Uma cantora de ópera, grávida, abandonada há 300 anos, que diz “memo” ou “tipo”. “Niet Hebben (Carta Rejeitada)” surge depois de Susana Menezes dar carta branca a Crista Alfaiate para montar um espectáculo no LU.CA – Teatro Luís de Camões (em cena a 9, 10, 13, 14, 15, 16 e 17 de março). A atriz, a meias com Diogo Bento, escreveu esta peça – em formato carta, até as vírgulas se dizem – sobre a correspondência, sobre o que nos acontece enquanto a carta não chega, a espera. Num tempo em que as cartas são quase sempre de cobrança, multas, contas, “Niet Hebben (Carta Rejeitada” joga numa esperança de recuperação, uma memória das colónias de férias, onde, no último dia, o caderninho passava por todos para se escrever a morada, algo de que Crista Alfaiate se lembra bem.
Nascida em 1981 em Lisboa, a atriz cresceu na Portela de Sacavém, com uma angústia de ter muito peso e isso ser um fator de gozo na escola. Quis ser bailarina, cantora, mas acabou atriz, contra a vontade da família. Aliás: fez as provas para o Conservatório às escondidas. Trabalhou com inúmeras companhias em Portugal e lá fora, fez formação ao pontapé, foi Xerazade em “As Mil e Uma Noites”, de Miguel Gomes. E odiou quando o avô a levou à tourada num dia de carnaval, estava Crista vestida de Pantera Cor-de-Rosa. Felizmente. Crista Alfaiate é uma carta branca, ou pelo menos, apenas meio escrita.
É uma pessoa de cartas, isto é, ainda as escreve? Ou recebe algumas que, por vezes, nem são muito agradáveis?
Contas, Autoridade Tributária. Escrevia cartas quando era adolescente, isso sim, ultimamente não tenho escrito, é verdade, e penso várias vezes que o vou fazer, mas nunca chega a acontecer.
A quem escrevia cartas em adolescente?
Amigos, ou da escola ou das férias do Verão, que conheci e depois iam para fora e nunca mais me cruzava com aquelas pessoas, lembro-me que no último dia em que estávamos juntos toda a gente trocava moradas, aquela coisa das colónias das férias. E a cena de receber uma carta é incrível, é saber onde é que aquela pessoa está agora, o que é que fez, o que é que tem para me dizer, mais a imaginação acerca daquilo, esperar que ela chegue, o que é que ficou no meio disto, entre o tempo em que se escreve até à receção, o que é que se passa com quem escreve e com a outra pessoa e como é que ela vai recebê-la. O Kafka fala muito disto: os fantasmas que se criam no tempo da espera. Nas “Cartas a Milena” ele pede-lhe: “por favor, não me escrevas mais de três cartas por semana, não consigo viver a pensar o que é que te vou escrever ou dizer”.
Hoje a carta é um lugar mais formal.
Sim, e mesmo essas coisas de que falávamos, as contas, por exemplo, tudo isso pode ser feito por email, online.
Sim, é facultativo receber em carta.
Sim… há uma espécie de carta que ainda existe e da qual não se fala muito, que de facto é escrita, que é a carta de suicídio.
Que também aborda no espectáculo.
Pois, passo por ela a correr, porque dada a faixa etária, se calhar não era indicado. No início tínhamos bem mais sobre o assunto, mas tínhamos tanta coisa que fomos cortando, mas tínhamos coisas da carta que a Marilyn Monroe deixou, que tinha coisas bastante trágicas e muito engraçadas.
Como e quando é que aparece esta ideia?
