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“O álcool causa cancro”. Esta é a mensagem que o governo irlandês quer ver claramente exibida no rótulo de cada garrafa de vinho, cada lata de cerveja, cada garrafa de uísque ou qualquer outra bebida alcoólica. Ao fim de quase três anos de controvérsia, está prestes a ser aprovado um pacote legislativo na Irlanda que é uma declaração de guerra: obriga a um preço mínimo para bebidas alcoólicas, uma “separação estrutural” do álcool dentro dos supermercados, duras restrições publicitárias e o temido rótulo que a indústria do álcool rejeita por completo — “dizer que o vinho causa cancro é errado“, defende George Sandeman, chairman da Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal (ACIBEV).
Para George Sandeman, o setor do vinho “está em risco” porque há uma “teia de atividade, envolvendo várias entidades, que quer criar um ambiente mais restritivo para o vinho e impor uma cultura do norte sobre os países do sul da Europa”. Em entrevista ao Observador, Sandeman admite que receia o “contágio” do plano irlandês a outros países europeus (na Escócia já estão a ser tomadas medidas semelhantes) e critica duramente qualquer política “populacional” que tenha como objetivo baixar os números do consumo total (mesmo à custa do consumo moderado) em vez de atacar os problemas relacionados com o consumo abusivo — que as associações de defesa da indústria, como a ACIBEV, dizem ser “os primeiros interessados em combater”.
Da mesma forma que os maços de cigarros passaram a conter imagens e mensagens impressionantes, “no longo prazo, poderemos chegar ao mesmo no vinho” — ter uma parte importante do rótulo preenchido não só com informação nutricional (que também rapidamente pode tornar-se regra na Europa) mas, também, com imagens de fígados com cirrose hepática ou, mesmo, fotografias de doentes com cancros fatais. Este é o principal ponto contestado pela indústria.
“Essa questão do rótulo é gravíssima porque é uma informação errada“, afirma George Sandeman, asseverando que “os estudos que existem são complexos, não há linhas conclusivas e com uma frase dessas está-se a simplificar as conclusões de uma série de estudos — o que não é informar bem o consumidor“. Em contraste com o tabaco, “em que está provado que até um consumo baixo é perigoso para a saúde, há vários estudos que defendem que o consumo moderado de vinho tem vários benefícios para a saúde” .
Na Irlanda, o controverso pacote legislativo conhecido como a Irish Alcohol Bill (ou Irish Bill, para os inimigos) demorou dois anos a ser aprovado pela câmara alta (o Seanad). Neste momento, está para aprovação no congresso (o Dáil). Na câmara alta, a aprovação preliminar tardou porque havia vários senadores — sobretudo do partido que está no governo — preocupados com a questão da “separação estrutural” e com uma possível penalização dos pequenos comerciantes. Isto porque, se para um hipermercado é mais fácil “esconder” as bebidas alcoólicas num canto remoto da superfície comercial, para um pequeno comércio na rua isso poderia ser impraticável.
O problema acabou por ser superado com algumas isenções e um regime especial para os pequenos retalhistas, pelo que as atenções se viraram, agora, para a questão dos avisos de saúde. O primeiro-ministro da Irlanda (Leo Varadkar, que era ministro da Saúde quando a Irish Alcohol Bill começou a ser preparada) recusa, porém, que possa haver mais alterações ao pacote legislativo.
A proposta vai avançar como está, garante o governo, que se apoia na posição assumida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) sobretudo desde finais dos anos 80: o consumo de bebidas alcoólicas pode ser um fator carcinogénico, desde os cancros da boca, garganta, esófago e fígado até ao cancro da mama. Mas também há vários estudos que defendem que o consumo moderado tem benefícios ligados às propriedades antioxidantes e antiflamatórias, neste caso, do vinho (as bebidas destiladas, com grande teor alcoólico, são vistas como muito mais prejudiciais).
