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David Fincher, de 61 anos, começou a carreira na década de 80 a realizar vídeoclipes para artistas como Madonna ou George Michael

Getty Images for Netflix

David Fincher, de 61 anos, começou a carreira na década de 80 a realizar vídeoclipes para artistas como Madonna ou George Michael

Getty Images for Netflix

David Fincher: um mapa para as perversões da sociedade no cinema de um "autor comercial"

"O Assassino", novo filme do realizador de "Seven" e "Clube de Combate", sintetiza as obsessões temáticas comuns à sua filmografia: assassinos em série, a violência e o lado obscuro da mente humana.

Os minutos iniciais de O Assassino, o novo thriller de David Fincher (que se estreia em sala esta quinta-feira, 26 de outubro e chega à Netflix a 10 de novembro), são dedicados a observar atentamente o processo do seu protagonista. A personagem, um metódico e indecifrável assassino profissional interpretado por Michael Fassbender, cumpre com escrupulosa disciplina cada etapa da sua rotina, nunca dando um passo em falso e minimizando quaisquer vestígios indicativos da sua passagem, ao mesmo tempo que, em voz-off, salienta a importância do planeamento e debita desapaixonadamente estatísticas, dadas como prova de que a ação humana pouco ou nenhum impacto tem na ordem natural das coisas.

“Não confies em ninguém, proíbe a empatia, não improvises” é o mantra e a frase repetida por Fassbender ao longo das cerca de duas horas do filme, uma espécie de lema ao qual adere rigidamente. Ao mesmo tempo, é difícil ignorar que encaixa que nem uma luva em toda a obra do realizador de Seven — 7 Pecados Mortais, O Jogo, Clube de Combate, Em Parte Incerta, Os Homens que Odeiam as Mulheres, entre outros, quase como se se tratasse da concretização de uma filosofia pessoal que Fincher imprime em todos os seus filmes.

[o trailer de “O Assassino”:]

A ideia central é (quase) sempre a da exploração do lado obscuro da psicologia humana, daquilo que se esconde nas sombras, o que não podemos (ou não queremos) ver. A atração por protagonistas solitários, nas margens da sociedade, cujas características excecionais ora põem a descoberto, ora exemplificam a capacidade humana para o mal que está dentro de cada um de nós e que nos fascina, é-lhe há muito reconhecida; em O Assassino, é destilada à essência mais primária, roçando por vezes o satírico, numa espécie de síntese do objeto de estudo permanente do realizador.

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O lado obscuro da mente humana

Essa fixação remonta, em parte, à infância de Fincher, de 61 anos. Em cada rua onde viveu durante a infância, o cineasta lembra-se sempre de haver uma casa misteriosa que lhe suscitava curiosidade, a ele e aos miúdos da vizinhança. “Todos os miúdos da rua se juntavam e questionavam-se, ‘o que é que aquelas pessoas estão a esconder?’” dizia em 2017, numa entrevista à Esquire, por ocasião da estreia da série criminal Mindhunter, da Netflix (produção que ajudou a conceber naquela que é a sua “casa” desde 2014).

Nos vários universos do realizador, a resposta a esta pergunta é invariavelmente pessimista: crime, morte, obsessão, poder e ambição destrutiva são elementos recorrentes nos seus filmes, eles próprios espelhos distorcidos do lado mais questionável da sociedade, criados por alguém que se assume, se não como “pessimista”, certamente como um “cínico”.

Michael Fassbender, o protagonista de "O Assassino"

Courtesy of Netflix

As obsessões que Fincher concretiza são, no seu entender, comuns à própria natureza da mente humana. “Temos a tendência de juntar o sinistro ao mundano para tornar as coisas interessantes. (…) Também tem a ver com o facto de que, para que uma coisa seja maléfica, quase tem de se esconder e fingir ser outra coisa qualquer”, defendeu na mesma entrevista.

