Há mais de 70 dias que o relógio da Estação Central de Pyongyang desperta a capital da Coreia do Norte às 5h00 da madrugada, uma hora mais cedo do que o habitual. Primeiro, ecoa uma sirene igual às que antecipam raides aéreos em tempo de guerra; depois, ouve-se música heróica em altos berros e, para terminar, repetem-se slogans de propaganda que exaltam o regime liderado por Kim Jong Un.
É assim todos os dias, de segunda a sábado, desde que está em marcha a Batalha dos 70 dias, uma campanha de trabalho intensivo e obrigatório, que a população foi chamada a cumprir nos últimos dois meses e meio. Tudo para que o país estivesse a postos para acolher em grande estilo o Sétimo Congresso do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, um acontecimento único, que já não se realizava há 36 anos, e que esta manhã arrancou na Casa da Cultura 25 de Abril, em Pyongyang.
As atividades decorrem à porta fechada. Os 130 jornalistas internacionais convidados para acompanhar a ocasião, terão de o fazer a 450 metros do edifício e sem ideia daquilo que se passa lá dentro.
Durante este período, operários fabris, agricultores, académicos, cientistas, militares e elementos da elite política do país começaram a trabalhar mais cedo e saíram depois das 22h00 para cumprir missões como limpar ruas, cortar sebes, pintar prédios e aprimorar canteiros. Em vários pontos da capital há posters que apelam à colaboração de todos, com perguntas como: «Camarada, já implementaste hoje o teu plano para apoiar a Batalha dos 70 dias?» Relatos dos últimos dias descrevem Pyongyang como uma cidade-modelo, onde nada, nem ninguém, está fora do sítio.
O esforço não se limita à capital. Na Província de Ryanggang, por exemplo, a população tinha um objetivo: construir um orfanato junto à Universidade de Kim Jong Suk a tempo do Congresso. O regime queria realizar a obra como forma de demonstrar o amor pela nova geração. Era uma prova da esperança no futuro.
Kim Jong Un fez saber que tinha intenção de inspecionar pessoalmente a construção por estes dias. A célula local do Partido instigou as pessoas a apressarem-se para tudo ficar pronto antes da visita do líder. No inverno, as temperaturas negativas quase inviabilizaram a empreitada, mas a chegada da primavera trouxe um novo ritmo.
Os líderes regionais tornaram claro que o apoio de cada um à obra era uma forma de expressar lealdade ao próprio Kim Jong Un e prometeram endurecer as sanções para quem tentasse escapar ao dever. Enquanto foi possível, alguns pagavam para fugir ao trabalho de construção, mas o risco aumentou muito com o aproximar da data limite e o preço diário do suborno tornou-se praticamente incomportável.
Nas últimas semanas, o valor era equivalente ao de dois quilos de arroz, um bem precioso num país que passou por períodos de fome severa. Não houve outro remédio se não colaborar, embora os mais sobrecarregados tenham sido os estudantes e os operários de uma indústria estatal.
Em Pyongyang, para garantir que o guião era cumprido ao milímetro, o regime impôs algumas regras temporárias: bloqueou as entradas e saídas da capital, alertou a população para não circular pelas estradas que conduzem à cidade e intensificou as movimentações dos inminban, as patrulhas do Ministério da Segurança do Povo que inspecionam bairros, casas particulares e hotéis, com mandado para verificar a identificação de todos e deter quem estiver em situação irregular.
Por deliberação de Kim Jong Un, que deverá ser eleito Secretário-Geral do Partido nos próximos dias, não haverá funerais durante o Congresso e as noivas terão de guardar os seus vestidos vermelhos de seda bordada — chima jeogori (o traje típico da ocasião na Coreia do Norte) — para outras datas. É que, por agora, também é proibido casar. Quem desobedecer, será tratado como um criminoso político e enfrentará as devidas consequências.
Seis Congressos presididos por um único líder
A azáfama justifica-se: em teoria, o Congresso do Partido dos Trabalhadores é o mais importante órgão político do país (na prática, quem manda é Kim Jong Un). Desde que as Coreias se separaram, em 1945, só houve seis encontros deste tipo, todos presididos por Kim Il Sung, pai da pátria e avô do atual líder. O primeiro ocorreu logo um ano depois do fim da ocupação japonesa e o segundo, daí a dois anos, já se centrou na clivagem entre as duas Coreias. Foi neste Congresso que os comunistas do país apresentaram o seu emblema: além da foice e do martelo, o símbolo norte-coreano inclui ainda um pincel, que representa a importância da educação.
