Durante a investigação que viria a dar origem ao livro branco com recomendações para o teletrabalho, Rita Grave e a equipa de investigadores ouviram relatos de chefias segundo os quais quem está em teletrabalho fica “esquecido” face a quem está frequentemente no escritório. Um deles é de André (nome fictício), que reconhece falta de preparação entre os gestores de equipa: “Há até situações em que fazemos reuniões e esquecemo-nos de telefonar à pessoa que está a trabalhar a partir de casa. Ainda não temos uma mentalidade suficientemente evoluída para escapar ao slogan: ‘Quem não é visto é esquecido’. E assim tendemos a esquecer as pessoas que estão em casa.”
Não tem de ser assim, entende a equipa de investigadores que produziu o livro branco que resulta de um projeto financiado pelo mecanismo financeiro plurianual (conhecido como EEA Grants), dirigido aos Estados-membros com maiores desvios da média europeia no PIB, onde Portugal se inclui (neste caso, as verbas vieram da Noruega). O estudo, promovido pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e com apoio técnico da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, conclui que através da formação e de uma adaptação da gestão (por exemplo, por objetivos) essas “discrepâncias” podem ser esbatidas.
Os dados disponíveis não permitem concluir que os trabalhadores remotos são prejudicados na progressão face a quem está frequentemente no escritório. Mas Rita Grave reconhece o “risco” de isso acontecer, pelos relatos das chefias. Além da sugestão de mudança na gestão, o livro branco sugere que o Instituto Nacional de Estatística (INE) inclua na recolha de dados sobre o teletrabalho aspetos relativos à remuneração, mas também à formação e à progressão de carreira, incluindo para avaliar discrepâncias de género.
Entre as sugestões do livro branco — que tem um foco na conciliação entre vida profissional e pessoal — consta ainda um “novo enquadramento” legal que permita a variação do local de trabalho, uma vez que a morada em que prestam atividade pode variar muito, de forma a garantir-lhes maior proteção na eventualidade de acidentes no horário laboral; a criação de espaços públicos de co-working (escritórios partilhados) gratuitos ou de baixo custo, o que permitiria evitar o isolamento dos trabalhadores; assim como o alargamento da possibilidade de os trabalhadores pedirem teletrabalho, com prioridade para a sensibilização das empresas antes de se avançar para uma eventual alteração legislativa. A ideia é que as propostas — que se dirigem às empresas, ao Estado e aos parceiros sociais — possam ser apresentadas ao novo Governo.
As recomendações do livro branco para o Estado
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- Recomenda-se a flexibilização legal da noção de local de trabalho, permitindo a sua multiplicação e mutabilidade, e criação de um enquadramento para o trabalho remoto itinerante.
- Recomenda-se a consagração de uma forma expressa, em lei, do direito a desligar, e o estabelecimento de mecanismos de monitorização do cumprimento do mesmo.
- Recomenda-se que, no âmbito da fiscalização das condições de trabalho, seja reforçada a monitorização do cumprimento dos requisitos legais para o teletrabalho, e que sejam integrados riscos profissionais, ao nível da saúde e segurança no trabalho, especificamente relacionados com o teletrabalho.
- Recomenda-se ainda que as práticas de medicina no trabalho passem a incidir também sobre aspetos relativos à saúde ocupacional, física e mental, inerentes ao teletrabalho.
- Recomenda-se a criação de um referencial de formação específico sobre teletrabalho na ótica do género, com especial enfoque na conciliação da vida pessoal, familiar e profissional, interseccionalidade e múltiplas discriminações.
- Recomenda-se a criação de mais espaços públicos de teletrabalho/coworking, de acesso gratuito ou de tarifa de utilização reduzida, com ligação à internet e condições de higiene e segurança no teletrabalho, incluindo salas de reuniões.
- Recomenda-se que a recolha de dados sobre teletrabalho se mantenha em contexto pós-pandémico, com o alargamento das variáveis segregadas em função do género.
- Recomenda-se ainda que seja conduzido um estudo representativo ao nível nacional, sobre os tempos de trabalho formal e informal, em contextos de teletrabalho, em mulheres e homens.
- Recomenda-se que a temática do teletrabalho seja integrada em materiais e programas de promoção da igualdade de género e prevenção da violência contra as mulheres, abordando os riscos e benefícios desta modalidade de trabalho.
- Recomenda-se ainda que sejam conduzidos estudos que permitam caracterizar as experiências de violência e assédio, laboral e doméstico, em contexto de teletrabalho.