Sempre andei um bocadinho à volta das cartas, as cartas da literatura, outras cartas, estas coisas interessam-me e tem um bocadinho a ver com isto do tempo, da espera, quando se escreve como é que se resume? Há uma sensação do “eu só posso dizer isto”. A correspondência sempre me despertou curiosidade. Isto parte de um artigo do The Guardian com que me cruzei mais ou menos há dois anos, que diz que é encontrado um baú antigo num extinto posto de correio, em Inglaterra, no qual estão muitas cartas das pessoas letradas da época, ou mercadores, ou artistas, jornalistas. Entre essas há uma carta de uma cantora de ópera, que escreve a um mercador a dizer que está noutro país, grávida, que precisa de ajuda, que precisa de voltar, que não fala a língua e pede-lhe ajuda. E a carta é encontrada passados trezentos anos, fiquei encantada com esta história. Na altura até estava a ler Cartas Portuguesas da Segunda Guerra Mundial, da Maria José de Oliveira, e comecei logo a fazer ligações. Na mesma altura, a Susana Menezes faz-me esta proposta de apresentar um projeto aqui, e que eu teria a liberdade de…
Carta branca.
Sim, carta branca, exato. Já estava a trabalhar nesta coisa das cartas, colecionava, pensei na altura que podia ser um espetáculo para adultos, mas quando surgiu esta oportunidade, pensei que podia perfeitamente ser para gente mais nova. Aventurámo-nos por aí, juntamente com o Diogo Bento, que era meu colega de turma do Conservatório, e disse “sim, sim, ajudo-te a escrever o texto, bora”. Sabia que o Diogo tinha esse interesse por cartas. E começámos a escrever. Pegámos no mote desta cantora de ópera, já sabendo que íamos tocar em temas que queríamos, o feminismo, o pós-colonialismo, a guerra, que acabou por não ficar tão presente. Sabíamos que a cantora era uma figura pivot, a isto junta-se o facto de o LU.CA, antigamente, ser a ópera privada do rei.
Como é que se escreve a quatro mãos? Não deve ser muito fácil.
De facto não é. Tivemos um mês ou mais, encontrávamo-nos uma vez por semana e íamos trocando leituras, ou de coisas que gostávamos, várias cartas que íamos trocando, versões das mesmas cartas, líamos e selecionávamos aquilo que gostávamos e que queríamos aproveitar. Fechada a parta da leitura, tínhamos uma lista enorme de cartas e coisas que gostávamos, e fomos ligando os pontos, OK, isto pode-se ligar com isto, e depois, concretamente, foi sentarmo-nos lado a lado, decidimos que o texto e o espectáculo teria a estrutura de uma carta.
Sentados lado a lado, cada um com o seu computador.
Cada um com o seu computador e com a estrutura da carta tínhamos coisas onde pegar, a data, o local. O espaço começa com a identificação do local na carta, que diz Casa de Ópera da Real Quinta de Belém, passamos pelos nomes todos que este teatro já teve, até hoje…
Vai alterando o dia.
Sim, depois uma nota de apresentação, corpo de texto, uma nota de intenções, e aí vai ele, despedidas, nós já tínhamos os materiais e depois houve um dia em que arrancámos… bom, claro que não foi só um dia. Tivemos que insistir, claro, havia dias que só líamos em loop, cortávamos umas coisas, ele sugeria uma frase e depois eu outra, mas eu gosto disto, quero mesmo manter isto, por aí… Não vou dizer que foi fácil, mas foi bastante fluído.
Qual é a sua relação com a ópera?
Gosto de ópera, já fiz muita figuração na Ópera de São Carlos, foi uma experiência incrível para mim, assim que saí do Conservatório.
Isso em que ano?
2002. Fiz três ou quatro óperas na figuração, mas aquilo era uma coisa… nas óperas que fiz, com o Graham Vick, que é assim uma estrela da ópera contemporânea, havia o coreógrafo, a de cena, eram ensaios a sério, descia da plateia, de repente estava no meio da orquestra, mudava trinta vezes de figurino.
É um universo de que gosta.
É um universo inacreditável, além da música ser incrível, pungente, arrebatadora, e dos próprios cantores e das questões físicas e contingências que têm, para mim é incrível.
Não só com a ópera, a Crista tem uma relação com a música, e neste espectáculo até tem uma canção.