O ministro da Saúde irlandês defende que as medidas se justificam porque “baixar o consumo de álcool é um passo importante na redução do fardo do cancro”. “Esta é uma legislação histórica na área da saúde pública, que irá fazer uma diferença real no que diz respeito à redução do mal causado pelo álcool — e apelo a todos os partidos que a apoiem”, afirmou o ministro Simon Harris. O álcool é um problema sério na Irlanda. O país não está na liderança dos rankings de consumo total per capita na Europa (países como a Alemanha e a República Checa — tal como Portugal — consomem mais álcool) mas esses dados globais escondem realidades como, por exemplo, a liderança no ranking de pessoas com menos de 24 anos que consomem seis ou mais bebidas em cada sessão.
“Nos países do norte da Europa há uma cultura de consumo de bebidas e de vinho que, de um modo geral, é caracterizada por muito consumo em poucos dias. Em Portugal, o vinho faz parte da mesa, faz parte da gastronomia, faz parte da dieta, com moderação — faz parte da nossa cultura, desde a produção até ao consumo“, argumenta George Sandeman, que é também chairman da empresa que produz em Portugal os vinhos da marca que tem o nome da sua família.
Ninguém disputa que o consumo excessivo, repentino, tem consequências, mas as associações do setor contrapõem com a auto-regulação e com investimento em campanhas como o Wine in Moderation (vinho com moderação) e outras iniciativas, como ações de formação a funcionários de bares e restaurantes sobre como a melhor forma de, por exemplo, recusar servir bebidas alcoólicas a quem já bebeu demasiado. As associações da indústria são, diz a ACIBEV, as “primeiras interessadas em que se combata o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, e participamos ativamente nessa missão”.
Afinal, o vinho tinto tem ou não benefícios?
Mais recentemente, existem trabalhos que vêm mostrar uma associação entre o consumo de álcool e o aparecimento de cancro. Há investigações que distinguem as bebidas brancas do vinho, outras nem por isso. E falar de álcool em Portugal é falar sobretudo de vinho. Afinal, somos o país que mais consome vinho per capita no mundo — são 51,4 litros por pessoa ao ano (dados da Organização Internacional da Vinha e do Vinho). Ao mesmo tempo, estamos na segunda metade dos países europeus que menos álcool bebem, segundo o relatório “Álcool e Cancro no Sistema Digestivo”, divulgado há sensivelmente um ano. A aparente contradição não o é: em 2010, dados da Organização Mundial de Saúde mostravam que 55% do álcool consumido em Portugal correspondia a vinho; outros 31% diziam respeito à cerveja e apenas 11% entravam no mundo das bebidas espirituosas. Só no ano passado, os portugueses consumiram 4,5 milhões de hectolitros de — adivinhe-se — vinho.
Para a investigadora Conceição Calhau, o vinho tinto deveria ser considerado uma bebida fermentada e não alcoólica, uma vez que tem benefícios já comprovados pela ciência: as antocianinas, compostos que só existem em plantas, apresentam efeitos anti-inflamatórios, mas também trazem vantagens ao nível do sistema cognitivo e das bactérias intestinais — o vinho tinto possibilita alterações microbióticas, isto é, estimula o aumento de bactérias boas nos intestinos, órgão onde se encontra a segunda maior concentração de neurónios. “O vinho tinto é uma matriz alimentar muito complexa”, assegura a investigadora do CINTESIS e coordenadora da área de Nutrição e Metabolismo na Nova Medical School – Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Lisboa.
