Quando Sónia tinha 13 anos, ainda o império soviético estava de pé e o Muro de Berlim também, foi passar férias e conhecer as “águas espetaculares” do sul da Crimeia. Férias, mais ou menos: estava numa “colónia de férias”, sim, mas que juntava milhares de jovens na União Soviética, filhos de pais comunistas, primeiro em Moscovo e depois na Crimeia, para trocarem “experiências” e ganharem formação política. Num “país cheio de regras”, Sónia, filha de militantes comunistas, aprendeu a não mergulhar sem supervisão: “Eles avisavam para não pormos a cabeça debaixo de água muito tempo. Se acontecesse alguma coisa a um miúdo dos Estados Unidos, está a ver o filme…”, graceja.
Passaram 38 anos desde a estada na Crimeia e Sónia Maria Santinho Cachapa, agora com 51 anos, recorda esta história sentada numa das mesas do espaço internacional da Festa do “Avante!”, concentrada na taça de arroz frito e no prato de pequenos crepes vietnamitas à sua frente.
À frente tem também uma mulher mais velha que, à primeira vista, é a sua fotocópia: os mesmos olhos muito azuis, o mesmo nariz inclinado, ambas bronzeadas. Não é difícil perceber que são mãe e filha — ou não fosse a mãe, Maria de Lourdes, que se fez militante comunista ainda o partido era clandestino, quem se vai lembrando dos pormenores da “colónia de férias” na Crimeia.
Apesar de estarem interessadas em explorar a cozinha vietnamita (o partido comunista daquele país é um dos 14 que vendem especialidades estrangeiras no espaço internacional do “Avante!”), Sónia e Maria de Lourdes estão sentadas na esplanada da Associação Iuri Gagarin, que vende iguarias e artesanato russo. Mas, questionadas sobre a posição do partido sobre a guerra na Ucrânia — é por isso que se lembram de falar sobre as “férias” na Crimeia, região hoje ucraniana mas anexada pela Rússia desde 2014 — hesitam.
“É que temos opiniões diferentes“, esclarece Sónia, que é simpatizante do PCP e costuma vir à festa. E passa a explicar a sua: “Acho que o partido devia ter apoiado [a condenação à Rússia], não da maneira como outros estão a fazer, mas devia ser mais explícito na condenação a [Vladimir] Putin. Ele nem sequer é comunista, a Rússia não é comunista…”.
Do outro lado do debate está Maria de Lourdes, que diz estar “de acordo” com a posição do PCP, que tem sido de forte crítica aos Estados Unidos, União Europeia e NATO, para o partido responsáveis pela “escalada de tensão” na região de há anos para cá, e de poucas ou nenhumas críticas à Rússia.
Não é que apoie “a guerra nem a morte”, apressa-se a esclarecer, até porque se lembra do que “aquele povo” — e aqui fala da União Soviética — ergueu com o seu “trabalho manual, sem pedinchar”. Mas alinha com o partido: “Estou de acordo em que não fechem os olhos ao que aconteceu antes e a outras responsabilidades”.
De repente, a conversa com o Observador transforma-se num diálogo entre mãe e filha. São de gerações diferentes e veem a situação de maneiras diferentes.
— “Eu sou simpatizante do partido, mas há coisas com que não concordo…”, explica Sónia.
— “Se calhar também há coisas que desconheces… que se desconhece quando não se tem militância, tarefas para o partido…”, contrapõe a mãe.
Maria de Lourdes justifica a presença constante na festa — antes sempre como voluntária a ajudar, desde que fez uma operação ao coração apenas como visitante — e na vida do partido com as experiências na clandestinidade, desfia histórias sem parar, aquela vez em que estava a distribuir materiais do PCP pelos correios e viu um polícia e gritou que vinha aí o “chui” e não sabe como “não foi dentro”, a outra em que foi marcada pela polícia com tinta azul numa manifestação.
A filha vai abanando a cabeça, compreende tudo isso. Quanto à guerra, no entanto, não há acordo. Maria de Lourdes, no limbo entre a crítica à guerra e o apoio ao partido, tenta ensaiar síntese que o PCP se tem esforçado por vender: “Sou apologista da construção, não da destruição”, remata.
