São coisas de miúdos. Torcer o nariz à escola e chegar atrasado às aulas. Não fazer os trabalhos de casa. Dizer que não às tarefas domésticas. Partir alguma coisa que não devia. As imprudências e as fugas à responsabilidade são férteis durante a adolescência. Na tal idade de fazer disparates. Em Alvalade, no velhinho estádio, eles apareciam. Era esperado e, por isso, havia um castigo que, contado sem explicação, até podia parecer coisa boa — quem “fizesse asneira, tinha que levar um Ferrari”. Era certinho.
Raro era o jogador, entre iniciados, juvenis e juniores, que escapava à penitência. Às vezes calhava a Ronaldo, “porque também fazia asneira”. Ver alguém a tocar no Ferrari, fosse quem fosse, era motivo para os restantes rirem. “Levar o Ferrari era uma coisa muito engraçada. Quem o levasse tinha de carregar um caixote do lixo grande, para o ir despejar”, revela Edgar Marcelino, extremo que hoje anda pela Índia, puxando uns risos para o meio das palavras, ao lembrar as vezes em que o castigo “calhava ao Cristiano” e “todos começavam a gozar com ele”.
Foi “há muito tempo”. Há 15 anos, quando Edgar, durante “uns quatro ou cinco meses”, ainda viveu com Ronaldo numa residencial na Avenida Duque de Loulé, no centro de Lisboa. Numa altura, garante, em que ainda “era difícil perceber o que ele dizia, por causa do sotaque” trazido da Madeira. Na mesma altura em que Ronaldo, desgostoso com o castigo em forma de lixo, dizia a quem ria: “Um dia hei-de conduzir um Ferrari a sério e vão ficar todos a olhar para mim.” Vidente ou não, “tinha razão”, resume Edgar. “Hoje conduz os que ele quiser”, acrescenta quem ganhou a corrida e chegou antes de Ronaldo aos 30 anos (um nasceu em 1984, o outro em 1985).
Quando tinha 14 anos e começava um jogo sentado no banco já levantava suspeitas. Cristiano Ronaldo era dos melhores, já todos o sabiam. E até o Desporto Jovem, um jornal que era como uma bíblia para os jovens das escolas de formação dos clubes, estranhou o facto.
Por castigo ou não, em 1998, Cristiano ficou sentado no banco no primeiro dérbi do campeonato de iniciados de segundo ano. O mensageiro é Luís Sobral, um rapaz do Benfica que, nessa manhã, teve uma primeira parte muito tranquila. “Era o meu primeiro dérbi. Ganhámos 3-0”, lembra. “O Ronaldo ficou no banco. No [jornal] Desporto Jovem falava-se em escândalo, porque não se percebia muito bem como é que o melhor, ou um dos melhores, do campeonato ficava no banco num dérbi”, explica, recordando os tempos idos, lembrando também que, na altura, “escreveram que razões não desportivas poderiam estar na origem”.
Mas Cristiano entrou na segunda parte e atrapalhou a vida a Sobral, hoje um financeiro, de 29 anos. “Quando ele entrou mexeu com aquilo. Era magrinho, alto e já se notava, com 14 anos, que era craque. Tinha um toque de bola incrível. Jogava muito. Era rapidíssimo e gostava das suas fintas. Entrou para 10, eu estava a trinco. Tive uma segunda parte mais complicada, mas ainda marquei o terceiro”, conta. E cacetada da boa? “Eu não era muito de dar frutas, mas sou capaz de lhe ter dado duas ou três”, recorda, com uma gargalhada a colar-se às palavras.
O tal primeiro dérbi de Sobral coincidiu com a estreia de Luís Roquete. E o treinador, que seria mais tarde adjunto de Fernando Santos, no Benfica (hoje está no Sp. Ideal dos Açores), parece ter reservado a memória para o jogo em que os jovens verdes e encarnados se voltaram a defrontar. “Não me lembro desse jogo, só da grave lesão de um jogador nosso. Mas lembro-me de um outro, numa segunda fase, em que empatámos 5-0 com o Sporting. Ele marcou dois ou três”, conta, num tom sarcástico, muito próprio de quem andou uma vida inteira com o apito na boca e a dar a tática. “Era um talento, um driblador. Era um miúdo que fazia a diferença, mas que só jogava com a bola no pé. O Sporting tinha essa filosofia: dar grande liberdade aos mais talentosos”, desenhava, ao indicar um pormenor que, hoje e sempre, ainda se nota, em parte, no jogo de Ronaldo: “Quando perdia a bola parava. Com bola tinha sempre de driblar um, dois, três jogadores…”
Okay, já se percebeu que aqueles que se colocavam no caminho de Cristiano tinham problemas. Até a imprensa ficava indignava quando ele não jogava. O Desporto Jovem era um jornal mágico para os miúdos. Ficavam em pulgas para saber o que se dizia da exibição deles, das maravilhas e trapalhadas da equipa, dos pontos fortes e problemas dos futuros adversários. Era o Google em papel da garotada, que não se podia agarrar aos YouTubes desta vida. E com Ronaldo o jornal chegou a questionar as opões de Luís Martins, hoje adjunto de Villas-Boas no Zenit. Com 14 anos é obra. Mas como seria, afinal, jogar com ele ao lado? “Dentro de campo era um líder. Não berrava nada… O pessoal passava-lhe sempre a bola, era o que ele queria. Passávamos e ele resolvia”, lembra Duarte Santos, ex-capitão do Estoril nas camadas jovens e com quem Ronaldo jogou na seleção de Lisboa.