Filmes como Seven — 7 Pecados Mortais e Em Parte Incerta são os expoentes máximos desta ideia. Tematicamente, ambos giram em torno de uma norma social corrompida: no caso do thriller policial que lançou Fincher como um nome maior no cinema americano da geração de 90, o guia moral dos pecados bíblicos é transformado em algo macabro e sinistro pelo John Doe, o homem comum de Kevin Spacey, levando a dupla de inspetores no seu encalço (Brad Pitt e Morgan Freeman) ao limite da empatia e, por fim, à aceitação de um mundo cruel e niilista. Já a adaptação do romance de Gillian Flynn (Gone Girl no original) parte de uma outra construção social, a da “família perfeita” idealizada por Ben Affleck e Rosamund Pike e que, também aqui, é uma fachada, uma das tais “casas ao fundo da rua” da infância de Fincher que, quando as luzes se apagam, revelam segredos obscuros.

Nestes casos, como em Zodiac, policial de 2007 baseado no mistério não-resolvido do assassino em série que aterrorizou a Califórnia no final da década de 1960, impera a lógica do film noir, um dos géneros mais presentes no cinema de Fincher. Mais do que pura estética (o contraste entre a sombra e a luz), estes neo-film noirs modernos representam sobretudo uma verdade temática, que recupera a identidade do “filme negro”, nascido na América do pós-2.ª Guerra Mundial e que veio pôr em causa a própria ideia de bondande inerente ao ser humano.

O interesse, seu e do público, pela mente dos assassinos em série, acaba por se revelar propício à exploração desta ideia de um mundo amoral. “A razão pela qual estes predadores continuam a fascinar-nos é porque queremos atribuir este comportamento à loucura. Mas, para se ser um ‘assassino em série’, tem de se matar pelo menos três pessoas – o que quer dizer que não se pode ser apanhado das primeiras duas vezes. Tem que haver uma preparação bastante metódica para que isso não aconteça” explicou, quando questionado acerca da recorrência com que aborda estas figuras. “Esconderem-se à vista de todos, é isso que acho aterrador neles.”

"Mindhunter", série exibida entre 2017 e 2019

Até quando os seus filmes se afastam da temática dos assassinos em série e do crime violento, as dinâmicas sociais de poder, ou falta dele, continuam a ser o centro das preocupações. Veja-se o caso de A Rede Social, um filme dividido entre entre o cinismo distante de Fincher e o luminoso jogo de palavras característico de Aaron Sorkin (argumentista de Uma Questão de Honra, Os Homens do Presidente) que, já em 2010, reduzia a figura messiânica de Mark Zuckerberg a um miúdo solitário num quarto estudantil, cuja única motivação era vingar-se da ex-namorada e sentir-se superior face ao melhor amigo. Mesmo olhando para desvios como O Estranho Caso de Benjamin Button ou o mais pessoal Mank, realizado a partir de um argumento do pai, a impotência das personagens perante a marcha do tempo e as forças para lá do seu controlo formam o ímpeto da narrativa (ainda que, sobretudo no primeiro, o tom seja mais otimista do que no resto da obra do realizador).

O perfecionismo obsessivo de um “não-autor”

Se a violência, a solidão interior e a obsessão caracterizam de um modo geral o núcleo temático de Fincher, o seu estilo visual serve para ampliar e reforçar estas ideias. Frios, calculados e metódicos (à semelhança de muitos dos seus protagonistas), os filmes do cineasta empregam uma paleta de cores distante, em que a paisagem das composições é dominada por azuis metálicos e verdes esbatidos. As sombras, salvo raras exceções, não são empregues em contraste elevado com a luz; antes, o raio de alcance da iluminação é propositadamente limitado, deixando todo o espaço algures entre luz e sombra, num desafio ao espectador para tentar encontrar a diferença, para perceber onde uma acaba e a outra começa.