Algumas das vossas sugestões implicam alterações à lei. Vão apresentar estas conclusões ao novo Governo ou já apresentaram ao anterior?
O lançamento dos nossos resultados coincidiu com uma fase mais conturbada a nível político no nosso país, as eleições estavam a acabar de acontecer. Lançámos os resultados no rescaldo das eleições e tivemos essa dificuldade de ainda não termos conseguido fazer a apresentação ao Estado português. Seria um dos nossos objetivos, mas a instabilidade política ainda não nos permitiu concretizar com sucesso este objetivo.
Mas querem eventualmente apresentar ao novo Governo?
Sim, seria nosso objetivo apresentar, eventualmente.
Um dos pontos que referem é que o teletrabalho traz desafios na igualdade entre trabalhadores presenciais e remotos, mesmo nas promoções e na progressão na carreira, e sugerem que o INE recolha dados sobre a progressão de quem está em teletrabalho. Há evidência de que os teletrabalhadores possam ser preteridos face aos que estão no escritório?
Os nossos resultados apontam para uma significativa discrepância entre as pessoas que trabalham no local presencial e as pessoas que trabalham à distância, pudemos constatá-lo tanto no estudo quantitativo como no estudo qualitativo que fizemos. O primeiro foi de março a julho de 2023, em que realizámos um inquérito online a 341 participantes. Obviamente estes participantes não são representativos da população portuguesa, mas dão-nos informações novas muito importantes sobre o que está a acontecer a estas pessoas. Os inquiridos têm uma idade média de 41 anos, a maioria (70%) são mulheres. Também fizemos o estudo qualitativo, realizado numa empresa com teletrabalho, de julho a setembro de 2023, com 11 entrevistas. As chefias, os dirigentes daquela empresa, eram cinco mulheres e seis homens. E tanto no estudo quantitativo como no qualitativo conseguimos perceber estas diferenças entre quem está em casa e quem está no local de trabalho.
Que discrepâncias são essas e porque podem acontecer?
Um dos motivos que nos parece principal, que pode estar a acontecer, e também está espelhado nas nossas recomendações, é algumas lacunas na formação e na preparação das chefias para gerirem equipas híbridas. Ou seja, a capacidade para gerir uma equipa de, por exemplo, 20 pessoas em que 10 estão em teletrabalho e 10 na empresa. Depois, também percebemos que os mecanismos pelos quais é realizado o contacto com quem está em casa, as ferramentas de diálogo, geram às vezes algum ruído na comunicação ou atrasam-na ligeiramente. Estou a lembrar-me agora de um discurso direto de pessoas participantes — chefias — que me diziam isso, que numa emergência, no momento de responder a um desafio na empresa, é quase um automatismo chamar a pessoa que está ao lado, que está visivelmente ao alcance daquele chefe que está a tentar resolver um problema. A pessoa que está mais próxima fisicamente acaba por ser solicitada. Ligar o Zoom ou o Teams ou outra ferramenta para contactar a pessoa à distância acaba por ser, às vezes, um mecanismo impeditivo de a trazer para o desafio, para uma solução, ou uma situação que até possa promover o crescimento profissional. As pessoa que estão em casa acabam por ficar esquecidas. São palavras dos nossos participantes.
As recomendações do livro branco para as empresas
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- Recomenda-se que se garanta o acesso das/os teletrabalhadoras/es a direitos já consagrados, como a remuneração, formação (incluindo à distância) e outras oportunidades de desenvolvimento profissional, em condições de igualdade com trabalhadores/as presenciais.
- Recomenda-se que haja mais do que um local de teletrabalho indicado no acordo de teletrabalho, para que o/a trabalhador/a possa alternar de acordo com a sua conveniência e preferência, salvaguardando-se também a revisão dos seguros contratados para acautelar as diferentes localizações em caso de acidentes de trabalho.
- Recomenda-se que, se as condições o permitirem, as entidades empregadoras estendam a possibilidade de realizar teletrabalho a trabalhadores/as que não estejam, necessariamente, cobertos/as pelo direito legal a solicitá-lo, em função das suas preferências e circunstâncias pessoais e familiares.
- Recomenda-se que se utilizem sistemas de lembretes para a realização de pausas e que alertem quando ultrapassado o número de horas de trabalho previstas para o dia.
- Recomenda-se ainda que, de forma a colmatar os riscos do teletrabalho, as entidades empregadoras apresentem sugestões de atividades a realizar nas pausas dos/as trabalhadores/as (e.g., sequência de alongamentos, beber água, etc.).
