do momento em que “o Município do Porto passou a deter uma participação acima do limite estabelecido (30%)”.

Os autores da auditoria acreditavam, por isso, que os “encargos patrimoniais significativos” justificavam o envio para o Tribunal de Contas para fiscalização prévia, algo que não aconteceu e que constituía, segundo os próprios, “uma infração suscetível de apuramento de responsabilidades sancionatórias“. Além disso, o aumento da participação da autarquia no Fundo, representou, argumentaram, “uma modificação muito significativa do modelo negocial estabelecido, com consequências ao nível da aplicação dos recursos públicos“. Para os auditores, essas modificações contratuais sugeriam “implicações negativas para o Município do Porto“.

A segunda adenda ao contrato inicial, que permitiu a redução de 5.037 m2 da área bruta de construção, recebeu luz verde do próprio presidente da Câmara do Porto. Para os auditores, esta alteração desrespeitou “algumas das condições postas a concurso, determinantes no modelo de avaliação aprovado”, o que podia “ferir o princípio de concorrência e, consequentemente, desrespeitar as normas legais relativas à contratação pública”, incorrendo, mais uma vez, no risco de apuramento pelo Tribunal de Contas “de responsabilidade financeira sancionatória”.

Tudo somado, os responsáveis pela auditoria não deixaram margem para dúvidas: “Não se alcançam os motivos que terão levado o Município a reforçar, de um modo muito significativo, a sua participação no Fundo, com o aumento de capital”. Por outras palavras: perante o desastre anunciado que representava o Fundo do Aleixo, os auditores não viram razões válidas para que a Câmara do Porto aumentasse a sua exposição ao risco.

O capítulo do Aleixo marcou o início do fim da relação entre o homem que liderou a Câmara do Porto durante 12 anos e o seu sucessor. “Rui Rio não perdoa. Quando sente que o traíram, não perdoa nunca. E esperava que Rui Moreira reconhecesse mais o trabalho dele, algo que não aconteceu…”, conta ao Observador uma fonte que acompanhou de perto o percurso de Rio.

A versão preliminar do relatório acabou por sair na comunicação social no início de novembro de 2014. As reações do PSD não tardaram: falou-se em “tentativa de assassínio político” de Rui Rio, denunciaram-se os “métodos eticamente reprováveis“, a alegada campanha suja orquestrada por Rui Moreira para justificar a não demolição das restantes torres do Aleixo e exigiu-se a cabeça do responsável pela fuga de informação. Rio manteve-se em silêncio e Moreira prometeu pronunciar-se apenas quando tivesse nas mãos o relatório final.

Esse dia chegaria a 17 de novembro de 2014. Nessa tarde, e já depois de ter apresentado a versão final aos vereadores numa reunião à porta fechada, o presidente da Câmara do Porto leu uma declaração aos jornalistas, sem direito a perguntas, para garantir que o objetivo da auditoria nunca fora colocar em causa “uma qualquer avaliação” da “honorabilidade” de Rui Rio.

A discussão formal chegaria a 2 de dezembro, na Assembleia Municipal, que acabou com o PSD isolado a atacar a “credibilidade” e competência dos auditores responsáveis pelo relatório, exigindo a sua demissão. Acusações que fizeram com que Rui Moreira perdesse a paciência: “Não aceito que venha aqui assassinar em público a competência de quadros da câmara”, contra-atacou o autarca, lembrando que os envolvidos no processo já trabalhavam no município no tempo de Rui Rio, sem que alguma vez tivesse sido questionada a sua competência. A Assembleia Municipal acabaria por aprovar o envio do relatório para o Tribunal de Contas e para a CMVM.

* Parte da discussão na Assembleia Municipal sobre a auditoria ao Fundo do Aleixo (2 de dezembro de 2014)

Seguiram-se meses de negociações para encontrar um novo parceiro para o Fundo do Aleixo, praticamente descapitalizado. Logo em fevereiro de 2o15, Rui Moreira comunicou que a Mota Engil seria o novo acionista do fundo imobiliário — restava saber em que condições. Em junho desse ano, o autarca explicou os termos do acordo: o fundo era recapitalizado, a Mota-Engil entrava com cerca de dois milhões de euros, equivalentes a quase 27% da totalidade do fundo, António Oliveira ficava com os mesmos 27%, e as empresas do universo Espírito Santo (Rio Forte e Cimenta), com quase 16% e 8,35%, respetivamente.

Quanto à Câmara do Porto, via reduzida a sua percentagem de participação, passando a deter apenas 22% do fundo, sendo que essa participação passou a ser integralmente em dinheiro, em vez de ser uma parte em espécie, depois de a autarquia ter comprado por cerca de 2 milhões de euros os terrenos que vendera em 2012 para recapitalizar o fundo. A Câmara ficava apenas à espera da luz verde do Tribunal de Contas para validar o acordo. Algo que chegaria no final de outubro de 2015. Nessa altura, o Tribunal de Contas considerou que o contrato assinado previa a entrada da Mota-Engil no capital do Fundo do Aleixo não se encontrava sujeito a fiscalização prévia e devolveu o acordo à Câmara do Porto, o sinal de que Rui Moreira precisava para dar sequência ao processo.

Para os sociais-democratas, no entanto, a decisão do Tribunal de Contas deu força aos seus argumentos: a auditoria interna ao Fundo do Aleixo foi uma campanha orquestrada para atingir Rui Rio. “Já tínhamos notado que a auditoria era uma tentativa de assassínio político de Rui Rio. Com este dado novo, que é o Tribunal de Contas a dizer que não é necessário visto prévio, ficou claro que era uma auditoria dirigida contra Rui Rio”, acusou o então líder da assembleia municipal do PSD, Luís Artur, que acabaria por romper com os sociais-democratas para se juntar a Rui Moreira — mas isso aconteceria muito depois.

Miguel Seabra, líder da concelhia do PSD/Porto, aproveitou a decisão do Tribunal de Contas para acusar o autarca de ter organizado uma tentativa de “assassínio político”, através de uma “pseudo-auditoria” ao Fundo do Bairro do Aleixo. “Mais uma vez se prova que Rui Rio fez tudo dentro da lei e com a maior transparência possível. A auditoria não foi mais do que uma tentativa de assassínio do caráter de Rui Rio”, repetiu Seabra.

De Rui Rio, no entanto, nunca se ouviu uma palavra sobre o assunto. Até hoje. Nem sobre a auditoria ao Aleixo, nem sobre qualquer decisão de Rui Moreira. Mas o capítulo do Aleixo marcou o início do fim da relação entre o homem que liderou a Câmara do Porto durante 12 anos e o seu sucessor. “Rui Rio não perdoa. Quando sente que o traíram, não perdoa nunca. E esperava que Rui Moreira reconhecesse mais o trabalho dele, algo que não aconteceu…”, conta ao Observador uma fonte que acompanhou de perto o percurso de Rio.

Nas autárquicas de 2017, Rui Rio cozinhou a candidatura de Álvaro Almeida à Câmara do Porto contra o mesmo Rui Moreira que apoiara quatro anos antes. E Álvaro Almeida fez toda a campanha assumindo-se como herdeiro de Rio, por oposição a Moreira, que só revelara “ingratidão”. Na noite em que conquistou a maioria absoluta, o atual presidente da autarquia não se esqueceu de Rio: “Os grandes derrotados desta noite têm rostos, rostos como os de António Tavares, Rui Rio e Paulo Rangel, por terem utilizado a cidade do Porto como território para disputas de índole nacional. As eleições autárquicas no Porto não são as primárias secretas do PSD”. Estava dado o golpe final na relação entre ambos.

Palácio de Cristal: a reabilitação falhada e milhões de fundos perdidos

Maio de 2016. O atual presidente da Câmara do Porto ordenaria uma auditoria interna para apurar se existira ou não “desperdício” de dinheiros públicos no processo de reconversão do Pavilhão Rosa Mota — projeto que nunca saiu do papel. Os sociais-democratas perderam a paciência e acusaram Rui Moreira de estar a tentar “matar o pai” político. O episódio do Aleixo não foi o único a motivar uma dura troca de acusações entre os homens de Rio e as tropas de Moreira.