O terceiro Congresso, em 1956, decorreu no rescaldo da substituição de Estaline por Nikita Krushchev na liderança do PC soviético. Na época, Kim Jong Il temia que o seu lugar estivesse em risco, mas a tentativa de deposição só ocorreria meses mais tarde, sem sucesso. De acordo com a Carta do Partido, os Congressos deveriam acontecer de cinco em cinco anos, mas a periodicidade nunca foi respeitada. As reuniões magnas seguintes tiveram lugar em 1961 e 1970. Depois, o Grande Líder só voltou a chamar todos os delegados à capital daí a uma década.
Em outubro de 1980, num dos quatro dias do encontro, Kim Il Sung falou durante cinco horas na presença de enviados da União Soviética e da China — os históricos aliados da Coreia do Norte. O discurso foi várias vezes interrompido por entusiásticas salvas de palmas da plateia e ficou marcado por uma revelação importante. O Grande Líder anunciou que, depois da sua morte, caberia ao filho, Kim Jong Il, suceder-lhe no poder.
Estava instaurado o princípio da transmissão hereditária da liderança no país. O herdeiro assumiu o comando em 1994. Morreu em 2011, sem nunca ter convocado um Congresso — ao contrário do pai, para quem o Partido era lapidar, Kim Jong Il centrou a sua liderança nas Forças Armadas. Agora, 36 anos depois, o filho dele quer retomar uma tradição que se perdeu antes de nascer. Está empenhado em devolver ao Partido o fulgor que teve nos tempos do avô.
Muito se especula sobre o que vai acontecer nos próximos dias. Os especialistas internacionais são unânimes na previsão de que este será «o Congresso da coroação de Kim Jong Un», como lhe chama o New York Times. Ao contrário do pai, que teve 14 anos para se preparar para o cargo, o jovem líder teve de aprender tudo à pressa para subir ao poder antes dos 30 anos. Depois de uma adolescência passada na Suíça, esperava-se que fosse um moderado. Mas bastaram as execuções e purgas dos primeiros tempos para se perceber que isso não iria acontecer.
Kim Jong Un fez uma razia às gerações mais antigas do Partido. Terá mandado matar mais de 100 altas figuras, entre as quais o seu tio, Jang Song Thaek, e o ministro da defesa, Hyon Yong Chol. A carnificina foi tal, que o presidente da Coreia do Sul lhe chamou “o Reino de Terror de Kim Jong Un”. Desde que subiu ao poder, o mais novo da dinastia tem vindo a rodear-se de gente jovem, que muitos veem como a futura elite política do país. É natural que o Congresso sirva também para formalizar a posição privilegiada desta nova nomenclatura de Pyongyang.
Um Congresso envolto em mistério
Nas últimas semanas, a capital teve de preparar-se para receber e alojar os mais de 3000 delegados que participam na reunião magna. Segundo o jornal Daily NK, em 1980 estiveram presentes 3200 elementos, escolhidos entre os 3,2 milhões de militantes que o Partido tinha na época. Este ano, as células locais, compostas por grupos de cinco a 30 elementos, e espalhadas por todo o território, também elegeram os respetivos delegados, que a partir desta sexta-feira se reúnem.
Estarão ainda representados alguns dos mais importantes departamentos do Estado, como o de Organização e Orientação, o de Propaganda e Agitação, o de Finanças e Contabilidade, além das Forças Armadas e de Segurança, entre outros. Os altos quadros das principais empresas públicas e da indústria de armamento também devem ter assento no Congresso. Alguns lugares ficam reservados a pessoas da classe trabalhadora.
Ao contrário do que aconteceu nos congressos anteriores, este será mais virado para o interior do que para o exterior e, devido à tensão atual com a China por causa do programa nuclear de Pyongyang, o mais provável é que Pequim não envie ninguém à reunião. Também não se sabe se Robert Mugabe, o presidente do Zimbabué, estará presente, como em 1980.
É quase certo que Kim Jong Un será eleito Secretário-Geral. Se a tradição se mantiver, não faltarão manifestações de louvor ao percurso do líder, durante o Congresso, que marca o início oficial da sua era. Se o tempo do avô foi dominado pelo Partido e pela ideologia marxista-leninista adaptada ao conceito de juche (autossuficiência), o do pai deu mais relevância ao poder militar, seguindo o modelo songun, com as forças armadas a sobrepor-se a tudo o resto. A época de Kim Jong Il ficará também para a história da Coreia do Norte como um período de grandes fomes, que terão provocado milhões de mortos entre a população.