- Recomenda-se que sejam reforçadas estratégias de team building em ambiente virtual, garantindo também o acesso dos/as teletrabalhadores/as a iniciativas presenciais de convívio/partilha institucional.
- Recomenda-se que, no âmbito dos planos formativos das entidades empregadoras, sejam incluídas ações específicas destinadas a pessoas em teletrabalho, que contemplem assuntos relacionados com saúde ocupacional, proteção de dados e conciliação da vida pessoal, familiar e profissional.
- Recomenda-se que as lideranças sejam capacitadas, através de formação específica, para a gestão de equipas mistas à distância e reforço das suas competências digitais.
- Recomenda-se que seja fomentada uma cultura de confiança, com autonomia para os/as trabalhadores/as gerirem o seu trabalho, embora responsabilizando-os/as pelo cumprimento de metas e objetivos acordados.
- Recomenda-se que, em teletrabalho, seja adotado um modelo de trabalho por objetivos com flexibilização de horários, ainda que estabelecendo períodos específicos da jornada de trabalho em que o/a trabalhador/a deve garantir estar disponível para interação (e.g., ser contactado, ter reuniões).
- Recomenda-se que os/as trabalhadores/as sejam auscultados/as periodicamente acerca das suas perceções sobre o teletrabalho, e que os seus contributos sejam considerados para reavaliações do modelo implementado.
- Recomenda-se que cada entidade empregadora elabore um código de conduta em teletrabalho, fazendo constar o mesmo em regulamento interno. Este deve ser publicitado e identificar explicitamente os canais e regras de comunicação a utilizar em teletrabalho, limites das interações (incluindo relativamente à captação de imagens), assim como mecanismos de reporte e atuação em caso de incumprimento.
- Recomenda-se que seja difundida informação sobre a possibilidade e/ou dever de denúncia de crimes públicos detetados no contexto do teletrabalho, e procedimentos de atuação responsável perante a suspeita da sua ocorrência
Como é que as empresas podem resolver este problema? Formação, gestão por objetivos?
Trazemos um conjunto de recomendações que se cruzam entre elas. Alguns exemplos que podem colmatar este desafio que encontramos nas pessoas que estão em casa e podem sentir-se esquecidas são esses: a formação, a gestão por objetivos. No caso da formação: percebemos que a capacidade de gerir equipas híbridas ou só teletrabalho poderá ser ainda uma lacuna nos contextos de trabalho. Uma sugestão é criar um referencial, por exemplo, de formação sobre teletrabalho que seja sensível a estas diferenças e também ao género, que é um tema transversal no nosso trabalho. Mas é fundamental capacitar as empresas, as chefias, para tirarem o melhor proveito do teletrabalho e das ferramentas. Em boa verdade, estas ferramentas, e tendo em conta a evolução tecnológica atual, foram criadas para facilitar o nosso trabalho e não para serem transformadas num obstáculo. Devemos aproveitar estas ferramentas, sem reforçar impactos de desigualdade.
E no caso do trabalho por objetivos?
O trabalho por objetivos também é ressalvado pelos nossos resultados, com um pedido de flexibilizar o trabalho [pelos participantes]. Cada trabalhador é uma pessoa singular com determinadas características e necessidades de conciliação familiar e pessoal. E uma norma demasiado generalista e abrangente não resolve nem facilita as necessidades de conciliação que cada pessoa terá. O que percebemos é que esta necessidade de flexibilizar o trabalho é um dos principais convites dos nossos resultados para o teletrabalho futuro. E com esta flexibilidade trazemos o termo “flex-work” que é utilizado inclusive no nosso país doador [Noruega], e que está a par do trabalho por objetivos (e não por horas de trabalho). Com esta flexibilidade as pessoas, incluindo as chefias, conseguem fazer um controlo da gestão do seu trabalho de forma muito mais ajustada às suas necessidades mais especiais e individuais.
Mas em que consiste essa flexibilidade?
Este trabalho por objetivos, com esta flexibilidade de trabalho, traria uma mudança muito significativa ao que a maioria das empresas no nosso país costuma fazer. A maioria das empresas faz horário fixo das nove às cinco, com pausa para almoço. O que este flex-work viria ajudar a fazer seria uma transformação nesta forma de pensar o trabalho, que já não precisava de ser das nove às cinco, mas em função de cumprir determinados objetivos num prazo. Para alguém poderia ser mais fácil fazê-lo no período da manhã, para outras pessoas no período da tarde e, assim, conseguia-se esta conciliação. Com esta flexibilidade, as chefias poderiam também ter mais margem para uma gestão destas modalidades híbridas, sem tantas barreiras.
