13 de maio de 2008. Caracas. Nome de código: “Gran Misión Vivienda Venezuela”, ou simplesmente “Misión Villanueva”. Neste dia, a assinatura do Acordo Complementar ao Acordo de Cooperação entre a República Portuguesa e a República da Venezuela marcava uma nova fase da relação entre os dois países. Previa, entre outros aspetos, adjudicações de obras públicas sem recurso a concurso internacional, sobretudo na área da construção civil. Estava estendido o tapete vermelho à entrada do Grupo Lena de Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca naquele país, alegadamente apadrinhada pelo então primeiro-ministro José Sócrates. Volume do negócio? 988 milhões de dólares, cerca 838 milhões de euros.
Segundo o despacho da acusação a que o Observador teve acesso, José Sócrates “aceitou utilizar o seu cargo como primeiro-ministro” e as relações privilegiadas com o Governo venezuelano “em benefício do Grupo Lena, a troco do recebimento de vantagens patrimoniais a que bem sabia não ter direito”, tendo-se “socorrido de colaboradores que lhe eram próximos e da sua confiança, a fim de, segundo as suas indicações, prestarem o específico apoio ao Grupo Lena” naquela missão.
Esta e outras conclusões do Ministério Público estão inscritas em mais de 50 páginas dedicadas exclusivamente aos negócios do Grupo Lena na Venezuela, onde vão desfilando várias personagens, de José Sócrates, Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca a Hugo Chávez, Nicolás Maduro e outros ministros do Governo venezuelano. Lá estão relatadas as supostas interferências do então primeiro-ministro português a favor do Grupo Lena, as contrapartidas alegadamente pagas pelos empresários portugueses a Sócrates, os avanços e recuos da operação, as queixas do grupo empresarial perante as hesitações das autoridades venezuelanas e todos os detalhes do negócio que culminou com a construção de 12.512 habitações na Venezuela, assinadas pelo Grupo Lena.
E José Sócrates? Segundo a investigação do Ministério Público, Carlos Santos Silva, entendido como testa de ferro do ex-primeiro-ministro, terá recebido nas suas contas na Suíça — que os investigadores acreditam pertencer verdadeiramente a José Sócrates — mais de 7 milhões de euros, na sua maioria pagos por Joaquim Barroca, administrador do Grupo Lena.
A origem dos negócios do Grupo Lena na Venezuela
Tudo começou precisamente na revisão do acordo de cooperação estratégica entre os dois países — o primeiro remontava a 1994. Em maio de 2008, acreditam os investigadores portugueses, Carlos Santos Silva “veio a tomar conhecimento, por via de José Sócrates, dessa perspetiva de evolução dos acordos de cooperação com a Venezuela”. Alertados pelo ex-primeiro-ministro, o empresário da Covilhã e Joaquim Barroca viram ali uma oportunidade de negócio e lançaram as primeiras pedras da operação.
Primeiro, a pedido alegadamente de Carlos Santos Silva, Joaquim Barroca terá aceitado disponibilizar “montantes financeiros que seriam afetos à atribuição de contrapartidas pela obtenção desse apoio do Governo português no mercado da Venezuela”. José Sócrates, por sua vez, tinha como missão garantir que o Grupo Lena tinha um tratamento preferencial, “independentemente do interesse público“, em “troca de compensações financeiras que seriam, numa primeira fase, colocadas na esfera de Carlos Santos Silva”.
O circuito financeiro passava pela Suíça, onde Joaquim Barroca e Carlos Santos Silva tinham contas bancárias, seguindo depois para várias contas controladas pelo amigo de José Sócrates em paraísos fiscais. Para cumprir o plano, José Sócrates terá aproveitado a sua qualidade de primeiro-ministro para transmitir ordens aos assessores Vitor Escária e Guilherme Dray, que terão passado a ser daí em diante, segundo o Ministério Público, os interlocutores privilegiados com o Grupo Lena e as autoridades venezuelanas. Nenhum dos dois foi constituído arguido ou acusado pelo Ministério Público.
Vitor Escária tornara-se assessor económico no primeiro governo de José Sócrates em 2005. Mais tarde, até 2012, passou a prestar apoio direto ao gabinete do primeiro-ministro. Escária seria depois assessor económico de António Costa, até se demitir por causa do caso Galpgate.
