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Abertura do ano judicial em Angola
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João Lourenço (ao centro) na abertura do ano judicial em 2022

Tribunal Supremo de Angola

João Lourenço (ao centro) na abertura do ano judicial em 2022

Tribunal Supremo de Angola

Crise na justiça angolana. Tribunal Supremo e Tribunal de Contas e PGR envoltos em polémicas. Luta contra a corrupção fragilizada

Dois tribunais superiores sob investigação judicial e parlamentar e um PGR demissionário abrem crise na justiça angolana. Luta contra a corrupção acabou, diz Rafael Marques. E a culpa é do Presidente.

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Às portas da abertura do novo ano judicial em Angola — no dia 1 de março — a liderança de três das mais altas instâncias da justiça angolanas estão fortemente colocadas em causa. Ou por suspeitas de tráfico de sentenças e extorsão no Tribunal Supremo de Justiça, com inquérito judicial a decorrer, ou por suspeitas de desvio de dinheiro e mau uso de fundos públicos no Tribunal de Contas, com investigação da Assembleia Nacional em curso.

Já o rosto judiciário da luta contra a corrupção, o Procurador-Geral da República (PGR), tem um problema de índole diferente. O general Helder Pitta Gróz — o homem que os portugueses se habituaram a ver explicar os processos contra Isabel dos Santos (a filha mais velha do anterior Presidente angolano) ou o atraso na acusação de Manuel Vicente (o ex-vice-presidente de José Eduardo dos Santos) — está num limbo: dirige desde dezembro a PGR sem saber se a sua demissão foi aceite ou não pelo Presidente João Lourenço.

O que se está a passar é o descrédito total, a derrota total da luta contra a corrupção pelo Presidente João Lourenço". Os "próximos quatro anos vão ser uma tortura para os angolanos
Rafael Marques de Morais

Para Rafael Marques de Morais o que se está a passar “é o descrédito total, a derrota total da luta contra a corrupção pelo Presidente João Lourenço”. Os “próximos quatro anos vão ser uma tortura para os angolanos”, diz ao Observador o jornalista-ativista que se tornou conhecido pela luta anti-corrupção e fundou a organização não governamental Ufolo – Centro de Estudos para a Boa Governação.

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Menos drástico, o coordenador do Observatório Político e Social de Angola também olha com “muita preocupação para o que se está a passar nas mais altas esferas do poder judicial”. Estas três instituições “que, neste momento estão em crise — debaixo de fortes denúncias e, no caso do PGR, numa indefinição incompreensível — têm um papel incontornável no combate à corrupção. Tudo isto é “uma nódoa sobre o manto sagrado do desejo que todos temos de lutar contra a corrupção”, sublinha Sérgio Calundungo ao Observador.

Já o líder do maior partido da oposição, a UNITA, avisa que “o que se está a passar só veio agravar a falta de confiança generalizada dos cidadãos no edifício da justiça que não está a cumprir o seu papel”. Adalberto Costa Júnior, que também critica a ação do Tribunal Constitucional, considera que “Angola está sem justiça e um país sem justiça está em perigo”. Por isso, apela “às instituições e seus titulares que cumpram a sua missão”.

Mas afinal, o que é que se está a passar? “Oficialmente, nada. Oficiosamente, muita coisa”, explica ao Observador uma fonte de um dos tribunais superiores de Angola. “E isso deixa o campo aberto para todas as especulações, uma arma usada por muitos protagonistas políticos angolanos”, acrescenta Luís Jimbo, diretor executivo do Instituto Angolano de Sistemas Eleitorais e Democracia (IASED).

É que, “não há comunicados das instituições, mas há comunicados de bastidores”, salienta Sérgio Calundungo. O que interessa “a muitos agentes políticos”, continua Luís Jimbo. “O MPLA e o governo criam informação e desinformação para acreditar e desacreditar pessoas”, afirma. E isso “pode ter acontecido em todo o processo da PGR”.