Sim, é uma versão das “Cartas de Amor”, do Tony de Matos.
Já participou em alguns projetos musicais, como o Oba Loba, por exemplo, do Norberto Lobo e do João Lobo. O que é que lhe interessa na música?
Ui, que pergunta. Houve desde sempre, desde pequena que existe essa relação, o meu pai sempre tocou e cantou, o meu irmão também, sempre foi uma coisa natural e com o Norberto também, porque conheci o Norberto com nove anos, e o João pouco tempo depois. Mas sim, sempre esteve presente no dia-a-dia, em casa, no convívio com os amigos. Fui tendo alguma formação. No Conservatório é preciso ter alguma base musical.
E extra isso?
Estive na Academia de Amadores de Música, mas o que era complicado é que não me encaixava em nenhum estilo musical, não era uma cantora lírica e não era uma cantora de jazz, ou seja, fui participando nos projetos que me diziam alguma coisa.
Não se coloca fazer um disco?
Não se coloca fazer um disco, exatamente. Fiz coros para Cacique’97, mas sim, estou aberta a projetos, adoro cantar, é libertador e orgânico, não sei muito bem, acho que a minha ligação com a música é a de todos nós, ser uma coisa quase… não sei explicar isto, que nos ultrapassa um bocadinho, ouço, começo a mexer-me e a cantar. Não é uma relação assim hiper conceptual, onde eu puder cantar vou cantar, se me sinto bem. E tive uma experiência no jazz.
Para perceber o que não queria.
Por um lado isso, e para treino auditivo, e para a improvisação.
Que experiência foi essa?
Foram umas aulas com uma cantora de jazz e um pianista, só que aí era mesmo virado para o jazz, tive que fazer um concertozinho que jurei para nunca mais.
Correu muito mal?
Eu é que estava muito nervosa e aquele não era mesmo o meu estilo, o que não quer dizer que não goste de algumas coisa de jazz inacreditáveis. E, pronto, a música abre universos.
Além das cartas, há muitos outros assuntos que estão neste espectáculo. O que é que quis dizer a estes jovens?
Há duas coisas que estão muito presentes. Isto de estar sozinha tem muito que ver com a figura da mulher e sim, colocá-la num ponto de solidão e de reflexão era importante, para refletir um bocadinho sobre esta história, uma mulher grávida que é abandonada, e refletir sobre a condição da mulher e desta herança, que ainda hoje, em 2019, a esta hora, é pesada em Portugal e em muitos sítios. Acho que é muito importante nesta idade ir passando estes dados, isto não é normal, isto não se faz, vocês também não gostavam, isso é muito importante. Pomos ali às tantas, no meio das bandeiras de Portugal, uma bandeira LGBT, assumir a normalidade da liberdade, basicamente, a liberdade, cada um poder ser aquilo que quer, quando quer, vestir o que quiser, ter as opções sexuais ou outras, que quiser. E isso é legítimo e não venha cá ninguém dizer que não é. Até mais cedo do que nesta idade, mas nesta, em particular, começa-se a tomar decisões. Há uma normatividade que tem peso nas decisões dos adolescentes.
Claro.
Mais a questão do colonialismo, em relação à Carta do Achamento do Brasil, onde fomos pegar, que acho que é muito importante, estava a ter uma conversa com eles aqui a seguir ao ensaio e a perguntar-lhes sobre os Descobrimentos, “vocês já deram na escola não é?”, e eles disseram que não era nada assim como foi proposto no espectáculo, diziam que era tudo bem, chegámos ao Brasil, somos incríveis, conquistámos e depois fomos conquistar outra coisa. É perpetuar uma ideia, sobretudo na escola e em História, acho gravíssimo, não se abrir um bocadinho do leque de como as coisas se passaram.
O tal espaço para a reflexão.