Guilherme Dray, por sua vez, foi chefe de gabinete de Mário Lino, então ministro das Obras Públicas, entre 2005 e 2009. No segundo governo de José Sócrates, chegou mesmo a chefe de gabinete do primeiro-ministro. Antes, entre 2000 e 2002, já tinha sido adjunto de Sócrates, quando este era ministro do Ambiente.
Entre fevereiro de 2007 e maio de 2008, data da primeira visita oficial de José Sócrates à Venezuela, as peças do xadrez começam a movimentar-se. Joaquim Barroca já havia aberto uma conta na Suíça, junto do banco UBS, que serviria, acredita o Ministério Público, “para fazer circular fundos com origem em Portugal, em contas do mesmo Joaquim Barroca, mas recebidos por este de contas do Grupo Lena, de forma a transferir montantes para outras contas, também domiciliadas na Suíça, abertas em nome de entidades instrumentais, controladas formalmente por Carlos Santos Silva, mas que se destinavam, na verdade, a serem colocados à disposição do arguido José Sócrates”.
A 28 de fevereiro de 2007, Joaquim Barroca fez transferir a partir da conta aberta no UBS 1.250 milhões de euros para uma conta sediada igualmente na Suíça em nome da entidade Giffard Finance, controlada formalmente por Carlos Santos Silva. Em junho, nova transferência entre as mesmas duas contas, no valor de 1.125 milhões de euros. O objetivo? “Garantir o comprometimento do arguido José Sócrates com a estratégia de conquista de contratos [do Grupo Lena] na Venezuela”, acredita o Ministério Público.
Com José Sócrates já na Venezuela, e depois de ter assinado com Hugo Chávez o novo acordo bilateral, os ministros Mário Lino e Francisco Sesto Novas assinam uma Carta de Intenções com o objetivo de avaliar a possibilidade de construir mil casas na área metropolitana de Caracas. De regresso a Portugal, o então primeiro-ministro dá ordens à sua equipa para que o desenvolvimento desse estudo estivesse a cargo do Grupo Lena.
Nos dias 20 e 21 de maio, Guilherme Dray, chefe de gabinete de José Sócrates, manteve contactos com Carlos Santos Silva para que o Grupo Lena avançasse com a formalização do projeto junto do Governo português. Aqui, as pontas começam a unir-se: no mesmo dia 21, o amigo de José Sócrates dá conta, via e-mail, da composição da equipa que ia liderar o projeto. Segundo o Ministério Público, tal prova que o Grupo Lena tinha tido acesso a informação privilegiada sobre a operação.
A 27 de junho, o passo decisivo: Carlos Santos Silva fazia chegar a Francisco Sesto Novas, ministro venezuelano com a pasta da Habitação, por e-mail, uma proposta formal que previa a construção de 310 blocos, com 16 habitações cada, num total de 4.960 habitações, por um preço total, apenas relativo à construção, de 423.150.000 milhões de euros. Começava a aventura do Grupo Lena na Venezuela.
A revisão do plano e o novo esforço de José Sócrates
A visita de Mário Lino à Venezuela, entre 13 e 16 de julho de 2008, foi aproveitada, acredita o Ministério Público, para fazer referência à proposta do Grupo Lena no âmbito do programa “Misión Villanueva”. Nessa reunião, foi manifestado o desejo de que que se chegasse a um acordo ainda antes da visita de Chávez a Portugal, prevista para esse mês de julho, para que o contrato com o Grupo Lena pudesse vir a ser formalizado nessa altura.
A pedido de Joaquim Barroca e Carlos Santos Silva, José Sócrates terá então feito diligências nesse sentido. O então primeiro-ministro terá dado indicações para que fosse firmado um Memorando de Entendimento entre o Ministério para La Vivienda y Habitar da Venezuela e o Ministério das Obras Públicas de Portugal, onde, do lado do Governo português, se afirmasse a designação do Grupo Lena para implementar a cooperação de Portugal com a Venezuela no âmbito de projetos de infraestruturas e construção de habitações a desenvolver na Venezuela. O grupo empresarial tornava-se assim o parceiro instrumental do Governo português naquele país.