Matrioskas, sopas borsch e uma associação polémica
Se a dupla mãe e filha analisa à vontade a questão da guerra na Ucrânia, na banca da associação, logo uns metros atrás, a conversa é mais discreta. Atrás da mesa em que se distribuem matrioskas e outras peças de artesanato vindas diretamente da Rússia, mas também pins comemorativos dos 60 anos da viagem do astronauta russo Iuri Gagarin ao espaço, está António Silva, que pertence à associação. Ao Observador, garante que as vendas este ano “estão melhores“.
Com manifestações de apoio de militantes e simpatizantes sobre a invasão da Ucrânia? Sobre isso não quer alongar-se. Mas lá acaba por confirmar que já recebeu neste dia, o segundo do maior evento do calendário anual do PCP, “manifestações a falar da paz, de compreensão da situação”. Quem ali está não parece estar a pensar em assuntos de guerra e paz: os visitantes dividem-se entre a compra de artesanato e uma moldura onde podem tirar uma fotografia como se vestissem o fato de astronauta de Gagarin.
É ali ao lado que se vende a tradicional sopa russa de beterraba, a borsch, as misturas de bebidas (gelatiodka, larajodka e limonodka), mas também cervejas russas e ucranianas. Tudo trazido e vendido pela Associação Iuri Gagarin, única representante da Rússia (quando foi fundada, logo a seguir ao 25 de Abril, era a associação Amizade Portugal-URSS) na festa, uma vez que o partido comunista russo não está presente.
A associação sempre se apresentou como um grupo para promover o intercâmbio cultural entre os dois países (diz representar também os “povos que faziam parte da URSS“) organizando visitas turísticas e oferecendo aulas de russo; mas as ligações ao Kremlin são alvo de críticas recorrentes. Ainda em maio o site foi abaixo, alvo de ataques informáticos de hackers pró-Ucrânia que não perdoam o alinhamento com os “padrinhos” de Moscovo.
As pombas pela paz e os culpados pela guerra
É ali que se encontram, numa edição da Festa do “Avante!” marcada pela polémica à volta da posição do PCP sobre a guerra na Ucrânia e as críticas que o partido arruma como “preconceitos”, os restantes espaços internacionais — polvilhados por inúmeras referências vagas à “paz” e à necessidade de parar “a guerra”, sem especificar qual.
A entrada do espaço internacional é, de resto, adornada com pinturas de pombas brancas que trazem ramos de oliveira no bico. Ali misturam-se bancas que onde se vendem posters que garantem que “o povo quer Lula de novo” como Presidente do Brasil; um espaço de comes e bebes batizado como o oficial “Espaço da Paz” que vende lasanhas, mojitos, mas também umas sugestivas “Cubas Livres“; fotografias a preto e branco de Che Guevara e Salvador Allende por entre ragú cozinhado pela delegação do Partido Comunista Italiano e as “caipirinhas revolucionárias” anunciadas pelo PT brasileiro.
E por todo o lado, pombas, murais onde se desenha um labirinto, a pomba da paz de um lado, os tanques de guerra com a bandeira da União Europeia espetada do outro. Mesmo no centro do espaço internacional, uma série de cartazes pedem, mais uma vez, a “paz” — desta feita, concretizam mais especificamente quem são os culpados por não se conseguir alcançar essa paz: os Estados Unidos, a NATO, a União Europeia. Em resumo: o capitalismo.
Num dos cartazes, uma imagem de Bagdade em chamas, durante a guerra no Iraque, lê-se a explicação: “Contrariamente ao que alguns querem fazer crer, são os Estados Unidos, a NATO, a União Europeia e outras grandes potências capitalistas os grandes promotores do imperialismo e da guerra”. O cartaz do lado assegura que a guerra na Ucrânia é uma “guerra por procuração do Estados Unidos e da NATO contra a Federação Russa”, tudo porque Rússia e China são “os principais alvos a abater pelo imperialismo”. Mais outro: “São imensos os perigos da escalada de confrontação promovida pelos Estados Unidos contra a Rússia e a China”.
Em poucas palavras, fica claro quem é que o PCP considera culpado pela guerra e quem é, afinal, o atacado. A posição poderá não ser totalmente consensual entre simpatizantes e militantes — mas ficará mais próxima da de Maria de Lourdes do que da de Sónia, já longe dos tempos em que fazia férias na Crimeia.