Também sugerem que a nível legal seja criado um enquadramento para o trabalho remoto itinerante. Porquê esta preocupação?
Neste momento, não é possível contemplar mais do que um local de teletrabalho precisamente por questões de segurança no trabalho. A exigência de uma morada no local e do controlo das questões de segurança neste mesmo local acabam por impedir que o teletrabalho possa ser realizado em mais do que um local.
E muitos trabalhadores remotos não trabalham apenas num local, tiram proveito dessa vantagem que é trabalhar a partir de qualquer parte.
Precisamente, essa é uma das vantagens. E os nossos participantes também nos mostraram isso. Como o nosso foco estava muito direcionado para as conciliações familiares, percebemos que muitos dos participantes nos nossos estudos tinham grandes constrangimentos no que diz respeito a estas conciliações. Por exemplo, temos o caso de uma pessoa que tem a seu cargo um adulto — a mãe vive na sua casa — e por acaso até faz uma partilha com os irmãos e irmãs. À segunda e à sexta-feira tem de cuidar da mãe, prestar alguns cuidados, apoio, medicação. E consegue fazê-lo estando a teletrabalhar simultaneamente. Mas no modelo que temos atualmente esta pessoa não pode estar a trabalhar a partir da casa da mãe à segunda e à sexta-feira, por exemplo.
Porque, se tiver um acidente na casa da mãe, pode não ser considerado pela seguradora acidente de trabalho e isso tem implicações na proteção?
Sim. A reflexão que convidamos a fazer é reformular este enquadramento para que seja possível colocar mais do que uma morada, que possa estar legalmente enquadrada, e que permita esta flexibilidade que o teletrabalho permite. São dois conceitos que estão de mãos dadas e neste momento essa flexibilidade está comprometida pelo facto de o enquadramento legal não permitir esta variação do local de trabalho.
Neste caso propõem mesmo uma alteração legislativa?
Sim, neste caso, por questões de segurança no que diz respeito a acidentes de trabalho merece uma revisão legal, mas que pode partir dos contextos de trabalho, dos parceiros sociais, para haver uma reformulação e um novo enquadramento para permitir esta flexibilização.
As recomendações do livro branco para os parceiros sociais
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- Recomenda-se que sejam produzidos e difundidos materiais informativos sobre os direitos e deveres dos/as trabalhadores/as em teletrabalho.
- Recomenda-se que os movimentos sindicais elaborem linhas orientadoras para o estabelecimento e manutenção da comunicação com trabalhadores/as em situação de teletrabalho, nos vários setores de atividade, promovendo também a capacitação de representantes sindicais para a defesa dos interesses dos/as teletrabalhadores/as.
- Recomenda-se que os movimentos sindicais se mobilizem em torno da discussão sobre novos modelos de inspeção de condições de trabalho e advoguem pela adaptação das práticas de medicina no trabalho, para que incluam a avaliação e intervenção em aspetos de saúde ocupacional, física e mental, específicos do teletrabalho.
- Recomenda-se a negociação com municípios e/ou outros parceiros locais para a disponibilização de espaços gratuitos e certificados (ao nível das condições exigidas legalmente) para realização de teletrabalho, incluindo salas de reuniões que possam ser utilizadas por teletrabalhadores/as.
- Recomenda-se a recolha regular de dados quantitativos e qualitativos, segregados por género, sobre as experiências de teletrabalhadores/as, incluindo experiências de abuso nestes contextos.
Outra proposta é que seja ampliado o universo de trabalhadores que podem ter direito a pedir o teletrabalho. Para incluir que situações?
Queremos com esta recomendação uma lente interseccional do teletrabalho. Neste momento, sentimos que, e com os resultados dos nossos estudos, o teletrabalho veio para ficar, as pessoas têm elevado interesse em mantê-lo. Contudo, poderá estar a acontecer alguma resistência, alguma tendência para as pessoas, sobretudo nalguns contextos empresariais, retomarem o trabalho nos seus locais com algum vínculo até. E tende-se a fazer uma leitura das pessoas que têm este enquadramento muito restrita.
Vocês dizem que há um conservadorismo da forma como o teletrabalhador é olhado.