O procurador-geral da República de Angola, Pitta Groz (C), fala aos jornalistas durante o seminário sobre o lema "Corrupção - Um combate de todos para todos", no âmbito da comemoração do Dia Internacional contra a corrupção, organizado pela Procuradoria-Geral da República de Angola e o Minint, no Palácio da Justiça, em Luanda, Angola, 10 de dezembro de 2018. AMPE ROGÉRIO/LUSA

Helder Pitta Gróz, o PGR ainda em funções, apesar de demissionário há dois meses

AMPE ROGÉRIO/LUSA

Helder Pitta Gróz, o PGR que é — sem saber se é — e que vai deixar de ser

A 16 de dezembro de 2022, o general Helder Pitta Gróz terminou o seu mandato de cinco anos à frente da Procuradoria-Geral da República de Angola. Este é um facto indiscutível. Nesse dia o plenário do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público (CSMMP) propôs ao Presidente da República, que é quem tem a competência constitucional para o nomear, a sua recondução para novo mandato de cinco anos. A agência Lusa teve acesso às deliberações dessa reunião extraordinária. Aqui está outro facto.

A 24 de fevereiro de 2023, o mesmo general continua em funções: esteve esta semana numa missão em Moçambique, queixou-se de falta de meios há um mês na Assembleia Nacional. E este é o terceiro facto. Para além destes três dados, nada mais é oficial.

Mas a 24 de dezembro já havia notícias na imprensa angolana (no Angola24horas, por exemplo) de que o general tinha renunciado, o que foi confirmado ao Observador por uma fonte conhecedora do processo.

Porquê? Têm sido muitas as informações não confirmadas institucionalmente que circulam nos jornais e nas redes sociais e que são tema de debates em rádios angolanas. A maioria tem um denominador comum: João Lourenço e Helder Pitta Gróz desentenderam-se.

"Não faz bem às instituições nem à sua credibilidade, que não haja um comunicado oficial a dizer quem é o PGR de Angola"
Adalberto Costa Júnior

Ao Observador a mesma fonte próxima do caso relata que na reunião plenária do CSMMP, contrariamente ao que a lei estipula, o general apresentou apenas o seu nome (quando deveria haver mais dois) e que o terá feito por indicação expressa de João Lourenço (JLo, como é tratado pelos angolanos). Isto apesar de dois meses antes ter lembrado o Palácio da Cidade Alta de que o seu mandato iria terminar em dezembro, dando tempo para que se pensasse em soluções.

As normas dizem que é o CSMMP que, depois de um processo eletivo, deve propor três nomes ao Presidente para este fazer a sua escolha. Ou seja, é uma decisão repartida. Se de facto JLo deu ordens diretas (ou indiretas) sobre o assunto a Pitta Gróz, então não terá respeitado a separação dos poderes constitucionalmente instaurada.

Na mesma reunião, escreveu o MakaAngola de Rafael Marques, o general terá também afastado o seu vice-PGR, Luís Mota Liz, igualmente por indicação de João Lourenço, que preferia ver uma mulher nesse lugar. Nas deliberações consultadas pela agência Lusa, dos quatro nomes propostos para a eleição do vice, a maior votação foi obtida por Inocência Pinto e alguma imprensa angolana avançou mesmo que terá sido esta magistrada que lidera a Direção Nacional de Prevenção e Combate à Corrupção, a escolha de JLo para suceder ao general.

De acordo com uma outra fonte do Observador, o processo foi ainda mais complexo e Pitta Gróz ter-se-á deixado cair numa armadilha. Teria sido o ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente, Adão de Almeida, a dar a indicação a Helder Pitta Gróz para só apresentar o seu nome na reunião e para afastar Mota Liz.

Ainda segunda a mesma fonte, passados seis dias João Lourenço terá chamado o general ao Palácio da Cidade Alta e ter-lhe-á manifestado o seu desagrado com todo o processo. Não só porque teria violado as regras, como teria invocado o seu nome sem razão, abrindo a porta a que fosse acusado de não respeitar o princípio constitucional de separação de poderes. Passo seguinte, Pitta Gróz escreveu uma carta de renúncia, invocando a sua idade, no dia 23 de dezembro. Ora, para o que interessa, a sua idade não mudou: Pitta Groz tem 66 anos, o limite estabelecido para os procuradores é de 65, mas pode ser estendido até aos 70, o que já aconteceu.