Kim Jong Un já deu sinais de que quer investir no desenvolvimento económico do País e, à sua maneira, melhorar as condições de vida da população. O Congresso servirá para dar o mote para os anos que aí vêm. À margem da recente Cimeira das alterações climáticas, organizada em Nova Iorque pelas Nações Unidas, Ri Su-yong, ministro dos Negócios Estrangeiros, resumiu da seguinte forma as suas expectativas em relação à reunião magna do Partido: “Estou certo de que, depois do Congresso, o nosso país estará ainda mais determinado a construir uma nação mais próspera, poderosa e economicamente sã. O primeiro objetivo é aumentar o ritmo rumo ao desenvolvimento económico. O segundo é melhorar o nível de vida das pessoas e o terceiro fortalecer as capacidades defensivas do nosso Estado. A verdadeira força do poder do nosso país não são as armas nucleares, nem quaisquer outros meios militares, mas a unidade entre o líder e o seu povo”.
Na manhã do primeiro dia do Congresso, como seria de esperar, a televisão estatal ocupou a antena com propaganda a enaltecer o líder. Deverá ser assim até terminar o encontro. Quando estes quatro ou cinco dias chegarem ao fim, haverá um novo Comité Central e um Partido dos Trabalhadores com quadros médios e superiores renovados. Não é de excluir a introdução de algumas alterações na organização e na dinâmica partidária.
Quanto ao que resto, sabe-se pouco. Especula-se que Kim Jong Un reitere a aposta na política de byungjin, que significa «esforço simultâneo» e assenta na interligação de dois eixos fundamentais: o desenvolvimento económico e a defesa de um programa nuclear. Há, no entanto, quem alerte para o facto de a obstinação do líder norte-coreano em relação a esta matéria poder comprometer o crescimento económico do país. Recorde-se que, em março deste ano, depois do teste nuclear de 6 de janeiro, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas aprovou sanções económicas improcedentes a Pyongyang. Pela primeira vez, a China votou a favor destas medidas.
Imprensa controlada de perto
Uma semana antes do início do Congresso, começaram a chegar à capital coreana os 130 representantes da imprensa internacional convidados pelo regime para assistir à ocasião. Mas os repórteres de alguns dos mais importantes jornais do mundo não dão único um passo sem a companhia dos guias oficiais, que lhes mostram aquilo que o governo quer que se veja. Todos os movimentos são controlados. Cada um deles recebeu uma braçadeira azul com letras brancas a dizer «repórter», em coreano. Anna Fifield, a enviada do Washington Post, reagiu à medida com humor na sua conta do Twitter: “O meu guia norte-coreano acabou de dar-me uma braçadeira de ‘repórter’ — não fosse eu andar perdida em Pyongyang sem ninguém dar por isso”.
My North Korean minder just gave me a "reporter" armband - as if I might go unnoticed through Pyongyang without it pic.twitter.com/kLk0IdCgG3
— Anna Fifield (@annafifield) May 4, 2016
Na manhã de dia 6, os cicerones da imprensa deram indicações aos jornalistas para se reunirem no hall do hotel onde estavam alojados. Deviam usar traje formal. Apesar do aparato, quando o Congresso arrancou, os repórteres internacionais tiveram a confirmação daquilo que já suspeitavam — não lhes foi dado acesso ao Congresso. Mais: o encontro começou sem que eles fossem informados.
As descrições dos media coincidem. Pyongyang está impecavelmente arranjada. Graças ao crescimento económico dos últimos anos, conseguido em parte devido à expansão chinesa, que fez disparar a procura por minério de carvão e ferro coreanos, Kim Jong Un promoveu alguma modernização na capital — uma rota que pode ficar comprometida pelas sanções. Há uma zona nova de torres de apartamentos com vista para o rio Taedong, onde vivem elementos da elite do Partido, para quem estão reservados os melhores empregos e privilégios, e cientistas envolvidos no esforço nuclear do país. São eles os frequentadores mais assíduos dos restaurantes das redondezas, dos parques de diversões e do delfinário, que entretanto abriram na cidade.
Por causa do Congresso, veem-se patrulhas permanentes junto às estátuas de bronze, aos edifícios históricos e às estações de metro de Pyongyang. Há polícias fardados e à paisana. O Daily NK garante que a preocupação com a segurança é tão grande que, à noite “podem ser vistos elementos do Departamento de Segurança do Estado de vigia, escondidos atrás dos arbustos e até nas sarjetas”. Em quase todos os quarteirões há murais vermelhos e brancos com a frase “Unidos ao Partido para sempre” pintada à mão.
Nos candeeiros públicos, foram postas bandeirinhas e as sebes estão iluminadas com luzes. Na noite de terça-feira, 3 de maio, centenas de pessoas juntaram-se na Praça Kim Il Sung para ensaiar debaixo de chuva uma parada com lanternas. Um dia depois, segundo a KNCA, a agência noticiosa norte-coreana, os participantes do Congresso foram ao Grande Teatro ver a ópera A vitória da revolução está à vista, que conta a história de uma brava combatente anti-nipónica. Também assistiram a Ode ao partido, uma peça interpretada pela Orquestra Sinfónica Nacional, no Teatro Moranbong.