Carlos Santos Silva participaria ativamente no desenho desse memorando de entendimento, a cargo de Guilherme Dray, sugerindo alterações e tendo acesso à versão final do documento. Paralelamente, o chefe de gabinete de José Sócrates manteria contactos com o então primeiro-ministro e com Mário Lino, de quem recebia indicações. Fechado o memorando, o documento seria assinado por Francisco Sesto Novas e Mário Lino.
O memorando previa, entre outros aspetos, a construção de 50 mil habitações, sendo as primeiras 15 mil executadas em território português (pré-fabricadas, portanto) e as restantes 35 mil executadas na Venezuela — bem mais do que as 4.960 habitações previstas inicialmente.
No dia em que Hugo Chávez aterrou em Portugal, a 24 de julho de 2008, José Sócrates voltou a falar com o venezuelano no sentido de o sensibilizar para o projeto desenhado pelo Grupo Lena. No entanto, o memorando de entendimento estava bem para lá do projeto inicial do Grupo Lena, o que obrigou à revisão do projeto.
Praticamente um mês depois, Carlos Santos Silva faria chegar ao ministro venezuelano Francisco Sesto Novas, via e-mail e em nome do Grupo Lena, um novo projeto de construção que obedecia aos critérios inscritos no memorando de entendimento. O amigo de José Sócrates definiu o seu preço: mais de 2 mil milhões de euros.
Com a expansão do projeto, chegaria nova compensação para José Sócrates, apontam os investigadores portugueses. “Uma vez apresentada a proposta por parte do Grupo Lena, foi solicitado por parte dos arguidos Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca um novo esforço de apoio por parte do arguido José Sócrates, tendo em vista a obtenção de um compromisso direto entre o Ministério da La Vivienda da Venezuela e o próprio Grupo Lena”, pode ler-se no despacho de acusação que o Observador teve acesso. Valor da contrapartida para Sócrates: 4,5 milhões de euros.
“Com efeito, na perspetiva de agradar e compensar o arguido José Sócrates relativamente à angariação de contratos na Venezuela, o arguido Joaquim Barroca, a pedido do arguido Carlos Santos Silva, havia entretanto aceite receber na sua conta bancária na Suíça fundos com origem em terceiros, (…) pelo que, na sequência da solicitação do arguido Carlos Santos Silva, o arguido Joaquim Barroca determinou a transferência de um montante de €4.500.000 entre a sua conta na Suíça e a conta na Suíça aberta em nome da entidade Pinehill, que lhe foi indicada e era controlada pelo arguido Carlos Santos Silva, operação essa que foi consumada na data de 26 de setembro de 2008, na véspera da assinatura do contrato”, conclui o Ministério Público.
Os obstáculos da operação
O contrato entre o Governo venezuelano e o Grupo Lena, representado por Joaquim Barroca, seria finalmente assinado a 27 de setembro de 2008. O projeto seria executado em duas fases, com a duração total de 72 meses seguidos. A primeira fase, com a duração de 24 meses, compreendia a construção de 15 mil pré-fabricados. Na segunda fase, seriam construídas, já na Venezuela, as restantes 35 mil habitações.
Antes, no entanto, o Grupo Lena foi obrigado a abrir uma sucursal na Venezuela para poder dar seguimento ao projeto — segundo a Constituição venezuelana, a celebração de um contrato com uma empresa estrangeira ou não domiciliada na Venezuela precisava de ser aprovada pela Assembleia Nacional daquele país. Foi essa, pelo menos, a informação transmitida pelas autoridades venezuelanas aos representantes da empresa portuguesa.
O objetivo era assinar o primeiro contrato de empreitada em novembro de 2008. No entanto, Carlos Santos Silva, “prevendo dificuldades e demoras na aprovação do contrato, solicitou, concertado com José Sócrates, o apoio de Dray a alguma diplomacia, para dar celeridade” ao processo.
As autoridades venezuelanas, por sua vez, continuavam a levantar alguns obstáculos em relação aos termos do acordo, levando Joaquim Barroca a contactar, via fax, o ministro Francisco Sesto Novas, para dar conta do desagrado do Grupo Lena. Paralelamente, José Sócrates dava ordens a Guilherme Dray para retomar os contactos com as autoridades da Venezuela e com a embaixada de Portugal naquele país.