Desde então, o general espera por uma resposta da Presidência — que tem estado em silêncio — enquanto se mantém em funções, mas obviamente “fragilizado na sua autoridade” refere Luís Jimbo.

É precisamente a ausência de uma posição do Presidente que tem levantado muitas críticas. Apesar de Adalberto Costa Júnior acreditar que “tudo foi deliberado” por parte da Presidência, que “o general foi demitido e que já está escolhida uma senhora para o lugar”, frisa que “não faz bem às instituições nem à sua credibilidade, que não haja um comunicado oficial a dizer quem é o PGR”.

Contactada a Procuradoria, esta limitou-se a responder ao Observador: “De acordo com lei do CSMMP e da PGR, o PGR só cessa funções depois da tomada de posse de novo PGR. Enquanto tal não acontece, trabalha normalmente”.

Embora o general esteja em funções até ser substituído, o líder da UNITA diz que a PGR está parada. E dá um exemplo: “Há semana e meia foram assassinados oito jovens, alegadamente por agentes do SIC [Serviço de Investigação Criminal], todos os dias os pais falam disto, como é que a PGR não abriu um inquérito? Não fez nada? É com mutismo e inação que protegem quem devem proteger, os cidadãos?”

Rafael Marques também considera que a “PGR está paralisada, praticamente não trabalha, está sem direção.” Mas tem tem outras perguntas: “Está em funções a fazer o quê? Depois de dizer que tinha sido o Presidente a dizer-lhe para se recandidatar e afastar os outros, João Lourenço está à espera de quê para tomar uma atitude? Fica a arrastar os pés porquê?”

Neste caso, o fundador da Ufolo atribui a “responsabilidade exclusiva ao Presidente João Lourenço que não exige que seja convocada nova reunião plenária do CSMMP e lhe sejam apresentados três nomes para ele escolher, como determina a lei. Tem o poder de o fazer e o não faz”. Porquê? “Vá-se lá saber o que se passa na cabeça do Presidente”, responde.

Tudo tem a ver “com timings políticos”, diz um juiz de um tribunal superior ao Observador sob anonimato. “Tudo aconteceu durante as férias judiciais, o melhor é abrir o ano judicial e depois passar a pasta”. Uma outra fonte adianta ao Observador que o despacho de aceitação da renúncia já está assinado mas ainda não datado.

Em 2017 João Lourenço demonstrou uma certa coragem agarrando num dos maiores desafios, dizendo que ia acabar com o nepotismo, a corrupção e a bajulação. Porém, aquilo a que se está assistir agora mostra que não precisamos de homens fortes e corajosos mas de instituições fortes, para lutar contra a corrupção
Sergio Calundungo

Um compasso de espera que não faz sentido para Sérgio Calundungo: “A polémica à volta da demissão do PGR e ausência de uma comunicação oficial levam a uma desestabilização. O que se deve exigir pela importância do cargo, por respeito aos cidadãos,  e em nome da transparência é a posição oficial do PGR e da Presidência, já que é o Presidente que o nomeia.”

Luís Jimbo vai na mesma direção: “Pelo tempo que já passou é óbvio que JLo não vai reconduzir o general Pitta Gróz. O que se está a fazer é a permitir que os rumores se multipliquem, queimando a imagem do PGR e fazendo pressão sobre ele para que convoque novo ato eletivo no CSMMP. Há aqui um braço de ferro que não faz sentido. O Presidente tem que dizer se aceita a sua demissão e nomear outra pessoa ou não aceita e o reconduzir”. O dirigente do Instituto Angolano de Sistemas Eleitorais e Democracia recorda que “estamos a falar do MPLA, um partido super organizado, que à priori já decidiu quem se vai eleger”.

Para o coordenador do Observatório Político e Social de Angola “seria desejável” que tudo estivesse resolvido rapidamente: “Não podemos abrir o ano judicial com todos estes casos por esclarecer, o do PGR, do Tribunal Supremo, do Tribunal de Contas. É do interesse público que se esclareça, pois tudo isto belisca a seriedade e a credibilidade das instituições aos olhos dos cidadãos”. E não resiste a invocar o velho princípio da mulher de César, “não basta que as instituições sejam sérias, é preciso que pareçam ser sérias”.