O responsável pela defesa de Rio seria, mais uma vez, Miguel Seabra, da concelhia do PSD/Porto. “É a segunda tentativa de assassinato de caráter por parte de Rui Moreira contra Rui Rio [a primeira fora com a auditoria ao Fundo do Aleixo]. Perante a incapacidade para implementar o projeto de transformação do Pavilhão Rosa Mota, Rui Moreira volta a encomendar um relatório interno que desse para vender uma meia dúzia de notícias bombásticas, tal como fez com o Aleixo. E depois nada acontecerá porque, como bem sabe, não há nada para acontecer”, acusava então Seabra.

O processo de reconversão do Pavilhão Rosa Mota (ou Palácio de Cristal) arrastou-se durante praticamente toda a gestão de Rui Rio. De tal forma que, quando deixou a Câmara, em 2o13, o agora líder do PSD elegeu como maior mágoa o facto de nunca ter conseguido concretizar o projeto. “Um presidente de câmara pode fazer muito pouco no combate ao desemprego ou no crescimento económico direto. O Palácio [de Cristal] bem reabilitado, mas sobretudo o centro de congressos, teria uma alavancagem grande na economia. Sabendo isso, é obviamente aquilo que não consegui e mais gostaria de ter feito“, chegou a dizer o autarca.

A verdade é que, nos doze anos em que governou a Câmara do Porto, Rui Rio não conseguiu requalificar um edifício que, já em 2005, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) dizia estar em risco de cair. No final, o autarca desistiu da ideia, numa altura em que o projeto estava orçado em 25,7 milhões de euros e depois de perder 5,7 milhões de euros em fundos comunitários.

A conclusão das obras estava prevista para o final de 2011, mas o projeto foi desde logo muito contestado: inicialmente, além da modernização do Palácio de Cristal, a autarquia previa a construção de um espaço para conferências de menor dimensão nas proximidades do lago dos jardins seculares do Palácio de Cristal, o que implicava necessariamente o abate de árvores e a intervenção nos solos. Logo ali, num espaço que Rio chegou a eleger como sendo um dos seus lugares preferidos da cidade do Porto, durante um passeio matinal com a família, retratado pela revista Caras. O projeto ainda seria refeito, mas de nada valeria: com as autárquicas de 2013 a aproximarem-se, sem margem financeira para fazer face às despesas previstas, Rui Rio decidiu congelar tudo.

* Rui Rio em entrevista à SIC onde lamenta não ter reabilitado o Pavilhão Rosa Mota

O modelo de exploração encontrado pela autarquia também não convenceu a oposição. O autarca decidira-se por uma Parceria Público-Privada entre a Câmara do Porto, a Associação Empresarial de Portugal (AEP), a Parque Expo, o Pavilhão Atlântico e o Coliseu do Porto. Do investimento inicialmente previsto de 19 milhões de euros, a autarquia entrava com 10 milhões de euros, conseguidos através de um empréstimo bancário, os fundos comunitários representavam uma fatia de quase 6 milhões e os parceiros privados entravam com o restante capital.

A exploração do edifício seria concessionada a privados por 25 anos, mediante o pagamento de uma renda mensal de 550 mil euros e de 3 a 4 por cento dos proveitos. Mas nunca saiu do papel. Além de ter perdido os 5,7 milhões de euros em fundos comunitários, quando desistiu do processo, a Câmara foi obrigada a ressarcir o arquiteto Carlos Loureiro (responsável pelo projeto original e pelo novo) em 1,05 milhões de euros, entregando 916 mil euros em numerário e o restante através da doação de três edifícios no centro histórico do Porto.

O processo de requalificação do Pavilhão Rosa Mota seria herdado por Rui Moreira, que também não conseguiu tirar o projeto do papel (um novo, não o de Carlos Loureiro) durante os quatro anos do seu primeiro mandato. A premonição de Rio cumpria-se: na sua última Assembleia Municipal enquanto presidente da Câmara, a 23 de setembro de 2013, o autarca dizia que “o pior” que o seu sucessor ia ter pela frente era a obstrução “à reabilitação urbana”. E deixava um desabafo: “Se eu aqui ficasse o meu primeiro esforço seria para o Palácio. Seria politicamente correto dizer que era o Bolhão, mas não é.” O Bolhão é outra das histórias que pode ler adiante.

Metro do Porto. Carris fora, swaps dentro, milhões em causa

A paixão de Rui Rio por automóveis valeu-lhe muitos ataques da oposição ao logo dos seus 12 anos à frente dos destinos do Porto — à cabeça, os partidos mais à esquerda e vários setores da sociedade civil nunca lhe perdoaram a aposta nas corridas de automóveis por oposição à falta de investimento na cultura. Logo em 2005, o então presidente da câmara empenhou-se pessoalmente em devolver à cidade as corridas no velho Circuito da Boavista — que chegou a receber provas de Fórmula 1 — que já não se realizavam desde os anos 60. Para isso, era preciso preparar literalmente o caminho.

Nesse ano, o autarca ordenou a retirada dos carris que tinham sido instalados no viaduto do Parque da Cidade pela Metro do Porto, um investimento que rondava os 500 mil euros. Objetivo: preparar o viaduto para a realização do Grande Prémio do Porto. Apesar das críticas, Rio justificou a medida pela “inutilidade” dos carris: afinal, a linha que ligaria Matosinhos à Rotunda da Boavista já não ia passar por ali. Concluíra-se que aquela estrutura não tinha largura suficiente para permitir a passagem das composições. A oposição chamou-lhe um ato de “vandalismo“, pensado para alimentar o “capricho” de Rio.

Mas a retirada dos carris do viaduto não foi sequer o ponto mais polémico da relação do antigo autarca com a Metro do Porto. Ainda antes de receber a prova, a Câmara do Porto assinou um protocolo com a empresa, em que a Metro do Porto se predispunha a adiantar quase 4 milhões de euros à autarquia para obras na Avenida da Boavista, onde passaria mais tarde o metro. Primeiro detalhe: a avenida acolheu a realização do Grande Prémio e as obras foram apressadas para receber a prova. Segundo pormenor: apesar de prevista no papel, aquela nova linha de metro ainda não tinha sido autorizada pelo Governo de Pedro Santana Lopes — e nunca viria a sê-lo, nem no tempo de José Sócrates ou de Pedro Passos Coelho.

Ou seja, a Metro do Porto, de que Rui Rio era administrador não executivo e Valentim Loureiro presidente efetivo, pagou por obras de requalificação da Avenida da Boavista para receber uma linha de metro que nunca chegou a existir. Quando o escândalo rebentou, o acordo celebrado era Rio presidente interino do Conselho de Administração da Metro, apanhou de surpresa o próprio Ministério das Obras Públicas, liderado por António Mexia. O ministro pediu “informação urgente e completa” sobre esse protocolo que dizia desconhecer. O primeiro-ministro era Pedro Santana Lopes.

Mais de um ano depois, as conclusões do relatório da inspeção do Tribunal de Contas, que o Observador consultou aqui, questionavam a gestão da empresa e as despesas com as obras na Avenida da Boavista — precisamente pelo facto de terem sido concretizadas e pagas antes de se saber se uma nova linha passaria por ali. Os responsáveis pelo relatório eram claros:

“Face às diversas situações constantes do presente relatório, como sejam as irregularidades e outros aspetos menos adequados em matéria de remunerações dos gestores da empresa, a antecipação de empreitadas ainda não autorizadas (como é o caso da Avenida da Boavista), a carência ou insuficiência das formalidades legais em diversos procedimentos concursais, a prossecução de obras de requalificação urbana à revelia dos pressupostos legais para tal, e, principalmente, a atual situação financeira desta, não se alcançam os critérios que presidiram à atribuição dos prémios de gestão mencionados no parágrafo anterior, antes parecendo que a Metro do Porto poderia ser alvo de uma gestão mais eficiente.”

E o pior veio mesmo a concretizar-se: já em 2008, o Governo de José Sócrates alterou o plano original e decidiu que a expansão do Metro do Porto já não passaria pela Avenida da Boavista. À luz do protocolo celebrado, a Câmara estava em teoria obrigada a devolver os 3,8 milhões de euros à empresa.