Corria o mês de janeiro de 2009. Dois meses depois, novo volte face: há uma remodelação no Governo venezuelano e Diosdado Cabello substitui o ministro Francisco Sesto Novas no cargo, interrompendo mais uma vez as negociações, que só viriam a ser retomadas em julho de 2009.
Não podendo rescindir unilateralmente o contrato, as autoridades venezuelanas tentaram negociar o acordo, nomeadamente fazendo com que as fábricas de material pré-fabricado fossem construídas na Venezuela, que assim passariam a fornecer o material para todas as construções de habitações.
Ora, estas alterações obrigariam à revisão do contrato assinado entre o Governo venezuelano e o Grupo Lena, alterando os preços e os custos da obra. O novo projeto teria de ser aprovado pelas autoridades daquele país e o Governo português teria de ser auscultado, uma vez que deixaria de haver produção em Portugal.
Perante o impasse, José Sócrates foi novamente chamado a intervir, aproveitando a visita de Nicolás Maduro, então ministro dos Negócios Estrangeiros de Chávez, a Portugal. O primeiro-ministro português terá dado indicações aos seus homens na Economia e nas Obras Públicas para que se desdobrassem em reuniões.
Foi então possível chegar a um acordo: a totalidade do preço do projeto, tal como definido no contrato quadro, deveria ser paga em Portugal, em dólares; deveria ser assinado um primeiro contrato para a construção de 15 mil casas, a executar no prazo de dois anos; e deveria ser realizado um pagamento antecipado de um montante equivalente a 25% por cada contrato de empreitada que viesse a ser assinado. O novo acordo seria finalmente assinado durante a visita de José Sócrates à Venezuela, a 29 de maio de 2010.
Segundo o Ministério Público, a adenda ao contrato dependeu da intervenção direta de José Sócrates — o que implicava nova compensação. Nesse sentido, Joaquim Barroca “viabilizou o pagamento de uma quantia de 242.500 euros a coberto de um pretenso contrato de prestação de serviços entre a LEC SA e a sociedade XLM, do arguido Carlos Santos Silva, sabendo que tal montante seria utilizado no interesse do arguido José Sócrates”, sustenta o Ministério Público.
Os sucessivos atrasos das autoridades venezuelanas — que tardavam em assinar o primeiro contrato de empreitada — obrigaram a várias intervenções de José Sócrates, ora através de Vitor Escária, ora em diálogo direto com Hugo Chávez. O primeiro contrato de empreitada — que previa a construção de 12.512 habitações e três fábricas de pré-fabricados — foi assinado finalmente a 24 de outubro de 2010.
Mas os responsáveis venezuelanos continuavam sem entregar o pagamento antecipado e os terrenos onde seriam construídas as habitações sociais. José Sócrates, via Vitor Escária, voltaria a pressionar as chefias intermédias do Governo venezuelano, com ameaças veladas à possibilidade de Sócrates falar diretamente com Hugo Chávez.
Entre avanços e recuos, reuniões marcadas e desmarcadas, recados e contra-recados, a ata de início das obras previstas no contrato da empreitada veio a ser celebrada com data de 11 de abril de 2011. O contrato ainda sofreria nova adenda, em 2012, mas o preço e o número de habitações manter-se-ia: 988 milhões de dólares (15% do valor pago em bolivares) e 12.512 habitações.
A Venezuela tornava-se, assim, num óptimo negócio para o Grupo Lena, como sustenta o Ministério Público. “No ano de 2012, o volume de faturação do Grupo Lena para os mercados externos ultrapassou, pela primeira vez, o registado para 0 mercado nacional. Na verdade, neste ano de 2012, o Grupo Lena apresentou um volume de negócios total de €495.373.776,00, sendo que o montante de €274.379.299,00, correspondente a 51% daquele volume total de negócios, diz respeito ao mercado internacional. A partir desse ano de 2012, o peso dos mercados externos, no volume de negócios do Grupo Lena, seria sempre superior ao do mercado nacional, representando, em 2013, 66% desse volume total e em 2014, 71% do volume de negócios consolidado do Grupo Lena. No âmbito dos mercados externos, era preponderante o peso assumido pelo mercado da Venezuela”.