Sérgio Calundungo recorda que quando João Lourenço subiu ao poder, em 2017, “demonstrou uma certa coragem agarrando num dos maiores desafios, dizendo que ia acabar com o nepotismo, a corrupção e a bajulação, mesmo que isso tocasse os mais próximos e mesmo os do próprio partido”. Porém, “aquilo a que se está assistir agora mostra que não precisamos de homens fortes e corajosos mas de instituições fortes, para lutar contra a corrupção”, destaca o responsável da OPSA.

É um escândalo de corrupção que está a afetar o Tribunal Supremo, o mais alto órgão judicial do país.

Joel Leonardo, o presidente do Tribunal Supremo de Justiça sob suspeição

O Presidente da República de Angola, João Lourenço (3-E), acompanhado pelo presidente do Tribunal Supremo da República de Angola, Joel Leonardo (3-D), durante a cerimónia solene de abertura do ano judicial em Angola, em Luanda, Angola, 30 de março de 2021. AMPE ROGÉRIO/LUSA

João Lourenço e Joel Leonardo na abertura do ano judicial em 2021. A organização da cerimónia está a cargo do Tribunal Supremo

AMPE ROGÉRIO/LUSA

Há muito que a atuação do presidente do Tribunal Supremo (TS) de Angola tem sido alvo de críticas na sociedade civil, a começar pelo MakaAngola (que escrutina Joel Leonardo pelo menos desde 2020) e a acabar, mais recentemente, por portais de notícias e outros cidadãos.

No entanto, o nível de polémica subiu tanto de tom este ano com mais denúncias de corrupção, peculato e nepotismo no TS que a UNITA pediu já este mês a demissão do juiz presidente e a Associação dos Juízes de Angola exigiu uma tomada de posição do Conselho Superior da Magistratura Judicial.

UNITA exige demissão do presidente do Tribunal Supremo por suposta má gestão e corrupção

Acabaria por ser um ex-ministro do antigo Presidente de Angola a levar à abertura de uma investigação da PGR sobre uma teia de tráfico de sentenças e extorsão no TS, que obrigou, na semana passada, a buscas e apreensões em escritórios e casas de alegados “testas de ferro” de Joel Leonardo, revelou a imprensa angolana.

Augusto Tomás (o único ministro de José Eduardo dos Santos a ser preso por corrupção e que saiu em liberdade condicional, por ordem do TS, no ano passado, porque já tinha cumprido metade da pena) terá contado à Direção Nacional de Investigação e Ação Penal (DNIAP) que tinha sido vítima de tentativa de extorsão por parte de um grupo de homens que disse ir a mando de Joel Leonardo.

O ex-ministro não estava em casa e foi a sua mulher e outros familiares a falar e fotografar o carro e um elemento do grupo, que, de acordo com jornais digitais angolanos, que publicaram as imagens, seria o sobrinho de Joel Leonardo. Segundo um memorando dos autos da DNIAP, referido pelo jornal digital Club-K, que cita o número do processo, a rede de “compra e venda de sentenças” tentou extorquir cerca de 5,4 milhões de euros ao antigo ministro sob o argumento de que poderia voltar à cadeia.

Situações como esta não surpreendem Rafael Marques. “Quando avancei em Washington [em dezembro no Fórum da Sociedade Civil, na cimeira EUA-África] que o epicentro da corrupção se tinha fixado no sistema judiciário, o Presidente Lourenço pediu provas. Elas têm sido dadas, são muitas a nível dos magistrados do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas”, diz o ativista de direitos humanos ao Observador.

“Há várias denúncias de casos de extorsão, venda de sentenças, e cada vez vai haver mais, eu mesmo denunciei que o tribunal provincial de Luanda prometeu a réus e queixosos que mediante certo pagamento teriam sentenças a seu favor e nada aconteceu por parte da PGR”, revela ao Observador.

Em Washington, Rafael Marques já tinha dito que “apesar das crescentes evidências de corrupção, a decisão sobre se os casos serão arquivados, paralisados ou levados a audiência nos tribunais continua a ser uma decisão política. Os poderosos e bem relacionados continuam a desfrutar da impunidade. Não há mudança palpável, portanto, não há justiça”, frisou.