O caso deu origem a um diferendo que só seria resolvido já durante o mandato de Rui Moreira, com o Acordo do Porto, em que o Estado considerava saldados os valores reclamados pela empresa à autarquia pelas obras na Avenida da Boavista e pelo levantamento dos carris no viaduto do Parque da Cidade.

Os problemas com a Metro do Porto não ficariam por aqui. Em 2010, depois de o Governo socialista ter exigido a devolução das remunerações auferidas pelos autarcas que exerceram a função de administradores não executivos na Metro entre 1 de Janeiro de 2007 e 1 de Setembro de 2009, Rio decidiu sair com estrondo. “Para este enxovalho público, passando para a opinião pública que recebi salários a que não tinha direito, é que já não estou disponível. Não tenho que estar permanentemente disponível para continuar a aturar este tipo de episódios em torno da Metro do Porto. Assumir responsabilidades de graça, ter de pagar para trabalhar, e ainda aparecer aos olhos da opinião pública como alguém que não teve um comportamento correto, ultrapassa os limites da seriedade e da ética”, explicou um muito agastado Rui Rio.

Mas teria mesmo de aturar mais episódios. Pelo menos, mais uma vez. Em 2013, com o escândalo do contratos swap financeiros a encher as páginas dos jornais, Rui Rio lançou-se a Maria Luís Albuquerque, dizendo que a então ministra das Finanças era o “elo mais fraco” do Governo e sugerindo que a governante não tinha condições para continuar no cargo. Sérgio Monteiro, na altura secretário de Estado dos Transportes, não deixaria Rio sem resposta, sugerindo que, como administrador não executivo, o autarca nada fizera para evitar a contratualização daqueles swaps.

* Rui Rio em entrevista à RTP, em 2013

Sérgio Monteiro não seria o único a fazer essa ponte. A oposição, mas também o ex-presidente da Metro do Porto Ricardo Fonseca, chegou a corresponsabilizar em pleno Parlamento Rui Rio por aqueles contratos. Em julho de 2008, o conselho de administração de que Rui Rio fazia parte enquanto administrador não executivo, aprovou por unanimidade um empréstimo de 100 milhões de euros no BNP e outro de 120 milhões no JP Morgan. O antigo responsável pela Metro do Porto foi claro: “Quem aprovou os novos swaps de 2008 foram os três membros do conselho executivo [Ricardo Fonseca, Maria Gorete Rato e Jorge Delgado], mais Rui Rio, Mário Almeida, Marco António Costa e Maria Fernanda Meneses”.

Um ano depois, foi também aprovado um outro empréstimo de 180 milhões de euros – 105 milhões no Deutsche Bank e 75 milhões no banco Nomura. Em 2010, foram assinadas duas novas operações de financiamento: 75 milhões de euros ao Barclays Bank e 50 milhões de euros à Caixa Geral de Depósitos.

Antes, em 2007, a empresa contratualizara um swap de taxa fixa para variável no valor de 89 milhões de euros com o Santander, que chegou a ser classificado como “candidato ao pior negócio de sempre“. De acordo com um um relatório do IGCP – Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública divulgado em 2013, as operações de cobertura de risco da taxa de juro — os chamados swap — do Metro do Porto registavam perdas potenciais na ordem dos 1.060 milhões de euros, fazendo da empresa a segunda do setor público com maiores riscos.

O caso acabou com a demissão de dois secretários de Estado que tinham tido responsabilidades na Metro do Porto e outros três gestores de empresas públicas. Na comissão parlamentar de inquérito, Juvenal da Silva Peneda, um dos secretários de Estado que deixou o Governo, assumiu a responsabilidade pelos contratos especulativos, mas lembrou que o conselho de administração da empresa chegou a contar com presidentes de várias câmaras municipais da região como Rui Rio, Narciso Miranda, Valentim Loureiro e Mário Almeida.

Paulo Braga Lino, diretor financeiro da Metro do Porto à altura dos factos, também acabou por ser afastado do cargo de secretário de Estado da Defesa. Quando foi ouvido no Parlamento, foi igualmente claro: “Não poderá ninguém invocar que não era conhecida a situação. Todas as informações que constam nos relatórios eram unanimemente aprovadas”. O caso acabaria por morrer, sem fazer rolar mais cabeças.

Um problema chamado Bolhão: que ficou por resolver

12 de dezembro de 2007. Rui Rio apresentou-se em conferência de imprensa para anunciar que a reabilitação do Mercado do Bolhão ia ser entregue à empresa holandesa TCN, a vencedora do concurso. O projeto era ambicioso: a obra previa a construção de um parque automóvel para 216 lugares em dois pisos, três pisos comerciais, apenas um dos quais reservado ao comércio tradicional e dois pisos para habitações de pequena dimensão e serviços. Os holandeses iam investir 50 milhões e ficariam com a exploração do espaço durante 50 anos. Em troca, a autarquia receberia um milhão de euros quando emitisse a licença de construção e uma percentagem dos resultados de exploração a partir do décimo ano.

Perante os jornalistas, Rio justificou-se: ainda que respeitando a história do mercado, era preciso dar “um sentido útil atual” ao Bolhão. E para isso era preciso investimento privado. “Não é possível fazê-lo com dinheiro público. Tem de passar por uma Parceria Público-Privada (PPP), logo, por investimento privado”, assegurava. Tudo estaria pronto no início de 2009, comprometia-se o autarca.

A 21 de janeiro de 2008, no dia em que o projeto era aprovado pela Assembleia Municipal do Porto, apesar dos votos contra de toda a oposição, Pedro Neves, o responsável pela empresa em Portugal, vinha a público assumir: “A demolição de todo o interior do Mercado do Bolhão é uma inevitabilidade para rentabilizar o investimento“. Isso, e a construção de dois novos pisos. “Com as rendas que os comerciantes pagam, era impossível recuperar o investimento. Para mantermos os comerciantes e não aumentar (ou aumentar o menos possível) as rendas, tínhamos que aumentar o espaço”, explica o engenheiro.

Os adversários de Rui Rio não gostam do que ouvem. O caso chega ao Parlamento, através de uma petição com 50 mil assinaturas. Organizam-se protestos contra aquilo que se diz ser a destruição do verdadeiro Mercado do Bolhão. Há associações e movimentos empenhados na causa, a sociedade civil e uma parte relevante do setor cultural da cidade juntam-se para manifestações à porta do Bolhão. Há quem sugira que Rio quer construir um shopping no velho mercado.

Esse receio nunca se veio a concretizar. Nem esse, nem, na verdade, a reabilitação do Mercado do Bolhão. A intervenção do antigo Igespar (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico), que impôs alterações ao projeto inicial, não foi acolhida pela empresa holandesa. Perante a recusa da TCN em assinar a escritura pública da requalificação, a Câmara do Porto decidiu romper com a empresa.

A oposição celebrou o desfecho do processo do Bolhão, falando na “maior derrota política” do autarca, apontando o “falhanço clamoroso” e denunciando a “cobardia política” face à ausência do presidente da Câmara do Porto no dia em que foi anunciada a decisão.

A decisão foi anunciada pelo então vereador do Urbanismo, Lino Ferreira, sem a presença de Rui Rio. A oposição celebrou o desfecho, falando na “maior derrota política” do autarca, apontando o “falhanço clamoroso” e denunciando a “cobardia política” face à ausência do presidente da Câmara do Porto no dia em que foi anunciada a decisão.

A TCN — que se viu envolvida no caso CTT — acabou por ser declarada insolvente em 2009, deixando a Câmara do Porto credora da empresa em 3,3 milhões de euros. Rio ficou com um problema em mãos e teve de entregar o projeto de reabilitação ao Igespar, deixando apenas a exploração comercial aos privados. A obra, um projeto “minimalista”, como chegou a descrever o autarca, previa quase 20 milhões de investimento e seria suportada por investimento público e por fundos comunitários.

Esse apoio comunitário, no entanto, nunca chegou. E a câmara não podia arcar com a despesa toda, defendia-se Rio. O autarca voltou-se então para uma pequena “lavagem de cara” do mercado, obras de intervenção orçadas em cerca de 700 mil euros — projeto que também nunca chegou a sair da gaveta. Rui Rio terminaria o seu último mandato queixando-se dos “sucessivos atrasos” do Tribunal de Contas em validar o processo. E terminaria também os 12 anos à frente da Câmara sem um renovado Mercado do Bolhão, algo que nunca esqueceu.