Sim, também. E esta restrição acaba por criar muitas possibilidades de outras pessoas que têm esta vontade de estar em teletrabalho ficarem fora da equação. Há um conservadorismo — chamamos um conservadorismo cultural — de desconfiança, algo que sentimos que acontece de forma relativamente abrangente no nosso país. Este conservadorismo é o ponto de partida do teletrabalho, é uma premissa que parte da desconfiança. Algumas empresas no nosso país sentem algum desconforto pela distância visual…
Mas então neste caso, além da alteração cultural que teria de haver, o que se poderia mudar na lei?
Quando as questões são culturais e transversais talvez o movimento mais importante fosse a sensibilização, a capacitação, para desconstruir alguns destes estereótipos que estão cristalizados na nossa sociedade sobre o receio de não se conseguir controlar quem está a trabalhar a partir de casa, de duvidar se a pessoa está efetivamente a trabalhar ou se estará a contrariar o sistema. Antes de mais, era importante uma sensibilização e campanhas que permitam desconstruir este conservadorismo e que o ponto de partida do teletrabalho seja a confiança. Que se confie até que se prove o contrário, e não a desconfiança até que se prove o contrário. Isto para permitir que a flexibilidade seja possível, para que uma pessoa possa escolher em que período vai realizar as suas tarefas, permitindo esta conciliação familiar e pessoal.
E depois a nível legal, propõem que o direito do teletrabalho seja alargado, nomeadamente a mais pais. A quem?
Para, por exemplo, pessoas que tenham um encargo ou adultos a cuidado, pessoas com alguma mobilidade condicionada ou que ao nível da conciliação familiar tenham características individuais muito particulares. Diria que, sobretudo, deve haver a sensibilização das empresas para os contextos de trabalho, para que incluam nos seus guiões de conduta questionários ou diálogo com os trabalhadores para melhor conhecimento dos seus enquadramentos mais familiares ou das suas necessidades de conciliação pessoal/familiar. Que conhecendo essas necessidades, as contemplem nas medidas e na atribuição do teletrabalho para que ele possa ser mais abrangente e que não se restrinja só àquelas situações da parentalidade em períodos e idades limitados.
Quem e em que situações já pode impor teletrabalho
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A lei prevê que os trabalhadores com filhos até três anos têm direito ao teletrabalho quando é compatível com a atividade e se o empregador tiver os recursos e meios para o efeito. Desde 2021 que este direito pode ser estendido até aos oito anos nos casos em que ambos os pais têm condições para o teletrabalho, se ambos exercerem atividade nesse regime em períodos sucessivos de igual duração num prazo de referência máxima de 12 meses; ou nas famílias monoparentais ou situações em que apenas um dos progenitores, comprovadamente, reúne condições para ter teletrabalho.
Portanto, primeiro sensibilizar as empresas e só depois pensar-se em legislar?
Nós acreditamos que, para uma otimização do teletrabalho no nosso país, este movimento tem de acontecer. Em todos estes eixos, não só na sensibilização nos contextos de trabalho, nas empresas, nas próprias pessoas trabalhadores, no envolvimento dos parceiros sociais, não só no Estado, diria que é um trabalho transversal e multidisciplinar.
Dizem que no caso do direito a desligar, a lei não é suficiente porque não existe uma definição exata do conceito e o enquadramento atual não desobriga o trabalhador da conexão. Queriam que a lei fosse mais longe em que sentido?
Apesar de existir, atualmente, na nossa lei um enquadramento que introduz o direito a desligar, percebemos, com os resultados dos nossos estudos, que continua a acontecer, por exemplo, a hiperconexão das pessoas em situação de teletrabalho. Continuam a ser contactadas em horários pós-laboral em consequência deste efeito de estarem sempre ligadas. O que propomos é que, tendo em conta estes resultados, que se contemple esta medida bem definida na nossa lei e que se implementem medidas que impeçam que esta hiperconexão continue a acontecer, assim como o cansaço próximo de algum burnout no trabalho. Inclusive que se tenha em conta a saúde mental das pessoas em situação de teletrabalho — que vemos que, em alguns casos, possa estar comprometida.
O "dever de abstenção do contacto"
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O mais próximo do “direito a desligar” que o Código do Trabalho prevê é, desde o final de 2021, o “dever de abstenção do contacto” segundo o qual “o empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior”.