João Vila Verde, que mais tarde faria dupla com Duarte no Estoril, foi também ele adversário de Ronaldo, mas num treino de captação do Sporting. “O Luís Alegria, que tinha sido meu treinador nos infantis, chamou-me para lá ir treinar. Era uma organização fantástica: havia um jogador para cada posição. A tática era 4-3-3. Cada um chegava de diferentes clubes e jogámos contra a equipa titular, na qual estava o Ronaldo. Eles ganharam 3-1, num jogo de 45′. Fui eu que o marquei. Ele fez dois golos”, lembra Vila Verde, que ainda assim recusa a ideia de que o atual capitão da seleção portuguesa era o craque de serviço dos leões. “Era o Paulo Sérgio, aquele que passou no Guimarães e Belenenses.” E não desarma: “O Cristiano era muito brinca na areia. Lembro-me de o ver e era sempre como naquele Sporting-Manchester, em que se mostrou ao Alex Ferguson. Tratou mal o O’Shea…”
João Vila Verde, hoje responsável por uma agência de comunicação, conta ainda uma história que fica por confirmar. Há sempre lendas à volta destes jogadores especiais. “Falei com pessoas que se davam com ele na altura e julgo que ele vivia na Avenida da Liberdade. Disseram-me que ele ia para um semáforo e, quando ficava verde, fazia corridas contra os carros até à rotunda do Marquês”, diz, lembrando o que na altura se dizia e que, hoje, afinal, não passava de um rumor. “Correr? Nem pensar, já bastava o que corríamos nos treinos. E depois ainda tínhamos de ir para a escola”, desmente Edgar Marcelino, companheiro de residencial e de equipa nos iniciados, juvenis (sobretudo) e juniores, antes de lamentar ter perdido o contacto com Ronaldo “já há alguns anos”.
A adrenalina da competição sempre lhe correu nas veias desde pequeno. E é esse tipo de acontecimento, o da suposta correria na Avenida, aliado a golos e dribles surreais, que inventa os semideuses do futebol de formação. Quem não joga no Benfica, Sporting e FC Porto entra sempre a perder, porque os teme. Sabem de cor os seus nomes, o que fazem e o que podem fazer. E isso aconteceu em relação a Ronaldo, Quaresma e até Djaló. Eram temidos. E pronto.
Mas as histórias na seleção de Lisboa não ficam por aqui. Não senhor, que até mete sessões de espíritos ao barulho. “Lembro-me bem de um episódio num torneio em Santa Comba Dão, com a seleção de Aveiro, Coimbra e outra. O nosso avançado era um dos Olivais e Moscavide e nós dizíamos que era o afilhado do treinador. Demos sempre tareias nos jogos. Na final, já se sabia que o Ronaldo ia ganhar o prémio de melhor jogador — era só cuecas e golos! Passávamos e ele fazia tudo”, insiste Duarte Santos, sem parar de rebobinar a história. “O treinador tirou o Ronaldo para o tal avançado ser o melhor marcador, porque mais 20 minutos e ele marcava mais uns golos. Ganhámos para aí 6-0. Viemos a viagem toda para Lisboa a gozar com o avançado: ‘É o teu padrinho, é o teu padrinho’. E o Ronaldo também. Ele ia lá sentado atrás e a dizer que devia ter ganho as duas taças [melhor marcador e melhor jogador].”
Cristiano Ronaldo é um fenómeno. E aquele fenómeno começou na cabeça dele, como um monstro que decide ser gigante e fazer algo de bom. Com 14 anos já queria ser o número um, em tudo. “No balneário era muito reservado. Estava sempre com o Fábio Ferreira, um extremo direito do Sporting que era do Algarve. Andavam sempre juntos. Ele não dava muita confiança. Já sabia que era bom…”, conta Duarte.
Quando recebeu a terceira Bola de Ouro, Ronaldo igualou Cruyff, Platini, Van Basten e Zidane e apontou para o Olimpo: quer a quarta, como Lionel Messi. Isto de olhar para o além, para o infinito da história do futebol, não é nada de novo para ele. Nesse tal estágio da seleção de Lisboa, em Viseu, Cristiano convocou a equipa toda para o seu quarto. “Fizemos uma sessão de espíritos com a equipa toda. Usámos o copo e tal. Quando estávamos todos em silêncio, alguém fazia… [Duarte simulou, digamos, um traque e gargalhou] e partia-se tudo a rir!”
Cristiano Ronaldo hoje é Cristiano Ronaldo. E daqui a 50 anos ainda haverá quem vai lembrar o jogador que era. Os mitos existem, as aventuras também e as memórias andam aí por agarrar. Mas para os miúdos com quem dividiu o mesmo metro quadrado, era só um rapaz com muito jeito para a coisa. “Era aquele gajo a quem passávamos a bola!”, recorda Duarte Santos. Um gajo. E pronto, assim se resolvem os fundamentos do Cristianismo, com esta naturalidade. Esta lengalenga toda foi em 1999, mas se esta história fosse contada por Sergio Ramos, Paul Scholes ou João Moutinho, em 2015, ninguém estranharia. Hoje vê-se em Madrid, como se viu em Manchester e ainda se vai vendo na seleção. Ou como aconteceu em Santa Comba Dão. Nada mudou.