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Os desabafos de Filipe Sousa, à data militar do Exército, escaparam-lhe quando nas notícias se falava na atribuição de armas ao Exército. Estava a jantar com a mãe e o tio, Valter Abreu, que morou com eles uns tempos em Aveiro, e acabou por falar sobre as “fragilidades” dos Paióis Nacionais de Tancos: falta de meios humanos, falta de apoio canino nas patrulha, poucas condições de segurança, redes estragadas. “Não conseguiam dar-nos a segurança necessária”, lembrou esta segunda-feira no Tribunal de Santarém.
Naquela que foi a primeira sessão do julgamento do caso Tancos, que envolve o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, Filipe Sousa, agora militar da GNR, não soube explicar quando é que essa conversa ocorreu. Sabe que dias depois o tio, Valter Abreu, também arguido no processo, o convidou para irem beber um copo. E só quando ia no carro com ele se apercebeu que estavam a sair de Aveiro com destino a Ansião. “Mas vamos para tão longe?”, questionou. O tio respondeu-lhe que queria apresentar-lhe um amigo, que também tinha sido militar. Falava de João Paulino, o dono do bar JB, que é apontado pelo Ministério Público como o mentor do assalto a Tancos, em maio de 2017.
“Nunca estive em Tancos”, diz Valter Abreu — o primeiro dos 23 arguidos a falar
Nessa noite o bar estava cheio, mas Paulino perdeu alguns minutos a falar com Filipe. Valter ter-se-á afastado para uma chamada, se a memória não trai Filipe, contou em tribunal. E nesses minutos Filipe voltou a falar-lhe das deficiências que encontrava no Exército, incluindo em Tancos, onde o seu Regimento, o de Engenharia, era chamado a fazer rondas alternando com outras três unidades. Paulino, por seu turno, falou-lhe dos seus tempos de fuzileiro. “Uma vez militar do Exército, militar para sempre”, justificou a certa altura Filipe, perante o coletivo de juízes, para explicar porque trocou tais informações com Paulino.
Para o Ministério Público, este encontro entre Filipe e Paulino terá sido o início do plano para o assalto em Tancos. Segundo a acusação, Valter, o tio, vendia a droga de Paulino à consignação e tinha para com ele uma dívida de mil euros, pelo que lhe teria proposto dar informações para o assalto que lhe podia render o dinheiro em falta. Em tribunal, porém, Filipe afastou esta tese. Respondeu que, de facto, o tio lhe disse que devia mil euros a Paulino, mas que nunca lhe falou em mais nada. Por outro lado, confirmou que tanto ele como a família sabiam que Valter era consumidor de haxixe. Consumia “entre cinco a seis charros por dia”, admitiu.
Filipe, arguido e acusado de associação criminosa, tráfico e mediação de armas e terrorismo, ainda antes que lhe perguntassem, disse que reconhecia ser estranho ir tão longe para beber um copo. “Mas estou habituado a fazer isso, mesmo para jantar”, justificou.
Tio também ataca advogado e recua no que disse
Enquanto Filipe falava, Valter esteve sentado ali perto, numa cadeira destinada aos arguidos, com a cabeça entre as pernas. Tinha prestado declarações perante o coletivo momentos antes. Foi aliás o primeiro dos 22 arguidos que se mostraram disponíveis para falar e desmontar a acusação. (Só um disse querer remeter-se ao silêncio). Sempre de casaco vestido, Valter acabou por desdizer o que tinha afirmado até então, na fase de inquérito e na de instrução. “É totalmente mentira”, garantiu, quando lhe perguntaram se vendia ou não droga de Paulino.
— Mas diz aqui que vendia haxixe e cocaína à consignação, leu o juiz presidente Nélson Barra.
— Não. Não. Eu não vendo droga, era simplesmente consumidor, respondeu Valter.