Aí teria de partir das empresas, garantir que esses contactos não existem…
Ideias que as empresas poderiam adotar são introduzir no regulamento interno este direito a desligar ou convidar as pessoas da empresa a trocar emails num período que seja convencionado pela própria empresa, que favoreça, facilite e incentive este direito a desligar. Depois há o problema do presentismo que às vezes está a mascarar algumas desigualdades. Estou a recordar-me de uma situação de uma participante que é chefe de equipa e que comparava algumas das pessoas que trabalham na sua equipa. Todas estavam em teletrabalho alguns dias da semana e disse-nos que achava incrível como há pessoas que fazem milagres: às 17 horas já fizeram um trabalho incrível e por questões de conciliação têm de sair a essa hora. E há outras que ficam até às 21h00 na empresa, ou do outro lado do ecrã em teletrabalho, e que não representam necessariamente mais produção. Acho que a combinação destes fatores, desde o incentivo efetivo a desligar a um compromisso com a confiança da pessoa que trabalha à distância, seria muito favorável, não só para a flexibilização como para um bem-estar geral.
Frequentemente o teletrabalho é visto como uma boa ferramenta para a conciliação entre trabalho e família e também para a redução das desigualdades entre homens e mulheres, mas pelo vosso estudo não é bem assim. Pode ter até um efeito contrário?
As principais razões que as pessoas destacam para terem teletrabalho são três: a poupança de dinheiro nas deslocações entre casa e empresa; a poupança de tempo nessas deslocações — tempo esse que é fundamental e foi muito importante nas nossas análises; e depois há uma grande diferença na outra razão apontada entre homens e mulheres. As mulheres explicam que optam por conciliações familiares e os homens informam-nos mais que fazem essa opção por via do lazer. Logo aqui vemos uma diferença. Importa destacar que todas as pessoas independentemente do sexo ou género estão altamente satisfeitas com o teletrabalho — 81% estão completamente satisfeitas ou satisfeitas. Mas quando vamos ver a perceção do bem-estar psicológico vemos diferenças significativas quando comparamos mulheres e homens, sendo as mulheres as que reportam um inferior bem-estar comparativamente com os homens.
Porquê?
Achamos que uma das explicações para isso está ligada a estas questões da distribuição do tempo nas tarefas do trabalho formal remunerado com o trabalho informal das tarefas domésticas. Enquanto tanto homens como mulheres dedicam exatamente o mesmo tempo ao trabalho remunerado, nas tarefas domésticas, no cuidado a crianças, a pessoas adultas, as diferenças são significativas e revelam que as mulheres dedicam mais tempo a estas categorias. E depois na categoria do lazer que inclui hobbies, desporto, ginásio, então aí os homens dedicam mais tempo. O que percebemos é que, com o teletrabalho, o que está a acontecer é que os ganhos e benefícios mais individuais estão a ser mais conquistados pelos homens no lazer, por exemplo. E as mulheres acabam por percecionar os ganhos para a conciliação entre o trabalho e a família, mas está invariavelmente latente uma anulação da sua individualidade. O que as mulheres acabam por fazer é: ‘ok, poupamos tempo nas deslocações entre a empresa e a nossa casa, então vamos aproveitar esta poupança de tempo para um conjunto de tarefas domésticas e de cuidado’. E acabam por ganhar um bem-estar mascarado, porque a nível psicológico o bem-estar está comprometido. Mas encontram uma conciliação mais favorável porque conseguem adiantar o jantar entre reuniões, fazer uma máquina da roupa no intervalo de uma tarefa do trabalho remunerado, etc.
Mas aí é cultural, por via da lei não é muito fácil alterar esses hábitos.
E aqui aludimos às ferramentas dos contextos de trabalho e contextos sociais. O Estado é também um importante facilitador destas campanhas de sensibilização. Mas é verdade que conseguimos perceber que as desigualdades mantêm-se estruturais apesar das grandes conquistas que ao longo dos últimos anos fomos conquistando. Precisamos de implementar medidas mais macro para que se possa contrariar a desigualdade. E para contrariar essa desigualdade acrescento uma preocupação que este projeto nos trouxe. Se estamos a esquecer quem fica em casa, se em algumas circunstâncias, em alguns contextos de trabalho, as chefias percebem que quem está em casa acaba por ser esquecido ou acaba por não ser convidado para uma progressão na carreira, por não participar num desafio ou num objetivo mais desafiante e interessante da empresa, e se as mulheres acabam por escolher o teletrabalho muitas vezes por motivo de conciliação familiar, preocupa-nos a longo prazo o que pode acontecer às mulheres em teletrabalho e às suas carreiras, se podem ficar esquecidas pela desigualdade estrutural de género. E o teletrabalho pode promover esse afastamento e esquecimento. É uma conclusão que precisa de ser respondida com futura investigação.