Exato. Ou dar mais informações sobre aquilo que aconteceu realmente, não dizer somos incríveis, chegámos lá, somos os maiores. Isto toca directamente na usurpação da liberdade alheia, encontrámos aqui um ponto de conexão em que eu cometi este crime, mas e aqueles? É um crime muito pior.
E disto não se fala. Às tantas utiliza uma linguagem que se aproxima dos jovens, terminologias em inglês, “not”, “life”, ou até coisas como “memo”.
Eu continuo a usar essa linguagem.
Claro, quem não?
Sim e nós temos a noção que o texto é um bocadinho palavroso, está uma pessoa sozinha em cena, não é propriamente… Porque não usar uma linguagem que se calhar os vai fazer ouvir mais, estar mais atentos? Depois também há isto de estar vestida mais ou menos à época, de poder falar com “memo” e “life” e colocar a cantora de ópera a dizer “life” e a dizer “não devo um tusto às finanças”, acho muita piada descontextualizar aquela figura.
Esta não é a sua primeira incursão em criações para o público infanto-juvenil. Em 2014, fez “Lá Fora”, com a Carla Galvão, um espectáculo para bebés. Deduzo que seja uma proposta diferente.
Eu e a Carla encontrámo-nos e tínhamos tempo antes do nosso próximo trabalho. Esse repertório era todo musical, músicas de uma comunidade do Uganda, e não tinha palavra, não tinha texto, a ambição não era escrever um texto, havia ali uma ligação, nós abríamos a boca e já estava a soar, fomos agarrando nesse material e o espectáculo foi todo cantado, feito de repetições, era feito à capela, bate aqui numa coisa e já faz o efeito, ou pim-pum-pá-pararárá… estou a voltar atrás no tempo… mas pronto, achámos que aquele material era um jogo indicado para bebés, que era só som, luz, cima, baixo. Era um jogo sensitivo. E aquilo correu muito bem, o espectáculo teve dois anos a andar de um lado para o outro e foi reposto em Lisboa várias vezes.
Mais tarde, no Maria Matos, faz um espectáculo, “Animais e Animenos”, a partir de poemas da Rita Taborda Duarte.
Mais uma convocação da Susana Menezes, na altura para o Maria Matos. Tinha um ciclo de mulheres escritoras e queria que eu fizesse uma leitura encenada desse texto da Rita, que é bem difícil, que é todo em verso. Mas eu não fiz uma leitura, fiz um espectáculo.
Mas a Susana não se importou muito, voltou a convidá-la para o LU.CA.
Exato, acho que não se importou. Mais uma vez estava sozinha, não gosto nada de estar sozinha.
Fica aqui dito: Crista Alfaiate não gosta nada de estar sozinha.
Fica dito, pronto, aconteceu, mas não gosto, pronto, tenho que me aguentar à bomboca.
Fez o “Lá Fora”, para bebés, o “Animais e Animenos”, para crianças a partir dos seis anos, este “Niet Hebben”, é mais para maiores de doze. Está a escalar a montanha.
Completamente.
Tem alguma preferência? Tudo menos adultos, não é?
Não, pelo contrário. As coisas foram surgindo de formas diferentes, mas estou com vontade de puxar a faixa etária cada vez mais para cima, exatamente porque há temas que se levantam e que se calhar começam a ser mais difíceis para mim trabalhar, mas é de facto uma zona onde a comunicação corre bem. Portanto, neste momento a tendência é fazer subir a faixa etária. Não tenho muita vontade de criar os meus próprios projetos, eles acontecem porque há um encontro ou uma proposta, tem-se proporcionado, mas não é a posição que mais me agrada, há muitas decisões e eu não gosto de decisões.
Prefere ser dirigida.
Prefiro, adoro ser dirigida. No entanto, atenção, têm sido projectos incríveis, tenho aprendido muito, mas agora quando passar esta não me meto noutra tão cedo.
Nasceu em Lisboa, em 1981.
Sim, São Jorge de Arroios.
Foi lá que cresceu?
Não, na Portela de Sacavém, sou portelense.