A luz ao fundo do Túnel de Ceuta

9 de outubro de 2005. Às 20 horas, os telejornais abrem com as notícias da hecatombe eleitoral do PS. O jornal Público, por exemplo, faz manchete no dia seguinte com o título “Rosa Choque“. Apesar da maioria absoluta de 2005, os socialistas, liderados por José Sócrates, tiveram um resultado autárquico inferior ao de 2001 — o mesmo que provocou a queda de António Costa. Quando faltavam menos de 20 minutos para a meia-noite, Sócrates apareceu diante das câmaras de televisão para o discurso da noite. Começou por reconhecer a derrota, mas, como é da praxe, recusou leituras nacionais das autárquicas. “Quem quer resumir outro sentido no voto dos portugueses não está a prestar um bom serviço à democracia e está a demonstrar um evidente oportunismo político”. Mais a norte, no entanto, havia quem pensasse de forma diferente.

Rui Rio tinha o discurso bem estudado. As relações entre o autarca e o Governo de José Sócrates tinham-se deteriorado desde o início do diferendo sobre o Túnel de Ceuta. Na corrida autárquica, Francisco Assis tinha sido uma escolha pessoal de Sócrates para derrubar o presidente da Câmara do Porto. O primeiro-ministro empenhara-se ativamente para eleger o candidato socialista, mas falhara. Com os primeiros resultados na mão, que confirmavam praticamente a maioria absoluta, Rio surgiu no seu quartel-general com um fato azul escuro e uma gravata vermelha com listas brancas. Trazia o alvo bem definido: José Sócrates.

“O senhor primeiro-ministro empenhou-se politicamente e pessoalmente no Porto, veio cá quatro vezes apoiar a candidatura do PS. O senhor primeiro-ministro perdeu as eleições no Porto. Aquilo que peço é que o engenheiro José Sócrates aceite democraticamente a derrota e não me trate como um adversário político porque eu não quero ser seu adversário político, quero respeitá-lo e quero que ele me respeite como presidente da Câmara do Porto. Faço aqui um apelo e que esse primeiro sinal seja deixar-nos construir definitivamente o Túnel de Ceuta”, disparou Rui Rio. Foi ovacionado pelos militantes.

A referência ao Túnel de Ceuta tinha uma razão de ser. Perante o inquebrável braço de ferro entre a Câmara e o Governo a propósito de todo o processo, Rui Rio enviara uma carta ao Governo, a 5 de agosto desse ano, com um desafio claro: que as eleições autárquicas de 2005 fossem um referendo à continuação das obras do Túnel de Ceuta. Se Rio ganhasse, as obras iam para a frente; se Rio perdesse, o Governo tinha vencido e o autarca saía de cena.

O caso do Túnel de Ceuta começou ainda antes de Rui Rio ter tomado posse como presidente da Câmara do Porto. Em 1996, Fernando Gomes, autarca eleito pelo PS, ordenou o início da obra. Logo no início do processo, recebeu um primeiro chumbo do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), devido à proximidade de uma das saídas com o Instituto de Medicina Legal. Apesar desse chumbo, não foi decretado qualquer embargo. A obra avançaria até 2000, ano em que Nuno Cardoso, que substituiu Gomes quando este foi para o Governo de António Guterres, decidiu suspender a obra por deficiências no projeto e por falta de financiamento.

“O senhor primeiro-ministro empenhou-se politicamente e pessoalmente no Porto, veio cá quatro vezes apoiar a candidatura do PS. O senhor primeiro-ministro perdeu as eleições no Porto. Aquilo que peço é que o engenheiro José Sócrates aceite democraticamente a derrota e não me trate como um adversário político."
Rui Rio, na noite eleitoral de 2005

Em 2003, dois anos depois de vencer as eleições, Rui Rio decidiu retomar a obra, já com o projeto revisto — prevendo, desta vez, o prolongamento do túnel até à Rua D. Manuel II. No entanto, o IPPAR, sob a tutela do Ministério da Cultura de Isabel Pires de Lima, voltaria a chumbar o projeto devido à proximidade com o Museu Soares dos Reis. Com os pareceres negativos nas mãos, o Governo decide-se pelo embargo da obra. Rio não quer aceitar e dá ordens para que a obra continue.

A questão torna-se quase pessoal. Isabel Pires de Lima acusa Rui Rio de se julgar “acima da lei” e de estar “a desrespeitar o Estado”. O autarca diz “não ter medo” da ministra, garante que Isabel Pires de Lima declarou “guerra à cidade do Porto” e denuncia aquilo que diz ser a “chantagem“, a “birra” e a “teimosia” da ministra. O processo acabaria no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP), depois de o IPPAR ter apresentado queixa-crime contra o autarca. Rio seria mesmo constituído arguido por desobediência ao embargo e por prejuízos ao Museu Soares dos Reis.

Em fevereiro de 2006, quatro meses depois de ter conquistado a maioria absoluta, Rui Rio e a nova direção do IPPAR chegam a acordo em relação ao projeto para o Túnel de Ceuta, que pouco difere do original. Elísio Summavielle, que sucedeu a João Rodeia como presidente daquele instituto, decide retirar as queixas contra o autarca. A decisão provoca a demissão em bloco da Direção Regional do Porto do IPPAR. Fala-se abertamente em “cedência” e “volte-face inexplicável” do Ministério da Cultura.

No dia em que inaugurou o Túnel de Ceuta, a 18 de outubro de 2006, depois de 10 anos de avanços e recuos, o presidente da Câmara do Porto não poupou recados aos Governos. “Que no futuro nunca mais se repita nada igual e que nenhuma outra obra demore dez anos. O importante no processo é aprender com tudo que aconteceu e o relacionamento entre a Câmara do Porto e o Governo não se confina apenas ao Túnel de Ceuta. Há outros dossiês importantes que vão exigir um diálogo aprofundado, para bem da cidade”. Quanto a Isabel Pires de Lima, ministra muito contestada desde o início, sairia em 2008, pela porta pequena do Governo. Rui Rio vencera a batalha.

A guerra com o FC Porto que levou à intervenção de Jorge Sampaio

24 de abril de 2001. Rui Rio apresentava-se pela primeira vez aos militantes do partido como candidato à Câmara Municipal do Porto. A data era assumidamente simbólica: o social-democrata escolhia a véspera do 25 de Abril para evocar os valores democráticos e a “enorme esperança” que nasceram nesse dia. Rio queria agora trazer uma “nova esperança” ao Porto.

Nesse dia, o candidato do PSD falava numa democracia doente e na “emergência de novos e fortes poderes, sem controlo democrático direto”, que “foi transformando o poder político num poder mais fraco e, portanto, menos apelativo”. “O povo controla o poder político, só que outros poderes há que, sem legitimidade democrática condicionam e o enfraquecem, de forma preocupante”, diagnosticava Rio.

O principal alvo era Fernando Gomes, o ex-presidente da Câmara que tinha deixado a autarquia para assumir funções no Governo de António Guterres, deixando no seu lugar Nuno Cardoso. Rio voltava-se contra ele, símbolo de quem olhava para a cidade como um “heliporto donde se levanta e aterra em função das necessidades da própria carreira político-partidária”.

Nesse mesmo discurso, Rio apontava baterias às “monstruosidades urbanísticas“, aos “edifícios gigantescos e desproporcionados”, alimentados pelos “interesses de ordem particular“, que levantavam “legítimas dúvidas sobre a seriedade e a transparência” da autarquia. “Não será possível demolir as asneiras que nos últimos anos se fizeram e que oprimem a cidade, mas é possível parar de vez com esta pouca-vergonha. É esse o compromisso que aqui assumo, de forma inequívoca e com empenhada convicção”, prometia.

Haveria ainda mais um ataque velado a Fernando Gomes e a Nuno Cardoso, socialistas que, enquanto autarcas, foram sempre próximos do FC Porto. “A nossa afirmação política não se pode resumir aos êxitos desportivos que a cidade consegue. Festejar e promover esses êxitos é positivo sob todos os pontos de vista. Utilizá-los de forma sistemática e abusiva para promoção política pessoal é um tique que nos diminui e nos reduz politicamente perante o país”, notava Rio.