Could a glass of red wine a day help protect against prostate cancer? https://t.co/HVIzH2CwGG pic.twitter.com/ivPgwR0wce
— Sowetan LIVE (@SowetanLIVE) May 13, 2018
Os benefícios descritos não se estendem, no entanto, ao vinho branco, cuja película da uva não é utilizada aquando da fermentação, sendo que a pele do bago é bastante rica em antocianinas. Mais: o vinho branco não tem tanto resveratrol, capaz de contribuir para a redução do colesterol, que apenas existe na película da uva mediante condições de stress (como, por exemplo, o ataque de fungos). Por esse motivo, nem todos os tintos terão grandes quantidades de resveratrol, sendo que, nesta perspetiva, os vinhos biológicos ganham um interesse redobrado. Já os brancos apresentam uma “matriz alimentar mais pobre” — têm, no entanto, ácidos fenólicos que também são responsáveis por alguma atividade antioxidante (em grande quantidade, estes ácidos são responsáveis pelo escurecimento do vinho, isto é, pela sua maior oxigenação).
“O vinho tinto é muito rico em compostos fenólicos [como o resveratrol], que apresenta uma grande quantidade de antioxidantes capazes de diminuir os radicais livres presentes no nosso organismo”, atesta também Ana Isabel Barros, diretora do Centro de Investigação e Tecnologias Agroambientais e Biológicos (CITAD), da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Isto importa porque, segundo a docente académica, grande parte da incidência de doenças cancerígenas provém da nossa alimentação, daí a necessidade de antioxidantes para combater os radicais livres.
Mas a associação entre álcool e cancro pode não ser tão imediata quanto alguns afirmam, uma vez que, segundo Conceição Calhau, está relacionada com os carcinogénicos a que o ser humano está exposto, sobretudo na alimentação. A maior parte dos carcinogénicos são ativados pelo álcool. Calhau dá como exemplo as carnes vermelhas, cujas nitrosaminas carcinogénicas (compostos químicos cancerígenos) são ativadas pelo excesso de álcool. “O cancro está muito associado ao consumo de álcool, mas a sua toxicidade também passa por aí”.
São também muitos os estudos que tentam aprofundar a relação entre o vinho tinto e os benefícios cardiovasculares. Um artigo da Harvard Health Publishing, datado de fevereiro deste ano, começa por explicar o “paradoxo francês” — paradoxo existente entre a alimentação dos franceses, à base de queijos e outras gorduras, e a respetiva saúde cardiovascular, tendo o vinho tinto como o grande responsável pelo peculiar equilíbrio –, para depois referir, com base nas declarações de um médico em particular, que essa evidência é “particularmente fraca”. Kenneth Mukamal garante que toda a investigação que associa doses moderadas de álcool a menor incidência de doenças cardíacas é observacional, no sentido em que os estudos são incapazes de provar uma relação causa-efeito.
Is red wine actually good for your heart? Unfortunately, supporting evidence is pretty weak. https://t.co/NMHzA1JWgK #HarvardHealth #redwine #HeartHealth pic.twitter.com/f0ApvYsV65
— Harvard Health (@HarvardHealth) May 7, 2018
Manuel Carrageta, cardiologista da Sociedade Portuguesa de Geriatria, diz que existe alguma evidência nesse sentido, de que quantidades moderadas possam reduzir em 30% a incidência de enfarte do miocárdio e em 30% as diabetes. No entanto, admite que não existe consenso na comunidade médica. “Não há estudos controlados, são difíceis de fazer”, diz.
“Ao contrário do que fazem os anglo-saxónicos, nós bebemos à refeição”, assegura, lembrando que os países do norte da Europa não atribuem os benefícios ao vinho, antes à dieta mediterrânica e a padrões de consumo mais saudáveis. Carlos Aguiar, médico cardiologista no Hospital de Santa Cruz, também sustenta a ideia de que os benefícios do vinho não estão “cabalmente provados”. “Os estudos epidemiológicos não são considerados prova cabal. Há dúvidas e, por isso, ainda há controvérsia sobre as tais doses cardioprotetoras. Onde há certezas é que o excesso de álcool faz mal”, continua.