Por todo o lado, enormes cartazes com as figuras de Kim Il Sung e Kim Jong Il fazem a apologia dos princípios da revolução. Os norte-coreanos sabem que não respeitar as imagens dos líderes da pátria é crime. Hyenonseo Lee, refugiada da Coreia do Norte e autora do livro A Mulher com Sete Nomes, lembra-se de que, já na sua infância, nos anos 80, se cuidava dos retratos com uma devoção religiosa. Lá em casa, as fotografias tinham um lugar especial e eram limpas com um pano próprio distribuído pelos funcionários governamentais. As famílias não podiam usá-lo para mais nada. Uma vez por mês, eram inspecionadas. Um descuido podia significar a prisão.
Nos dias que antecederam o arranque do VII Congresso, as telas de propaganda estavam radiosas, as crianças treinavam movimentos repetitivos com bandeiras vermelhas, havia grupos de jovens a cantar músicas revolucionárias e os militares caminhavam pelas ruas nas suas fardas caqui.
Inúmeras paradas foram ensaiadas ao milímetro para mostrar ao mundo como é harmoniosa a vida que Kim Jong Un quer mostrar. Ele, a quem chamaram Grande Sol do Século XXI, numa reunião do Partido, sairá reforçado de um encontro que o consagra a ele e aos que lhe são fiéis. Lá fora, longe da vista, está um povo que dizem passar fome e que vive afastado do mundo, sem acesso à Internet, num país onde a elite navega na rede com ligações mais rápidas do que as de muitos países do Ocidente. A qualidade do acesso surpreendeu a equipa do Washington Post quando chegou ao enorme centro de imprensa disponibilizado pelo governo.
Internet só para alguns
Apesar de a Internet estar vedada aos norte-coreanos comuns, há um grupo mais vasto que pode entrar na Kwangmyong, a Intranet local, criada em 2000, de acordo com as normas do regime. A sua função principal é disponibilizar um meio prático de troca de informação entre a indústria, as universidades e o poder central. Mas toda a gente que tenha acesso a um computador ou a um smartphone — os da marca Arirang são particularmente populares — pode utilizar esta ferramenta. Dois pormenores: um computador custa o equivalente a três meses de salário e é preciso uma autorização especial do regime para o usar.
Ultrapassados estes constrangimentos, é possível trocar emails e mensagens instantâneas com outros utilizadores, na certeza de que tudo, mas absolutamente tudo, é controlado pelos serviços estatais. Há um motor de busca que permite consultar páginas noticiosas, por exemplo, mas os conteúdos disponíveis também são filtrados. A União Internacional das Telecomunicações, a agência da ONU para esta matéria, estima que existam dois milhões de telemóveis na Coreia do Norte. O número deverá ser inferior. Um especialista citado pelo Business Insider explica que é mais barato comprar outro telemóvel do que adquirir apenas mais minutos de comunicações. Daí que possa haver utilizadores com mais do que um telefone. As chamadas para o estrangeiro e o acesso à Internet estão barrados, como seria de esperar, e apenas existe um operador, a Koryolink.
A verdadeira Internet é mesmo um privilégio reservado a um grupo de eleitos. Também aqui não há dados fidedignos sobre o número de utilizadores. No entanto, em dezembro de 2014, a Associated Press indicava que, num país com 25 milhões de habitantes, existiam apenas 1024 endereços de IP (endereços atribuídos a cada computador e que permitem aceder à Internet).
Sem dúvida que a família de Kim Jong Un usa a rede como bem entende. Ainda no tempo do pai, o próprio Kim Jong Il terá dito a Roh Moohyun, presidente da Coreia do Sul, que era “um especialista em Internet”. Reconheceu que podia ser útil abrir as comunicações numa parte restrita do território junto à fronteira com a outra Coreia, mas que fazê-lo a nível nacional traria muitos problemas. Kim Jong Un, um fã incondicional da Apple, parece concordar com o pai.
Há pouco mais de um ano, o regime proibiu a utilização de redes Wi-fi nas embaixadas estrangeiras. Aparentemente, os moradores dos apartamentos próximos conseguiam, por esta via, aceder à rede internacional sem restrições. De tal maneira que as casas junto às representações diplomáticas se tornaram muito cobiçadas. Quando as autoridades souberam, enviaram a seguinte mensagem às embaixadas: “Informamos gentilmente que a rede regional sem fios será desativada aqui. Apreciaríamos que as missões cooperassem de forma positiva com estas medidas, tomadas por questões de segurança da República Democrática da Coreia do Norte”. E assim foi. Até hoje.