O primeiro discurso de Rui Rio, transcrito no livro Rui Rio — Raízes de Aço, do psiquiatra e amigo Carlos Mota Cardoso, era um prenúncio do que estaria na origem da polémica sobre o Plano de Pormenor das Antas e do diferendo entre o autarca e o FC Porto: política, urbanismo e futebol.

A relação com Pinto da Costa foi tensa desde o primeiro minuto. O histórico presidente do FC Porto chegou mesmo a faltar à tomada de posse de Rui Rio como presidente da Câmara do Porto. Seria o primeiro round de uma relação de inimizade que dura até aos tempos de hoje. Ainda em dezembro de 2016, os responsáveis da Porto Comercial SAD proibiram a SIC Notícias de realizar uma conferência no pavilhão Dragão-Caixa, depois de saberem que um dos convidados era Rui Rio.

Mas tudo começou com o Plano de Pormenor das Antas. O projeto foi desenvolvido pelo arquiteto Manuel Salgado — que em 2007 se tornou vereador do urbanismo na câmara de Lisboa, com António Costa. O arquiteto previa a construção do Estádio do Dragão, um amplo complexo desportivo, o aparecimento de novas acessos, com três alamedas, um túnel e dois viadutos, uma nova área residencial, uma grande área comercial, um parque urbano, vários parques de estacionamento, uma estação de metro e um pavilhão multiusos. Tudo somado, o empreendimento representava um investimento público e privado na ordem dos 500 milhões de euros.

Quando chegou à Câmara, no final de dezembro, Rui Rio contestou o projeto, levantando dúvidas sobre as dimensões dos edifícios previstos, o financiamento dos acessos a construir — e que teriam de ser suportados pela Câmara — e as áreas comerciais que constavam do plano original. O autarca também questionou os prazos para a discussão pública do projeto, reabrindo o processo. A Associação de Comerciantes do Porto (ACP) aproveitou esta nova fase para questionar a área comercial prevista no projeto.

Logo em fevereiro de 2002, Rui Rio garantiu não ter dinheiro para pagar o Plano de Pormenor das Antas. Segundo o autarca, o endividamento da Câmara era de 90 milhões de euros, a capacidade de endividamento era de pouco mais de 15 milhões de euros e só para suportar o projeto das Antas a autarquia precisava de gastar cerca de 60 milhões — um valor sempre contestado pelos adversários do autarca. “A Câmara do Porto não tem meios para financiar esta obra. E uma vez que o país decidiu fazer o Euro 2004 em Portugal, o Governo deve ponderar a posição que tem tido até à data e deve aumentar o nível de apoio ao novo estádio do Futebol Clube do Porto”, exigia Rio.

Mas o presidente da câmara queria mais e exigia que a área destinada a comércio concentrado fosse reduzida de 40 mil metros para 10 mil metros quadrados. A ACP, por sua vez, exigia contrapartidas porque acreditava que o novo centro comercial ia colocar em causa o comércio tradicional; e o Grupo Amorim queria ver os seus interesses protegidos, porque caso contrário abandonava o negócio.

É no meio desta efervescência que Pinto da Costa decide lançar a bomba atómica: as obras do Estádio do Dragão estavam suspensas até que a Câmara, a ACP e o Grupo Amorim chegassem a acordo. “Todo este processo é uma prova inequívoca de falta de senso do presidente da Câmara Municipal do Porto. A Câmara disse que não faria qualquer obra sem ter garantidos todos os meios financeiros, pois o FC Porto faz o mesmo. O acordo com o promotor imobiliário (Grupo Amorim/ECOP) previa a existência de uma área comercial de 40 mil m2. Agora a construção do estádio não é viável. Não temos dinheiro para o pagar. Por isso nós, que cumprimos contratos, decidimos suspender os trabalhos”.

Os alertas soaram por todo o lado. Todos os agentes políticos e desportivos que tinham algo a dizer sobre o processo tentaram apaziguar as partes. A UEFA ameaçava cancelar tudo. Mais de mil adeptos do FC Porto juntaram-se na Avenida dos Aliados, exigindo a cabeça de Rio. E o autarca só não a perdeu porque foi escoltado pela polícia. O Presidente da República, Jorge Sampaio, decidiu intervir e os seus assessores mediaram todo o processo a partir daí.

Seguiram-se meses de duras negociações, com alterações atrás de alterações ao Plano de Pormenor das Antas. A 16 de abril de 2002, a câmara aprovou finalmente o plano das Antas. Rio conseguiu algumas vitórias: viu a área destinada ao comércio reduzida e conseguiu que o projeto trouxesse menos densidade habitacional às imediações do Estádio do Dragão. A participação da autarquia no projeto cifrava-se nos 25 milhões de euros e o Grupo Amorim entregava cinco milhões de euros à ACP como compensação.

No dia em que apresentou a solução para as Antas, Rio não escondeu a resignação. “Se tivesse sido eu o presidente da câmara há dois anos, jamais teria sido surgido semelhante urbanização. Tenho consciência de que a Câmara do Porto não começou com a minha tomada de posse e que, portanto, não é possível mudar radicalmente algo que já está em andamento”. O autarca não resistiria, ainda assim, a deixar um recado: no braço de ferro com Pinto da Costa, fora ele que ganhara. “Apesar de a versão final estar muito longe daquilo que seria a minha versão, decidi votá-la favoravelmente em nome das alterações conseguidas e, acima de tudo, em nome de um processo político que marcou bem a diferença, face àquilo que foi a política portuense nos últimos anos”.

As relações entre Rio e o presidente do FC Porto nunca mais se normalizaram. Pinto da Costa empenhou-se politicamente contra o Rui Rio e declarou o presidente da câmara persona non grata no Estádio do Dragão. No dia em que inaugurou os acessos ao recinto, Rio chegou mesmo a ser insultado por adeptos portistas. O presidente da Câmara do Porto também nunca esqueceu as provocações de Pinto da Costa e recusou-se sempre a receber o clube na Avenida dos Aliados, apesar das conquistas nacionais e europeias que foi somando. As duas maiorias absolutas que conquistou, mesmo depois da novela do Plano de Pormenor das Antas, dão força ao mito do homem que enfrentou a alegada promiscuidade entre o poder político e o futebol que existia na cidade do Porto.

“O rei do Pimba”. A luta com os agentes da cultura

22 de julho de 2002. A tarde de festa ia ainda no início. O Bairro das Campinas, no Porto, tem tudo pronto para receber o cantor Emanuel, a estrela da música “pimba” portuguesa. Rui Rio chegou acompanhado pelo ministro da Cultura, Pedro Roseta. Depois de subir ao palco para prometer ajuda aos moradores de um dos bairros mais degradados da cidade, o autarca lançou-se para os braços da primeira sortuda. Pedro Roseta seguiu-lhe os passos e os dois ensaiaram um pé de dança ao som dos artistas convidados pela Rádio Festival.

Com os primeiros cortes de verbas à Fundação Ciência e Desenvolvimento já anunciados pela câmara, os jornalistas não resistem em perguntar: o estilo “pimba” podia ser um meio de democratizar a cultura? E Rio não hesita: “Em vez de apoios monstruosos, devemos juntar o útil ao agradável. A câmara deve dar à população momentos de alegria, porque são pessoas que ganham pouco e têm uma vida difícil“, explica-se. Ao lado, Pedro Roseta não esconde o embaraço. “A democratização passa pela escola, para que as pessoas tenham espírito aberto. Devemos aproveitar estes momentos para chamar a atenção dos adultos que não vão à escola para os grandes nomes da literatura, da música“, tenta corrigir.

Seria demasiado tarde. No dia seguinte, o jornal Público dedicou um longo artigo à visita de Rio ao Bairro das Campinas. O título era sugestivo: “Rui Rio rivaliza com rei da música ‘pimba’“. A fotografia que ilustrava a chamada de capa retratava um sorridente Rui Rio ao lado de um embaraçado Pedro Roseta. Por estes e outros episódios, os adversários de Rui Rio nunca lhe perdoaram aquilo que diziam ser a notória falta de sensibilidade cultural do autarca.