Álcool em excesso é sempre prejudicial. Pode provocar hipertensão ou insuficiência cardíaca”, lembra Manuel Carrageta, enquanto Conceição Calhau reforça a ideia do consumo moderando. “O problema pode ser a dose. Muitas vezes dizemos que a cerveja faz mal porque o bebedor de cerveja tende a ser o bebedor de fim de semana, que não faz exercício físico.”
A conversa do consumo moderado de vinho tinto não é nova e vai estando sujeita a novas descobertas de âmbito científico. Conceição Calhau, investigadora consultada pelo Observador, salienta que tal varia consoante a idade, o sexo e a composição corporal de cada um. Ainda assim, sugere que o homem beba apenas um copo e meio por dia e a mulher apenas um.
Já o cardiologista Miguel Mendes diz ao Observador que segue a linha da dieta mediterrânica, já considerada património imaterial da UNESCO, e recomenda 2 decilitros para homem e 1 decilitro para mulher por dia (as mulheres demoram mais tempo a metabolizar o álcool). O consumo exagerado de álcool pode afetar o sistema nervoso central e pode até ser responsável por perdas de memória, além de estar relacionado com o aumento de alguns tipos de cancro. Mas não é só a quantidade bebida que é debatida, mas também os momentos de consumo: idealmente, o vinho deve ser sempre bebido à refeição.
Em Portugal bebe-se muito. Mas como é que se bebe?
“A própria OMS reconheceu que países como Portugal têm padrões de consumo mais seguros. Efetivamente consumimos muito mas temos um padrão de consumo de baixo risco. Bebemos todos os dias um pouco, não bebemos só à sexta e sábado à noite — e as estatísticas absolutas escondem isso, tal como escondem a influência do turismo que vem para Portugal e também privilegia o vinho como uma das razões principais pelas quais vem para Portugal, a par do sol e do mar”, acrescenta George Sandeman.
Quanto álcool se consome em Portugal?
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Em Portugal, em comparação com outros países europeus, há prevalências de consumos mais baixas, mas uma maior intensidade dos consumos declarados pelos consumidores. As estimativas para Portugal apontaram para um consumo médio anual de 4,42 litros de álcool puro per capita para a população de 18-64 anos e de 6,15 litros para os consumidores de álcool dessas idades (9,2 litros nos homens e de 2,1 litros nas mulheres). “Estas estimativas evidenciaram uma grande discrepância entre as médias e as medianas e um desvio padrão alto, o que indicia consumos elevados e uma grande variação do consumo médio anual no país. Por outro lado, este consumo foi bastante mais elevado no grupo masculino do que no feminino (rácio 4,3) e tendencialmente mais elevado nos consumidores mais velhos”, acrescenta o Fórum Nacional Álcool e Saúde.
Esta não é, contudo, uma visão incontestável. Manuel Cardoso, médico e subdiretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos (SICAD), lembrou ao Observador que além de Portugal ter uma posição cimeira no consumo per capita (segundo a OMS), “o que acontece é que não só estamos nesse pódio como, depois, temos das percentagens mais altas de abstémios. Temos uma percentagem acima de 30% de pessoas que não beberam no último ano — quase chega a 40%”, afirma Manuel Cardoso: “Se temos dos maiores consumos per capita e se quase 40% não bebem, então os outros têm de consumir imenso”, defende.
Todavia, nos dados citados pela OMS, incluindo com base em informações do Eurostat, Portugal não aparece mal posicionado na lista dos países onde mais se bebe em exagero: doses elevadas em curto espaço de tempo — o binge drinking. São cerca de 18% os homens que dizem que abusam regularmente (pelo menos uma vez por mês), ao passo que a média europeia é superior a 30%. Já entre as mulheres apenas 3,3% das mulheres dizem abusar pelo menos uma vez por mês, ao passo que na UE a 24 a proporção multiplica-se para 13,6%.