O que é que fez na infância? Como é que classifica esse tempo?
Foi um bom tempo, havia alguma angústia, alguma perturbação, porque era uma miúda fora do formato.
Como assim?
Era bem gordinha. Havia muita exclusão, senti isso.
Na escola?
Sim, na escola, alguma pressão por parte da família, mas sei lá, era uma criança, não sabia nada e tudo me apontava o dedo.
Uma criança não vai deixar de comer hidratos à noite, não é?
Claro, não sei gerir isso. Lembro-me de ir a nutricionistas sem fim, mas era uma infância muito feliz, até porque aprendi a dar a volta a isso, para me defender acho que comecei eu a ser o bully, com humor.
O chamado contra-ataque.
Exatamente. Tudo o resto é uma infância feliz, em torno da família, havia bairro, cada prédio tinha um patiozinho atrás, encontrávamo-nos lá.
O que é que faziam?
Andávamos de triciclo ou de bicicleta, ou jogar a bola, essas coisas.
Nasce na década de 80, do que é que se lembra da Lisboa de então?
Basicamente, lembro-me da Portela, da escola…
Tem pouca memória de uma ideia mais geral da cidade.
Sim, lembro-me de ir à tourada com o meu avô, no carnaval. A minha primeira máscara era de Pantera Cor-de-Rosa, adorava aquele foto, estava mesmo contente, e lembro-me que o meu avô me foi buscar, era o dia do carnaval, ia ser tudo incrível, e eu fui para a tourada. Aquilo era tudo hiper-violento e era só homens.
No Campo Pequeno?
Nem mais, disso tenho memória.
Um bocado traumática, então.
Sim, aquele dia não foi fixe, o meu avô ia-me sempre buscar à escola e era sempre muito tranquilo, mas a tourada, era só homens, tudo a berrar, histérico, e eu queria fazer o carnaval, brincar com pessoas da minha idade, não era bem ver touros a ser picados.
Deduzo que se posicione de uma forma crítica em relação às touradas.
Sim, claro.
Do que já falou da sua infância, não houve nenhuma indicação que ia ser atriz.
Não, havia até, por parte da família, uma vontade contrária a isso.
Quando começou a aparecer a ideia?
Primeiro queria ser bailarina, depois cantora, depois atriz.
Tudo coisas de palco.
Pois, sim, não havia cá bombeiros nem enfermeiros. Mais tarde comecei a ver os filmes do James Bond, o “Serenata à Chuva”, “Fame”, “é isto, eu quero fazer isto”. Ainda não lhe sabia dar um nome, mas era o que queria ser.
E a família, queria que a Crista fosse o quê?
Não eram muito específicos, só achavam que aquilo é que não. Ainda fui para uma faculdade de Educação, naquela de “não posso escolher teatro, não vai dar”. No ano seguinte fui fazer as provas para o Conservatório às escondidas e entrei.
A sua primeira experiência de palco é com o Grupo de Teatro Universitário de Letras?
Sim, o Ávila Costa foi um grande mestre, foi a sacralização do teatro. Era na Cantina da Cidade Universitária, uma coisa esconsa, com dois projetores, para mim foi inacreditável, andei quatro ou cinco anos sempre a comer comida de cantina, manhã, tarde e noite, manhã talvez não… Mas era Conservatório às nove da manhã, saía às sete da tarde, às sete e meia estava na Cantina e saía às três da manhã, foi isto durante um ano. Foi fascinante porque encontrei pessoas muito importantes, uma forma de fazer teatro muito diferente, mas com regras muito claras, o Ávila queria, em teatro, uma espécie de expressionismo alemão.
Que textos fez?
Lembro-me que fiz “O Passageiro do Expresso”, dos José Rodrigues Miguéis, e era bem fixe. O Ávila punha perturbação em tudo, o que é incrível porque é preciso levantar uma série de universos, ele próprio é um grande universo, foi uma grande escola para mim.