Crédito Manuel Roberto / Jornal Público

A herança que Rio deixou na Cultura da cidade do Porto foi um dos pontos mais contestados no currículo do ex-presidente da câmara. Ao longo de 12 anos, o novo líder do PSD travou uma batalha contra aquilo que dizia ser a cultura de subsídio-dependência instalada entre os agentes culturais da cidade. Por isso, foi acusado de hostilizar abertamente o setor, que nunca se cansou de responder: além das muitas manifestações contra a política cultural da autarquia, houve mesmo ações judiciais interpostas contra a câmara. As vaias a Rio na inauguração do Fantasporto, que a autarquia subsidiava apesar dos cortes impostos, foram talvez um momento de viragem para o presidente da câmara.

O autarca nunca esqueceu a afronta. Em 2005, Rio impôs uma cláusula para este tipo de apoios: as instituições apoiadas pela câmara deviam abster-se de fazer críticas à autarquia que colocassem em causa o bom nome e a imagem do município enquanto entidade co-financiadora do evento. A oposição viu ali uma imposição anti-democrática e censória; as instituições que se candidatavam a apoios consideraram-na uma tentativa de silenciamento; o provedor de Justiça apontou-lhe o caráter “ilegítimo“; mas Rio chamou-lhe uma questão “elementar”, de “boa educação” e “cívica”.

Mas foi a concessão do Teatro Rivoli a privados que mais dores de cabeça deu a Rui Rio. A 15 de outubro de 2006, um grupo de quase 30 pessoas decidiu barricar-se no teatro contra a privatização do teatro municipal. O braço de ferro manteve-se durante mais de três dias, com Rui Rio a recusar qualquer tipo de diálogo com os manifestantes. Isabel Pires de Lima, a mesma ministra da Cultura que manteve um diferendo com o autarca a propósito do Túnel de Ceuta, foi chamada a intervir e ainda admitiu mediar o conflito. De nada valeu. À medida que os dias passavam, a câmara aumentou a pressão: cortou a eletricidade, a água e barrou a porta lateral que permitia as comunicações dos ocupantes com o exterior.

Os relatos desses momentos são quase bizarros à luz dos dias de hoje: assim que a entrada lateral foi fechada, os mantimentos passaram a ser habilmente introduzidos por uma estreita fresta, fossem maços de tabaco, pão, café ou chocolates. Se a PSP desligava o amplificador colocado à porta do Rivoli de onde saíam as palavras de ordem contra Rio, os manifestantes ligavam outro. No exterior, eram muitos os que se juntavam à causa dos ocupantes. O autarca mantinha-se em silêncio; já a câmara avançava com uma queixa-crime por ocupação indevida.

Depois de 79 horas da ocupação, a PSP interveio finalmente. Cerca de 100 polícias, transportados por oito carrinhas, chegaram ao local às 5h50. Afastaram os manifestantes que dormiam no exterior, vedaram o perímetro exterior, cortaram o trânsito e entraram depois no teatro onde já só permaneciam 13 pessoas. Seriam retiradas sem apresentarem resistência. Um ano depois, a queixa-crime apresentada contra o grupo seria arquivada pelo Tribunal de Instrução do Porto.

O Rivoli acabaria mesmo por ser concessionado a Filipe La Feria, como temiam os manifestantes. Mas nem assim as dores de cabeça terminaram para Rui Rio. O encenador explorou o teatro municipal entre 2007 e 2010, ano em que saiu, assumindo que as “dívidas” que tinha acumulado não davam para mais. As notícias sobre os pagamentos em atraso a atores e da degradação do teatro continuaram a dominar a agenda mediática.

Rui Rio pôs-se sempre à margem destas polémicas. Ainda sobre La Feria, o presidente chegou a justificar: “Ele esteve lá quatro anos e o montante [da poupança] não terá chegado aos 10 milhões. [Cerca] de nove milhões, que estão investidos nos bairros sociais“. Para o autarca, foi sempre uma questão de prioridades: se não havia dinheiro para tudo, os apoios à cultura tinham de ser racionalizados. “Não se pode gastar em teatro o dobro do que em ação social“, ia justificando o autarca.

Para Rio, a questão tornou-se quase pessoal: “Havia uma certa elite cultural no Porto que não o suportava; e Rio não estava disposto a quebrar“, nota uma fonte que trabalhou de perto com o autarca. Em 2009, quando foi ao programa dos Gato Fedorento, o Esmiúça os Sufrágios, na SIC, Rio respondeu com sarcasmo às provocações de Ricardo Araújo Pereira. “Há um conjunto de agentes culturais que atuavam e que não tinham público, que dependiam dos subsídios da câmara e que me estão imensamente gratos porque eu acabei com os subsídios e eles ganharam a sua independência. Sabe que a cultura é de esquerda. Uma pessoa de direita, quase fascista como eu não tem ideias culturais nenhumas”, ironizou.

A verdade é que o homem que não lia romances porque preferia os “livros técnicos na área da Economia” ou “os de história”, marcou uma época na cultura da cidade. Depois dele, Rui Moreira apostou tudo em reforçar a aposta cultural ao Porto, facto que lhe mereceu elogios até da oposição.

Doze anos a malhar na comunicação social

9 de outubro de 2005. O discurso de vitória de Rui Rio já vai adiantado. Para trás já tinham ficado as críticas a José Sócrates e o desafio deixado a propósito do Túnel de Ceuta. O autarca está galvanizado com a maioria que acabara de alcançar. Tinha desafiado tudo e todos — Governo incluído — e, mais uma vez, ganhara. Mas havia um adversário que lhe tinha dado particular gosto derrotar: o jornal Público.

“Devo aqui muito claramente dizer que para mim os principais derrotados de hoje não são nem o PS, nem a CDU, nem o Bloco de Esquerda. Os principais derrotados estão na comunicação social que, durante quatro anos, uma semana depois de eu ter entrado só denegriram, só mentiram. Sabemos que o jornal Público desde o primeiro dia só fez oposição à câmara do Porto. A democracia precisa de mais informação e não de desinformação. O apelo que faço é que possamos começar vida nova com mais independência e mais isenção”. Estava marcada uma posição.

O Público não seria o único ódio de estimação de Rui Rio na comunicação social. O autarca alimentou uma longa novela de acusações e contra-acusações com o Jornal de Notícias, servindo-se do site da Câmara Municipal do Porto como arma de arremesso contra os jornais que o visavam. Com tamanha truculência, o autarca tornou-se cliente habitual da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), ora como visado, ora como queixoso. Numa só deliberação da ERC, há referências a 32 artigos publicados pela Câmara Municipal sobretudo no site, que vão desde “JN baixa nível da intrigalhada”, a “JN manipula para atacar Câmara do Porto”, passando por “JN perde noção do ridículo” ou “Mau jornalismo ou a história de frustrações mal contadas”.

O autarca punha desmentidos nos ecrãs publicitários da câmara por toda a cidade. Até chegou a dizer: “Peguei no site e fiz o que me faziam. Parece que um jornal que vende 100 mil pode fazê-lo e um sítio visto por cinco mil já não pode!”. No Parlamento, José Leite Pereira, ex-diretor do JN, revelou a existência de pressões da Câmara do Porto para o demitirem. Henrique Granadeiro, que nessa época presidia à Lusomundo — empresa que detinha o jornal — nunca o desmentiria.

Rui Rio ficava louco com as notícias do JN e do Público. Ficava completamente fora de si. Perdia as estribeiras”, conta ao Observador um vereador que pertenceu ao primeiro executivo de Rio. “Era como se fossem duas pessoas diferentes: o alemão que geria a câmara com um rigor e uma frieza exemplares; e o latino, que perdia o controlo com as críticas da comunicação social”, completa a mesma fonte.

“As coisas foram melhorando com o tempo. Às vezes tinha acessos de fúria porque achava que as coisas não eram transmitidas como ele achava que deviam ser transmitidas. Mas foi melhorando nesse aspeto. Os primeiros anos terão sido os mais difíceis nesse domínio”, contrapõe um vereador que esteve com Rio no último mandato do autarca.

Em muitos casos, eram as críticas da comunicação social que o moviam, como chegou a admitir à jornalista Anabela Mota Ribeiro. “Quando a oposição ataca ou critica de forma maldosa e sem razão, dá-me força. Se vejo um jornal ostensivamente a fazer-me oposição, dá-me força. Se sou constituído arguido por isto ou por aquilo, dá-me força. Quando é ‘vamos lixá-lo´, dá-me força.”