Ainda assim, Manuel Cardoso defende que “nenhuma prevalência é uma prevalência boa. Pode-se ter só 10 fulanos a morrer, mas são 10 fulanos a morrer, mesmo que isso seja o mais baixo na comparação com os pares europeus”. Além disso, defende o clínico, “se formos questionar essa percentagem de homens, que diz abusar pelo menos uma vez por mês, vemos que existe um consumo exagerado mais de 100 vezes ao longo de um ano, ou seja, ficamos mal na fotografia no que diz respeito à frequência do consumo excessivo“.
O clínico, que integra o Fórum Nacional de Álcool e Saúde (FNAS) — um organismo criado há 10 anos para reduzir os comportamentos aditivos dos portugueses em relação ao álcool — defende que o preço baixo das bebidas em Portugal é um fator que ajuda a que o consumo seja elevado. Assim, mesmo reconhecendo que “não seria uma medida perfeita”, uma política de preços semelhante à do preço mínimo (Irlanda, Escócia, etc.) poderia fazer sentido em Portugal. Aí, haveria um preço mínimo por grama de álcool, o que significa que uma garrafa de vinho, que hoje custa dois ou três euros, não poderia custar menos de cinco ou seis” — e não estamos a falar de um imposto, obrigaria o distribuidor e o produtor a negociarem as respetivas margens, “mas a procura certamente cairia“.
Manuel Cardoso congratula-se pelo facto de “nos mais novos termos conseguido que nos últimos tempos tenha havido uma redução dos consumos de risco”. “Mas houve um aumento do consumo entre os mais velhos e as mulheres — surpreendeu-nos que essa tenha sido uma constatação tão evidente e tão forte”, admite o clínico, reconhecendo que o setor faz alguma auto-regulação, nomeadamente no que diz respeito à publicidade, “mas depois temos um país onde não sei quantos festivais de música e equipas de futebol são patrocinados por marcas de bebidas alcoólicas”.
No que diz respeito a questões como o álcool, cada país tem as suas regras — há até países, como a Noruega e a Suécia, onde há monopólios públicos da venda de bebidas alcoólicas. As regras são definidas pelos países, a nível individual, mas a Comissão Europeia, com a estratégia tenta que os diferentes estados tomem medidas o mais aproximadas possível — até para acontecer menos o que já existe na UE, que é comprar num país para revender ou consumir noutro. A DG SANTE, a Direção-Geral para a Saúde e Segurança Alimentar, é um organismo influente e existe um Comité de Política e Ação Nacionais em matéria de Álcool (CNAPA) que se reúne regularmente para coordenar políticas nesta área.
“Eu diria que nos próximos cinco a 10 anos isto vai ter um impacto notável naquilo que é a distribuição e o consumo porque cada vez mais está a criar-se um ambiente, entre o que é a OMS e Europa, a Comissão Europeia, OCDE, e depois dentro da Europa organizações como a CNAPA, estão a apertar muito e a criar um ambiente conducente a legislação nacional, que é o objetivo: criar restrições”, lamenta George Sandeman, relembrando que “não são restrições para acabar com o consumo abusivo, mas apenas medidas para reduzir o consumo”.
É como usar uma shotgun para matar uma melga. “Para quem tem problemas de alcoolismo, tem de haver tratamento para se tratar uma doença — porque é uma doença. Mas, depois, há uma maioria que gosta de consumir de forma moderada e vai tornar-se mais difícil e mais caro”, afirma Ana Isabel Alves, secretária-geral da ACIBEV, que também recebeu o Observador para falar sobre esta nova legislação que está a surgir na Europa. Medidas como o preço mínimo vão penalizar os consumidores moderados, diz a responsável, acrescentando que a obrigatoriedade de criar rótulos específicos para um ou mais países específicos (neste caso, a Irlanda) é um “tiro no mercado único europeu”.