Depois disso faz muita formação, mesmo lá fora. Esteve em vários grupos em Nova Iorque.
Sim, tinha o Inov-Art, uma bolsa para ir para fora, e Nova Iorque foi o sítio mais aberto a receber, e quando lá cheguei apercebi-me que a companhia Elevator Repair Service, onde fui parar, não estava em criação, que era o que mais me interessava, eles estavam em reposição, mas eu queria era processo, queria perceber o que é que as companhias estavam a fazer. Então fui procurar outras companhias enquanto lá estive, não é fácil, é preciso perceber como encontrar um lugar ali, não podia ter pudores como às vezes há aqui, aquela coisa do “aquele é amigo daquele, então é melhor não dizer isto”. Encontrei, às tantas, uma companhia com quem tive uma boa relação, só de mulheres, que se chama Half Straddle – e que até já veio à Culturgest – e com quem gostava de estabelecer uma relação porque passam agora dez anos que me cruzei com elas.
E o lado humano dessa estadia em Nova Iorque?
Há um lado assim norte-americano, ou de Nova Iorque, ou da experiência que eu tive, também não quero estar a generalizar, que é “olá, de onde é que vens, para onde é que vais, o que é que fazes?”, mas que se esfuma rapidamente, a novidade, não sei bem.
É plástico?
É muito plástico. Importante, importante foi ter acesso às artes plásticas, todas as quintas-feiras inauguram exposições em pequenas galerias.
O acesso a essa vida.
Sim, claro, há coisas muito particulares, uma exposição só de pessoas que tinham nascido depois de 1981, artistas de todo o mundo, havia muita coisa, tudo passa por lá, ter acesso a isto foi muito importante.
Esse lado de formação sempre a acompanhou. Acha importante, deduzo.
Muito, sinto sempre que me faltam coisas, base, informação, ver coisas novas, como é que eu me ponho perante as escolhas dos outros.
Falava há pouco no fenómeno “aquele é amigo do outro”. O que é que queria dizer com isso?
Opá, as amizades, este meio é muito pequeno, há muito este jogo de compadrios e de amizades e de troca de cadeiras e só o meu amigo é que faz, há pouco abertura para novas pessoas, mesmo até devido ao próprio sistema de subsídios que às vezes têm que ter condições para fazer primeiras criações.
Quer falar um bocadinho sobre este estado das coisas?
Não.
Muito bem. A Crista trabalhou com muita gente em teatro: Rogério de Carvalho, Cão Solteiro, Mala Voadora, Artistas Unidos, João Pedro Vaz, Gonçalo Waddington…
É verdade, parece que estou sempre a começar outra vez, é o bom e o mau de trabalhar sempre com companhias e encenadores diferentes.
Mas também fez “As Mil e Uma Noites”, do Miguel Gomes, onde fazia de Xerazade.
Foi espectacular. O próprio processo era inédito e as histórias que a Xerazade contava eram as notícias naquele ano fatídico da entrada da troika. Havia uma equipa de jornalistas e guionistas que escolhiam essas histórias, com a equipa de produção viam se era possível fazer, e foi um ano nisto, este processo era para todos, sabia que ia fazer de Xerazade, mas como, de que maneira? Não fazia ideia. Lembro-me do Miguel me dizer assim: “Tenho aqui uma ideia que é: tu vais estar sempre com o rei no quarto, e o rei é um camafeu com a voz do Bonga”. Genial, pá! Nunca foi, nunca chegou a ser, mas eram as referências que ele me dava. E foi um ano também nisto do “podes vir gravar amanhã ou daqui a dois dias para o Alentejo?”. Eu sabia, estava de pré-aviso, mas não foi fácil.
Onde é que a vamos poder ver em breve?
Para já tenho reposições da “Cinderela” [espectáulo de Lígia Soares, estreado no São Luiz em Junho de 2018], este espectáculo há de ir ao Porto e o resto ainda não posso dizer.
Aguardaremos. Obrigado.
Muito obrigada.