A experiência enquanto presidente da Câmara do Porto deu a Rio — ou pelo menos reforçou — a convicção de que a comunicação social precisava de limites. Nas suas várias intervenções públicas ao longo dos anos, o social-democrata corresponsabilizou de várias formas a imprensa pela “degradação da democracia” e foi defendendo novas “balizas legais para a comunicação social. No dia em que a câmara assinalou o 35º aniversário do 25 de Abril, em 2009, Rio resumiu assim o que pensa do estado do jornalismo em Portugal:

“Manipular a informação, fazer títulos enganosos, desinformar as audiências, recortar os factos à medida, promover ostensivamente candidatos ou candidatas ou tratar de forma diferente o que é igual, não é seguramente saudável para o regime. Fazer julgamentos populares nas páginas dos jornais, violar o segredo de justiça ou reunir fragmentos de verdade para contar uma mentira, não é liberdade de imprensa – é, antes do mais, alienar um importante dever democrático, de forma leviana e irresponsável. A crise das instituições também passa pela forma como a comunicação social, muitas vezes, as trata publicamente.”

“Rui Rio ficava louco com as notícias do JN e do Público. Ficava completamente fora de si. Perdia as estribeiras”, conta ao Observador um vereador que pertenceu ao primeiro executivo de Rio. “Era como se fossem duas pessoas diferentes: o alemão que geria a câmara com um rigor e uma frieza exemplares; e o latino, que perdia o controlo com as críticas da comunicação social”, completa a mesma fonte.

A guerra contra os arrumadores, a droga e a insegurança

22 de novembro de 2001. Passaram-se meses desde a apresentação da candidatura de Rui Rio. Meses de pré-campanha na rua e de ataques, muitos ataques, a Fernando Gomes e à herança socialista. O ex-presidente da Câmara, que tinha deixado a autarquia para ocupar a pasta de ministro da Administração Interna de António Guterres, voltava ao Porto depois de ter sido afastado pelo então primeiro-ministro. Rio não se cansava de explorar essa ferida aberta: Gomes deixara a cidade para se juntar à corte lisboeta e acabara afastado por “incompetência” — uma “incompetência” já demonstrada na cidade do Porto

Chegara o dia de apresentar o programa com que ia concorrer às eleições autárquicas. Rio tinha um filão bem definido: o aumento da criminalidade e da insegurança no Porto, que Gomes tinha sido incapaz de conter. E “diretamente ligado” à insegurança estava o “problema da droga”. E diretamente ligado ao “problema da droga” estavam os “arrumadores”. Para conter o vírus da insegurança e da toxicodependência era preciso “acabar” com os “arrumadores”: “Um triste fenómeno nado e criado no Porto que, a todos, nos deve envergonhar”, expunha o social-democrata.

“Vamos levar a cabo a inserção desses cidadãos [os arrumadores], dando-lhes uma oportunidade. Aqueles que a aproveitarem serão por nós apoiados com o carinho e a compreensão humana que é devida. Os que não a quiserem aproveitar cairão nas malhas da polícia, porque não é sustentável que continuem a importunar os cidadãos no meio da rua. Temos de ser uma cidade civilizada e ordeira e, para isso, como disse, é indispensável que a polícia tenha autoridade”, remata Rio.

O discurso desse dia vem transcrito mais uma vez no livro “Rui Rio — Raízes de Aço”, de Carlos Mota Cardoso. As palavras do social-democrata eram o primeiro vislumbre do que viria a ser o programa Porto Feliz, um plano de combate à toxicodependência (e aos arrumadores), um dos pontos mais polémicos nos 12 anos de Rio à frente da cidade. O programa durou cinco anos (2002–2007), motivou uma guerra aberta entre Rio e a Polícia Municipal e acabou por pressão do Governo socialista de José Sócrates — pelo menos, foi sempre essa a convicção do autarca.

Pelo meio, houve denúncias de todos os tipos: a Polícia Municipal acusava Rio de querer “ser dono e senhor” daquela força policial e ameaçava com uma debandada; o autarca queixava-se da “indisciplina” e “ineficácia” da polícia e provocava mudanças na estrutura de comando. Havia relatos (sempre contestados) de membros da autarquia que se faziam passar por polícias para ordenar a retirada dos arrumadores, funcionários da Câmara que vigiavam a atuação dos polícias municipais, preocupações especiais em limpar a área de residência da família de Rui Rio e muitas queixas sobre episódios de uso excessivo de força policial e detenções ilegais por parte da PSP. Em 2004, aliás, a Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer onde considerava ilegal e ilegítima a detenção de arrumadores no âmbito do programa “Porto Feliz”, dando razão às muitas queixas apresentadas pela oposição e por várias instituições e personalidades portuenses.

O programa “Porto Feliz” chegou formalmente ao fim em 2006, depois de o Instituto das Drogas e Toxicodependência (IDT), então dirigido por João Goulão, ter denunciado o contrato por alegada ineficácia e custos elevados. Não sem acusações à mistura: Rui Rio culpou sempre o ministro da Saúde, Correia de Campos, e o Governo socialista de serem os responsáveis pelo fim do plano, apenas e só por motivações políticas; o Executivo e o IDT responsabilizaram Rio, que nunca aceitou rever os moldes do programa, rompendo unilateralmente as conversações.

Os números do “Programa Feliz” apresentados por Rui Rio foram sempre contestados pela oposição mais à esquerda, nomeadamente pelo Bloco. Para o autarca, as contas saldaram-se assim: 7,5 milhões de euros, 2.113 pessoas, das quais 567 assinaram protocolos para tratamento da toxicodependência e, dessas, 286 estariam em condições de trabalhar em 2006, ano em que o programa formalmente terminou. No dia em que assinalou o seu 11.º aniversário à frente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio descrevia assim o fim do programa “Porto Feliz”. “Hoje as ruas da cidade voltaram a estar repletas de gente que caiu na desgraça e que não tem uma forma eficaz e empenhada dela se libertar. É uma página negra da nossa história municipal recente“.

“Vamos levar a cabo a inserção desses cidadãos [os arrumadores], dando-lhes uma oportunidade. Aqueles que a aproveitarem serão por nós apoiados com o carinho e a compreensão humana que é devida. Os que não a quiserem aproveitar cairão nas malhas da polícia, porque não é sustentável que continuem a importunar os cidadãos no meio da rua. Temos de ser uma cidade civilizada e ordeira e, para isso, como disse, é indispensável que a polícia tenha autoridade.”
Rui Rio no dia em que apresentou o seu programa à Câmara do Porto, em 2001

Tolerância zero ao álcool e ao absentismo. Até à derrota no Supremo

24 de abril de 2001. O discurso de Rui Rio já ia adiantado. O social-democrata apresentava-se pela primeira vez aos militantes do partido como candidato à câmara do Porto. Para trás já tinha deixado as críticas a Fernando Gomes e as promessas de uma cidade mais segura e livre do flagelo da toxicodependência. Mas o candidato do PSD ainda tinha uma palavra a dizer sobre o funcionamento orgânico da Câmara.

A persistência de um aparelho municipal pesado e burocrático, imune a qualquer tentativa de modernização, nem é sinal de civilização nem favorece o desenvolvimento”, começou por dizer Rio. “A burocracia reinante não promove o respeito pelo cidadão e constitui terreno fértil ideal para o florescimento da corrupção. Corrupção que é justamente a forma suprema de sobrepor os interesses particulares ao interesse coletivo, ou seja, boicotar o desenvolvimento”, expõe.

O combate à corrupção seria sempre uma prioridade de Rio. Não apenas a grande corrupção, mas também a pequena corrupção, o excesso de chefias, o laxismo reinante, as baixas médicas fraudulentas e o consumo de álcool entre funcionários municipais.

“Quando chegámos à Câmara havia um problema de pequena corrupção sistémica“, começa por contar ao Observador um ex-vereador de Rio que trabalhou com o autarca durante o primeiro ano de mandato. “Havia relatos de funcionários que estavam ao serviço da câmara e iam para o trabalho alcoolizados. Havia pessoas que passavam semanas sem aparecer no emprego. Chegámos a encontrar funcionários sentados no corredor depois do horário de expediente para receberem horas extraordinárias”, recorda a mesma fonte.