A legislação irlandesa não terá vida fácil, contudo, para ser aprovada no contexto europeu. Portugal e Itália emitiram pareceres circunstanciados em que rebatem partes da legislação proposta, designadamente medidas que seriam, no fundo, um limite à livre circulação de bens e serviços no espaço europeu — de resto, 14 países da UE já avisaram que a legislação possivelmente violará os tratados. Até as revistas vendidas internacionalmente, que contenham publicidade a bebidas alcoólicas, poderão ter uma impressão específica para poderem ser vendidas nos quiosques irlandeses sem estarem a violar a lei — ou isso ou, em alternativa, serem banidas.
Uma das críticas feitas pelo estado português junto da Comissão Europeia, na correspondência consultada pelo Observador, é que “o estado irlandês não apresenta evidências em como estas medidas (as advertências de saúde) não prejudicam a livre circulação de produtos e que são efetivamente necessárias ou proporcionais à redução do consumo de álcool”. “Importa que o Estado-membro irlandês apresente elementos científicos que permitam, em primeiro lugar, justificar o motivo para aceitação da introdução de um rótulo referente à relação direta entre o consumo de álcool e a consequência de risco de cancros fatais”, instou a Direção-geral das Atividades Económicas do Ministério da Economia.
OCDE alerta para perigos do álcool (até o consumo moderado)
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A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) tem sido, também, um inimigo do setor. Num documento de 2016, lia-se que “os problemas relacionados com o álcool são uma grande preocupação de saúde pública na União Europeia. O álcool foi o terceiro maior fator de risco para a doença e a mortalidade, depois do tabaco e a hipertensão em 2012 e foi responsável pelo que se estima serem 7,6% de todas as mortes de homens e 4% de todas as mortes de mulheres, ainda que existam estudos que sugerem que as mulheres podem estar mais vulneráveis a algumas doenças relacionadas com o álcool”. A OCDE acrescentava que “o consumo elevado de álcool está associado a um maior risco de doenças cardiovasculares, enfartes, cirrose hepática e alguns tipos de cancro — mas até o consumo moderado de álcool aumenta o risco de longo prazo de desenvolver estas doenças”.
Mário Negreiros, um produtor que exporta quase toda a produção do seu “Negreiros Tinto“, lamenta ao Observador que se esteja a “incluir o vinho – ou a cerveja – entre os inimigos a abater”, porque isso indica que as autoridades “estão a abdicar de fazer deles aliados no combate ao alcoolismo”. O produtor vinícola diz, sem rodeios, que “o álcool é e será sempre uma droga – consumido com moderação, facilita a socialização dos tímidos, encoraja declarações de amor… imaginem a chatice que seria Portugal sem vinho!”.
Um pouco mais a sério, Mário Negreiros defende que “consumido à bruta é uma desgraça que isola pessoas, frustra declarações de amor e faz países tristes. Com todas as exceções que se possa fazer, o facto é que as bebidas fermentadas induzem consumos moderados e as destiladas são bebidas aos shots. O melhor combate que se pode fazer à obesidade é a gastronomia, não a dieta.”
A ACIBEV, que representa mais de 80 empresas e 600 milhões de euros em faturação, garante que está a fazer mais do que “defender um setor económico”, está a “defender a nossa cultura”. Ana Isabel Alves diz que “o objetivo final dos lóbis anti-álcool é privar-nos de beber um copo de vinho à refeição”. “Não podemos embarcar nestas ondas, os países do sul têm de se unir, porque quando as medidas forem aplicadas não vão fazer distinção entre o vinho e o vodka, vai tudo a eito”, alerta a responsável, que reconhece que muitos seus produtores seus associados ainda não estão conscientes do que aí pode vir.
Mas qual é, afinal, o risco real de em Portugal medidas como as irlandesas serem aplicadas? George Sandeman pensa um pouco e responde: “bem… se há cinco anos alguém se dirigisse a nós e dissesse que dali a uns anos iria ser proibido comer um bolinho de bacalhau num hospital se calhar você chamava-lhe maluco...”