Nessa sua intervenção, o ativista disse que o governo de João Lourenço financia casas e apartamentos multimilionários como gratificação para os juízes dos tribunais superiores e não esqueceu o decreto presidencial 69/21, conhecido como “o decreto dos 10%”. É uma norma  que “autoriza a Procuradoria-Geral da República e os tribunais a dividirem entre si 10% de todos os bens recuperados [na luta contra a corrupção] – uma ‘recompensa’ pela penhora judicial que equivale a um conflito de interesses” e que “desafia a obrigação constitucional de imparcialidade judicial”.

"O Tribunal Supremo de Justiça tinha no passado uma aura de respeitabilidade, pelo menos não se envolvia em escândalos tão baixos e reles, mas nem essa capa João Lourenço foi capaz de manter, com as más escolhas que fez, e que mantém, para lugares importantes"
Rafael Marques de Morais

Mas existe ainda outra vertente que é apontada ao TS, a do nepotismo. “Foram preenchidos lugares no Tribunal Supremo de Justiça com familiares de juízes o que fez com que baixasse a qualidade, que já era má, dos serviços prestados”, acusa Rafael Marques.

Para além de ter pedido a demissão de Joel Leonardo, a UNITA chamou à Assembleia Nacional o presidente do TS para o ouvir, diz ao Observador Adalberto Costa Júnior. O líder do partido do Galo Negro não se admira do coro de críticas que se tem levantado contra o juiz: “É muito grave quando se coloca no topo da estrutura judicial uma personalidade que mentiu à Assembleia Nacional como Joel Leonardo fez no caso da tomada de posse da chefia da Comissão Nacional de Eleições: disse que não havia nenhum processo a decorrer quando isso não era verdade”.

O Tribunal Supremo de Justiça “tinha no passado uma aura de respeitabilidade, pelo menos não se envolvia em escândalos tão baixos e reles, mas nem essa capa João Lourenço foi capaz de manter, com as más escolhas que fez e que mantém nos lugares”, critica Rafael Marques. “Está tudo à toa, a disfuncionalidade é total nestas instituições”. O fundador da Ufolo sabe do que fala em relação a um destes tribunais: foi ele quem pediu à Assembleia Nacional e à PGR que averiguasse a presidência do Tribunal de Contas.

Exalgina Gâmboa, a presidente do Tribunal de Contas que terá gastado 4 milhões em mobílias

Há uma frase que tem sido repetida pelos media angolanos quando se fala da juíza conselheira: “Tribunal de Contas é mealheiro de Exalgina”. É o título de uma investigação de Rafael Marques, publicada em junho de 2022, sobre a presidente deste órgão judicial e em que revela alegada má gestão dos fundos públicos.

O MakaAngola adiantou então, mostrando documentos, como a juíza terá dispendido cerca de 4 milhões de dólares (3,7 milhões de euros) do Cofre Privativo do Tribunal de Contas em mobílias para a sua residência particular. Isto, depois de o Estado já lhe ter oferecido uma casa que custou ao Ministério das Finanças 3,5 milhões de dólares. Mas Rafael Marques denuncia também como gastou 437 mil dólares, do mesmo cofre, para comprar uma casa para a vice-presidente em Talatona (Luanda).

A juíza conselheira e presidente do Tribunal de Contas de Angola, Exalgina Gamboa (2-E), e o presidente da Assembleia Nacional de Angola, Fernando da Piedade Dias dos Santos (D), durante a entrega por parte do Tribunal de Conta ao Parlamento Angolano do parecer da conta Geral de Estado de 2019, em Luanda, Angola, 21 de maio de 2019. AMPE ROGÉRIO / LUSA

Exalgina Gâmboa, que já foi deputada do MPLA, aqui com o presidente da Assembleia Nacional em 2019, órgão que agora a está a investigar

AMPE ROGÉRIO/LUSA

Na altura, o TdC limitou-se a informar que as despesas constavam dos relatórios anuais aprovados pelo plenário e eram realizadas com base nos direitos e regalias dos magistrados previstos na lei.