Visivelmente nervoso e com constante necessidade de contradizer o que tinha dito ao longo do processo, Valter acabou por apontar o dedo ao advogado que contratou mal foi detido. Disse que terá sido ele a orientá-lo para responder assim e que foi a PJ quem lhe indicou o nome daquele advogado de defesa — uma vez que tinha sido ex-inspetor. O juiz presidente, para ter a certeza do que estava a ouvir, até pediu ao arguido para retirar a viseira que tinha sido fornecida a todos os arguidos, momentos antes, pelo tribubal — para que pudessem falar, de forma mais audível, sem máscara.
Valter manteve que soube pelo sobrinho, num dia a que chegou a casa “chateado da vida”, das fragilidades de Tancos. Que “se fartava de trabalhar e era um dos únicos que fazia as rondas”, tinha-lhe contado Filipe. O juiz prosseguiu o raciocínio “… que não havia apoio canino, que não havia câmaras …”. O arguido confirmou: “Sim, sim”. Mas recusou sempre confirmar que tivesse qualquer dívida para com Paulino. A tal de mil euros que vem na acusação e que o sobrinho corrobora.
— O senhor quando fala com um juiz está a falar por si ou pelo advogado?, perguntou o juiz.
— Eu não estava bem psicologicamente, respondeu Valter.
— E vai dizer ao juiz uma coisa que não é verdade?
— Foi o advogado que disse para eu dizer, para me safar do processo…
“Nunca estive em Tancos”, garante arguido Valter
Com o coletivo de juízes perplexo, o arguido acabou mesmo por dizer: “Nunca estive em Tancos. A primeira vez que fui a Tancos foi com a Polícia Judiciária”, garantiu, negando ter mantido qualquer encontro com Paulino para combinar o assalto. “Nunca estive no assalto, nunca tive relações com o assalto, nem sabia que iam assaltar”, afirmou.
Valter Abreu acrescentou ainda que na noite do crime esteve com a namorada e recusou admitir as provas do Ministério Público que mostram que o seu telemóvel foi desligado durante o crime e que a última antena que ativou foi na A25. “Não desliguei o telefone, estava com a minha namorada”, respondeu, cada vez mais nervoso, desta vez ao procurador do Ministério Público. Depois recusou responder aos advogados do sobrinho, Filipe Alves, e do arguido João Paulino. O sobrinho viria a fazer o mesmo, recusando prestar declarações ao dele.
Advogado de Paulino pede nulidade das declarações de tio e sobrinho
A certa altura Filipe acabou por assumir que na fase de inquérito não chegou “a dizer toda a verdade”. E mais uma vez apontou o dedo ao advogado, o mesmo que representava o seu tio. “Não foi o que o meu tio veio aqui dizer, foi para confirmar algumas coisas do meu tio”, disse. “Não percebi o que o meu advogado estava a fazer na minha defesa, até que troquei de advogado”, explicou, referindo-se a Fernando Belchior. Dadas as diferentes declarações apresentadas no primeiro interrogatório judicial, o juiz decidiu então reproduzir o que Filipe Sousa disse ao juiz de instrução e depois ao Ministério Público. Durante vários minutos ouviu-se Filipe a falar nas condições dos Paióis Nacionais de Tancos.
Agora Filipe diz estar arrependido por ter falado em assuntos de Estado. Mas, na verdade, o que terá relatado dá para ver do exterior dos Paióis. Incluindo as rondas passarem a ser feitas a pé depois de o único carro disponível ter estado envolvido num acidente nas instalações. E de ele próprio contar que tentava impedir que os motards entrassem no recinto — fragilidades que chegou a inscrever num relatório.
O advogado Carlos Melo Alves, que representa João Paulino, pediu então que as declarações do arguido Filipe Sousa prestadas em fase de inquérito sejam consideradas nulas. Segundo argumenta, ficou claro que a sua defesa, assim como a do seu tio Valter, ficou em risco por ser assegurada pelo mesmo advogado. E que havendo contradições entre os arguidos, não pode o advogado “assegurar em simultâneo a defesa de um, nem do outro”, o que o próprio tribunal devia ter impedido.
A defesa de Filipe Sousa e o Ministério Público irão pronunciar-se e o tribunal irá decidir.