O relato é confirmado pelos números: em 2001, Rio encontrou uma taxa de absentismo de 6,8%, num universo de 3.536 trabalhadores. Num exercício arriscado de aritmética, tal significaria que, em média, cada trabalhador teria faltado 21 dias ao emprego naquele ano civil. E dos 46 milhões de euros que a Câmara gastou em encargos com o pessoal, cerca de 10% corresponderam ao pagamento de horas extraordinárias. Entre os dirigentes do município, a realidade não era muito diferente: havia uma taxa de absentismo de 4,2%.

Com estes números nas mãos, Rio lançou-se num combate às baixas médicas fraudulentas, enviando dezenas de casos para a Procuradoria-Geral da República e para o Departamento de Investigação e Ação Penal. Nem sempre com sucesso, é certo. Em 2012, já perto de deixar a Câmara do Porto, queixava-se assim das leis “mal feitas e contraditórias” que entorpeciam o sistema. “Quando cheguei à câmara, há dez anos, reparei que tínhamos uma taxa de absentismo brutal. Pedi à Direção de Recursos Humanos que fizesse o levantamento da situação. Selecionei trinta e tal casos de gente que quase praticamente não trabalhava. O dossiê foi entregue na Ordem dos Médicos e no DIAP. Eu, jovem presidente de câmara inexperiente, já com tendência para ser marginal ao sistema, nem sonhava que ia ser imediatamente constituído arguido e acusado pelo Ministério Público de difamação”.

Não foi a única batalha que lhe deu dores de cabeça. Quando chegou à câmara, Rui Rio tentou adotar um regulamento interno que previa testes de alcoolemia obrigatórios para todos os funcionários municipais. Quem fosse apanhado com uma taxa igual ou superior a 0,5 gramas por litro de álcool no sangue seria alvo de um processo disciplinar e, no limite, suspenso. Sem maioria absoluta na autarquia, a medida seria chumbada logo em 2003. Mas o autarca não estava disposto a desistir.

Em 2006, já depois de ter conquistado a primeira maioria absoluta, Rui Rio conseguiu mesmo aprovar o regulamento na autarquia. A decisão motivou queixas dos representantes sindicais dos trabalhadores da Câmara e, dois anos depois, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) emitiu um parecer em que considerava ilegal o recurso da autarquia a este tipo de testes.

A decisão da CNPD provocou um diferendo com a Câmara Municipal do Porto. Rui Rio avançou para a justiça e, enquanto o caso se desenrolava nos tribunais, a autarquia continuou a fazer testes de alcoolemia, contrariando todas as orientações legais. Num dos recursos apresentados, a câmara chegou mesmo a acusar a CNPD de “vício de usurpação de poderes, desvio de poderes, violação do princípio de igualdade, violação do princípio da legalidade, violação do princípio de prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, violação do princípio da proporcionalidade e vício do erro sobre os pressupostos”.

No final de 2010, o Supremo Administrativo (STA) punha fim ao diferendo e confirmava a decisão da primeira instância, impedindo a Câmara do Porto de fazer testes de alcoolemia aos funcionários. Confirmavam-se assim a vitória da CNPD e a derrota de Rio.

Apesar da derrota nesta e noutras frentes, o autarca conseguiu imprimir um modelo de funcionamento que tinha imaginado para a câmara quando tomou posse, em 2001: rompeu com o excesso de chefias intermédias, aumentou a exigência e impôs mais rigor. A tal “mão de ferro” de que sempre se orgulhou.

“Quando chegámos à Câmara havia um problema de pequena corrupção sistémica“, começa por contar ao Observador um ex-vereador de Rio que trabalhou com o autarca durante o primeiro ano de mandato. “Havia relatos de funcionários que estavam ao serviço da câmara e iam para o trabalho alcoolizados. Havia pessoas que passavam semanas sem aparecer no emprego. Chegámos a encontrar funcionários sentados no corredor depois do horário de expediente para receberem horas extraordinárias.”

O Fanático dos Popós: o descrédito da justiça segundo Rio

3 de agosto de 2012. Rui Rio chega visivelmente agastado ao Palácio da Justiça do Porto. “Sinto-me triste, nunca pensei chegar a esta idade e ver o regime a degradar-se como está”, desabafava aos jornalistas. “O presidente da segunda maior câmara do país vir aqui, responder em tribunal, se lhe chamam fanático dos popós e se é um fanático dos popós, em agosto, quando os tribunais estão fechados e só coisas urgentes é que são tratadas, revela o quadro em que a Justiça e o regime político em que vivemos estão”, lamentava.

O caso tornou-se quase uma piada nacional, mas Rio levou bem a sério a ofensa. Meses antes, Manuel Leitão, empresário e autor do guia de bares e restaurantes “Porto Menu”, tinha colocado a circular dezenas de milhares exemplares da edição de 2012/2013, cuja capa era uma imagem digitalmente manipulada do edifício do Bolhão. O problema? A fotografia da fachada tinha uma mensagem subliminar: “Rio és um FDP”.

O autarca não gostou do que viu e apresentou uma providência cautelar para que os guias fossem retirados de circulação. Manuel Leitão impugnou a decisão e o caso chegou mesmo aos tribunais, com a defesa do empresário a garantir que FDP queria simplesmente dizer “Rui Rio: Fanático dos Popós”.

Os “popós” de Rio eram uma referência às corridas do Circuito da Boavista, um projeto pessoal do autarca, cujo objetivo foi sempre “alavancar a economia” da cidade. O problema é que a oposição política nunca lhe perdoou aquilo que dizia ser a falta de coerência do autarca: o investimento caía, a Cultura sofria, o Bolhão definhava e o rigor orçamental exigia-se; mas, de dois em dois anos, os carros continuavam a rasgar o alcatrão da Boavista, com Rio a aproveitar para pôr o pé no acelerador. “Passo os dias sentado à secretária a escrever no computador. E a força com que agarro o volante é proporcional à força com que me agarro às teclas do computador e ao telefone“, chegou a dizer à revista Caras.

Naquele dia de verão, no entanto, Rio teve de ir a tribunal provar à juíza que não era um “fanático dos popós” e que tinha razões para se sentir ofendido com Manuel Leitão. As testemunhas de defesa do autor do guia foram-se esforçando por contrariar o autarca. Houve quem defendesse que FDP poderia significar algo como “Flipado Dos Automóveis” ou, mais complexo ainda, “Fode normal“, um termo que alguém tinha visto escrito num resultado de um exame oftalmológico e que queria dizer, juravam, que os fundos oculares, direito e esquerdo, eram normais.

Se Rio já não estava satisfeito à entrada, menos feliz ficou com as perguntas da juíza. Para apurar a verdade, a magistrada perguntou ao autarca se sabia que havia gente que o apelidava de “fanático dos popós”, se tinha ou não “uma paixão profunda por automóveis” ou se “apadrinhava o circuito da Boavista” — tudo argumentos usados pelos detratores para justificar a curiosa sigla.

Contam os relatos da sessão, que o autarca respondeu que “não” a tudo, explicando que o circuito da Boavista era “organizado pela câmara” e não tinha “padrinhos”. E fez questão de esclarecer a magistrada: “Uma coisa é gostar, outra é ter uma paixão profunda” por automóveis.

À saída da inquirição, quando ainda faltava conhecer a decisão da juíza, o autarca já só queria que aquele espetáculo terminasse. “Não sou mais do que os outros, não tenho problema em colaborar com a justiça. Institucionalmente, isto é contribuir para descredibilizar o cargo de presidente da Câmara do Porto, que não é meu, e descredibilizar a própria Justiça e o próprio tribunal. Portugal e o regime, se fosse verdadeiramente democrático e um Estado de Direito a sério não podia permitir isto. Estamos a brincar com coisas muito sérias”.

Horas depois, a juíza acabaria por considerar que o autarca tinha razão: Rui Rio não era um “fanático dos popós” e tinha razões para se sentir ofendido — “FDP” era objetivamente uma ofensa.

Adelino Meireles / Global Imagens

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