Rafael Marques não se ficou por aí e apresentou uma queixa-crime, na Procuradoria-Geral da República, contra Exalgina Gambôa. Todavia, até agora, o Ministério Público angolano nada disse. Melhor sorte tiveram as suas diligências junto da Assembleia Nacional que abriu uma investigação parlamentar.

Suspeitas de desvios no Tribunal de Contas angolano “é matéria específica da PGR”

Já este ano, o mesmo jornalista avançou com novo trabalho que mostra como o TdC se “transformou na agência de viagens gratuita para o constante vaivém, entre Luanda e Lisboa, dos três filhos adultos da presidente”.

As dores de cabeça de Exalgina não vieram só do MakaAngola. A economista foi também protagonista de notícias do Africa Monitor e do Correio Angolense, que revelavam o congelamento de contas de um filho, em Portugal, alegadamente com dinheiro do Tribunal de Contas.

Exalgina Gâmboa, comadre de João Lourenço, já terá sido ouvida na comissão de Disciplina, Ética e Auditoria do MPLA e, segundo disse fonte do partido ao Observador, foi aconselhada a apresentar a demissão, mas resistiu inicialmente à ideia. No entanto, duas fontes angolanas, uma delas de um tribunal superior, adiantaram ao Observador que Exalgina Gâmboa apresentou mesmo na quarta-feira uma carta onde colocou o seu lugar à disposição, no Palácio da Cidade Alta.

João Lourenço “perdeu a guerra da corrupção” e “destruiu a hegemonia do MPLA”

Estes três casos têm constituído “um embaraço para o Presidente ao manter as suas figuras de topo na justiça, por si nomeadas, à frente destes órgãos judiciais, tão importantes na luta contra a corrupção”, diz Rafael Marques. Se a PGR investiga a corrupção, o TdC fiscaliza as contas e o TS julga, em última instância, os casos, concretiza Luís Jimbo, que está espantado com “as fugas de informação céleres” do processo do Supremo para as redes sociais e jornais.

Se esta rede de facto existe, lança muitas dúvidas sobre os casos investigados, que seguiram para tribunal, e os que ficaram arquivados. “É impossível dissociar este tribunal dos primeiros grandes casos de corrupção, até aqui julgados: o dos 500 milhões do Fundo Soberano, que levou à prisão o filho de José Eduardo dos Santos, ou dos 900 milhões de Carlos São Vicente, o genro do primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto”, comenta Luís Jimbo.

Ou do “despronunciamento de Higino Carneiro”, ex-ministro e um dos homens chave de José Eduardo dos Santos  — acusado de corrupção, nepotismo, tráfico de influência, associação criminosa e branqueamento de capitais — no ano passado, pelo Tribunal Supremo. Ou seja, o seu caso foi arquivado depois de a Câmara Criminal ter decidido que devia seguir para julgamento, sendo que o “despacho de despronunciamento” foi assinado pelo mesmo juiz que o tinha pronunciado e que terá alegado ao justificar a sua decisão, nesta sua segunda decisão, ordens diretas de Joel Leonardo, alegadamente sob pressões políticas, conta o MakaAngola.

“O que está em causa”, asssegura Luís Jimbo, “é a luta contra a corrupção. A forma como terminar este processo do TS, do TdC e até da PGR talvez nos mostre se estas entidades abusaram do poder, de uma forma ou outra, nos casos de corrupção”. Seja como for, “é preciso moralizar os juízes que têm como dever prevenir e combater a fraude”.

Na verdade, diz Rafael Marques, João Lourenço “tem de admitir que, perante o que prometeu e o poder que delegou na justiça, perdeu a luta da corrupção, esta acabou”. Agora, tem de esclarecer “o que vai fazer já que não dá para usar o mesmo discurso que fez no passado porque à sua volta está a corrupção, consequências das suas decisões tomadas e não tomadas. Tem de dizer qual é o caminho, porque ele é que é o líder”, desafiou.