O Observador tentou contactar Fernando Belchior para o seu escritório e por e-mail, mas até ao momento não obteve qualquer reação do advogado.
Tancos. “A conduta de Azeredo Lopes é extremamente grave”, considera juiz Carlos Alexandre
Julgamento preparado há mais de um mês
Os lugares para assistir ao julgamento daquele que chegou a ser chamado o “roubo do século” começaram a ser definidos há mais de um mês. A limitação da sala no Tribunal de Santarém, a pandemia, a obrigação de distanciamento entre a assistência e a quantidade de jornalistas esperados para o caso que envolve um ex-ministro da Defesa, que acabou por demitir-se, exigiram planeamento. Até que chegou esta segunda-feira. Ainda não eram 09h00 e à porta havia já um dispositivo policial a controlar os acessos. No edifício só entrava quem se tinha credenciado para assistir, sob obrigação de desinfetar os sapatos e as mãos e seguir um só caminho com destino ao ao primeiro andar, na sala do “lado direito”, onde estavam sentados os 23 arguidos do processo.
Antes de cada arguido se dirigir ao microfone para dizer se iria prestar ou não declarações, alguns advogados teceram algumas linhas de defesa. O advogado Germano Marques da Silva, que chegou ao lado do seu cliente, Azeredo Lopes, acusou a PJ de ter imaginado o que passou pela cabeça do ex-governante. “A Polícia Judiciária imaginou a atuação de Azeredo Lopes”, ao dizer que a apreensão seria benéfica para o Governo, numa altura em que a sua imagem estava afetada pelos grandes incêndios de 2017. “É um comentário político puro e duro”. A relação entre este factos “é chocante”, disse.
A partir desta motivação, prosseguiu, a acusação revela que Azeredo tinha uma “relação especial” com o ex-diretor da PJ, Luís Vieira, e que por isso sabia de tudo o que ele fazia mostrando alguns contactos que ambos tiveram para o provar, criticou, fazendo antever como o seu cliente se vai defender.
Já o advogado do ex-diretor da PJM já tinha, à porta do tribunal, levantado o véu aos jornalistas daquela que seria a sua linha de defesa. Manuel Ferrador repetiu-o perante o coletivo de uma forma mais formal. O advogado de Luís Vieira lembrou que a investigação era da competência da PJM e que o despacho do Ministério Público a atribuir a investigação à PJ é ilegal. “O arguido Luís Vieira sempre obedeceu à lei”, afirmou, “viu-se perante um conflito de deveres” e tentou alertar a tutela para isso.
A defesa do major Basco Brazão, à data dos crimes porta-voz da Polícia Judiciária Militar, disse que ele atuou num contexto de uma relação com um informador numa investigação. Reconheceu que participou num ato que foi “um erro”, porque a investigação era da Polícia Judiciária Civil, mas que se limitou a cumprir as ordens da hierarquia. Ricardo Sá Fernandes acusou, no entanto, o Ministério Público de também não ter tido uma atuação exemplar. “Ele não aceita que lhe digam que fez um negócio com traficantes de armas”, avançou. O major Brazão esteve fardado com a indumentária do Exército durante toda a manhã, mas à tarde já compareceu à civil.
O advogado de João Paulino, visto como o líder do assalto, lembrou nesta primeira sessão que o seu cliente devolveu todo o armamento que furtou — embora parte tenha sido devolvida só há cerca de duas semanas. “Era vendável, mas ele decidiu devolvê-lo”, sublinhou Carlos Melo Alves. Frisando ainda que em março de 2017, dois meses e meio antes do assalto, houve uma queixa contra Paulino de que o crime iria acontecer, lembrando a queixa de ‘Fechaduras’.“Esta denúncia era de uma enorme gravidade porque estava em causa a subtração de material de guerra, impunha-se a tomada de medidas urgentes”, disse o advogado, que lembrou que o seu cliente entregou as armas à PJM na sequência de um acordo “com o Estado”.
Uma queixa que deverá continuar a dar que falar ao longo do julgamento que prossegue esta quarta-feira. E em que João Paulino falará da parte da tarde.