Presidential candidate of People's Movement for the Liberation of Angola - Labour Party (MPLA) Joao Lourenco attends a press conference to react to the final election results presented by the National Election Commission (CNE), at MPLA headquarters in Luanda, Angola, 29 August 2022. PAULO NOVAIS/LUSA

O Presidente angolano João Lourenço, acusado de não controlar a corrupção

PAULO NOVAIS/LUSA

A questão já nem está em anunciar novos nomes para estes lugares antes ou depois da abertura do ano judicial. “Ou João Lourenço faz reformas muito grandes de fiscalização dentro da estrutura do poder e ele mesmo dá o exemplo de transparência, ou de nada serve mudar titulares de órgãos judiciários”, avisa Rafael Marques.

O ativista, que no primeiro mandato de João Lourenço pareceu depositar grande esperança na luta contra a corrupção do novo Presidente angolano, tem agora um tom desiludido: “O Presidente não fez as reformas estruturais necessárias e o que se está a passar são as consequências de não as ter feito, escolheu sempre mal as pessoas para lugares chave, sem a sabedoria e a probidade necessárias aos cargos; pelo contrário, escolheu nomes que fazem o contrário”.

E vai mais longe: “Resta saber se é por falta de bom aconselhamento, se é desconhecimento ou se é de propósito e tem uma qualquer outra agenda desconhecida. A verdade é que se tem rodeado de nomes extraordinários em incompetência e, pior, corrupção”.

Estes foram 10 anos perdidos para a maioria dos angolanos. É altura de pensarem como cidadãos e de se organizarem como cidadãos no pós-Lourenço, porque deste mato já não sai cachorro
Rafael Marques de Morais

O problema, continua Rafael Marques, “é que o Presidente tem poderes imperiais, que a Constituição lhe confere, mas quando se trata de organizar o Estado manda a bola para o meio campo onde não está ninguém. Mas depois usa esses poderes, como no caso da contratação simplificada que permite aprovar contratos que movem biliões sem concursos públicos…”

O ativista defende que a “corrupção da era de José Eduardo dos Santos se transformou na corrupção da era de João Lourenço”.

No fundo, “estes são 10 anos perdidos para a maioria dos angolanos”, lamenta o ativista (contando já com os 4 anos de mandato que ainda falta cumprir). “Nestes 10 anos o maior legado que João Lourenço deixou, e nisso temos de lhe dar algum mérito, é a destruição da hegemonia do MPLA”. Nem toda a oposição partidária, nem toda a sociedade civil juntos “conseguiram destruir a força do partido que dominou estes anos todos Angola. Mas JLo conseguiu”. E Rafael Marques vê aí uma oportunidade: “JLo abriu o caminho para uma perspetiva de futuro e de vida para além do MPLA e das UNITAS e partidos políticos; isto mostra aos angolanos que é altura de pensarem como cidadãos, de se organizarem como cidadãos no pós-Lourenço, porque deste mato já não sai cachorro.”

Como é que João Lourenço destruiu o poder do MPLA? “Tentou recriar um poder à sua imagem dentro do MPLA e para o fazer teve de destruir as figuras cimeiras do partido que estavam à volta de José Eduardo dos Santos e que tinham os seus esquemas. As empresas e focos de poder que ele criou não têm a capacidade de mobilização, nem através da imposição do medo, ou de influência, que as outras tinham“.

Ou seja, no tempo “de JES havia a democratização da corrupção, só os muito incompetentes não usufruíam dos benefícios indevidos que ele fazia baixar; com JLo a corrupção fica num circuito mais fechado”, explica Rafael Marques. Por outras palavras: “Antes era institucionalizada, quem não conseguia ser corrupto era porque não tinha competência. JLO acabou com isso, ele é que escolhe quem vai beneficiar e as pessoas que ele escolheu não têm capacidade de influência na sociedade nem mesmo dentro do MPLA”.

O Observador fez perguntas à Presidência da República — é atributo constitucional de João Lourenço nomear o PGR e os presidentes dos tribunais superiores — ao Tribunal Supremo e ao Tribunal de Contas, bem como ao Ministério da Justiça, e ao MPLA, sem obter, até ao momento, qualquer resposta.

(Notícia atualizada às 7h40 do dia 25 de fevereiro com a resposta do PGR, enviada já depois de publicado este texto e com a correção da informação de que Exalgina se teria demitido — na verdade, a juíza colocou apenas o seu lugar de presidente do TdC à disposição)

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