É uma estética precisa e cuidada, que deve muito ao estilo perfeccionista do realizador. Conhecido pelo seu rigor na pré-produção e atenção obsessiva prestada a cada detalhe do enquadramento, o controlo absoluto que exige e as histórias que lhe são conhecidas nas rodagens formam parte da “lenda” em torno do cineasta. O número de takes de uma “produção Fincher” impressiona: Rooney Mara teve de repetir 100 vezes uma só cena de A Rede Social; Em Parte Incerta rondou, em média, os 50 takes por cena; uma sequência de nove minutos de um episódio de Mindhunter precisou de nove horas para ficar completa.

A atenção a cada pormenor, do posicionamento do protagonista de uma cena aos botões de punho de um figurante em segundo plano, tem-lhe valido ao longo dos anos comparações com Stanley Kubrick, o mais célebre “controlador” do cinema norte-americano. Ainda assim, e mesmo assumindo ter tendências “autocráticas” durante as rodagens, Fincher recusa veementemente rótulos como “perfeccionista” (“é um monte de tretas. Só sou perfeccionista para os preguiçosos”) e, sobretudo, o prefixo de “autor”.

"Seven — 7 Pecados Mortais" (1995)

“O problema com a teoria do ‘autorismo’ é que pressupõe que uma só pessoa pode impor-se às outras 99 com uma manifestação daquilo que lhe vai na cabeça, que tudo lhe pode ser atribuído”, disse em 2017, numa rejeição da teoria crítica desenvolvida nos anos 50 do século XX e popularizada por movimentos como a nouvelle vague, em França, ou a “nova Hollywood”, nos EUA na década de 70, de onde vieram as maiores inspirações de Fincher, como Martin Scorsese, Ridley Scott, George Roy Hill ou George Lucas – de quem, a título de curiosidade, foi vizinho em criança, e que lhe viria a oferecer o primeiro emprego na indústria, ainda em adolescente, como assistente na Industrial Light and Magic, a companhia de efeitos especiais criada por Lucas durante a produção da primeira trilogia de Star Wars.

A câmara de Fincher também adere a este “princípio de invisibilidade”, restringindo-se nos movimentos e flashes de virtuosismo em favor de uma economia narrativa que prioriza a história acima de tudo (máxima aprendida com Alfred Hitchcock, o “cineasta da perversão” original, segundo o qual muita da carreira de Fincher pode ser modelada).

De Madonna a Fassbender, a sátira da sociedade do consumo

A rejeição de qualquer “autoria” artística pode, em parte, ser atribuída a uma certa matriz “populista” assumida pelos seus projetos. Longe das propostas pessoais e com cunho arthouse de contemporâneos como Spike Jonze, Quentin Tarantino ou Paul Thomas Anderson, Fincher é atraído por material “para as massas”: adaptações de literatura comercial (Clube de Combate, Os Homens que Odeiam as Mulheres, Em Parte Incerta e o próprio O Assassino, baseado numa banda desenhada francesa) histórias biográficas (Zodiac e A Rede Social), policiais e thrillers hitchcockianos (o próprio admitiu que Sala de Pânico foi a sua tentativa de ensaiar um Janela Indiscreta). Mesmo a estreia nas longas-metragens, no início da década de 90, foi com um blockbuster – Alien 3, mal recebido e uma experiência da qual se distanciou ao longo dos anos devido aos conflitos com o estúdio durante a produção – ele que chegou a ser cogitado como realizador do primeiro Homem-Aranha, do terceiro Missão Impossível e que ia avançar para a realização da sequela do filme de zombies WWZ ao lado do colaborador habitual Brad Pitt (o projeto acabaria por ser cancelado por questões financeiras).

Esta identificação de Fincher como uma espécie de “autor comercial” traça um paralelismo direto com o início da sua carreira,  quando se notabilizou como realizador de dezenas de filmes publicitários para marcas como a Coca-Cola e a Nike, bem como de videoclipes para várias das maiores estrelas da pop dos anos 80 e 90: o sapateado de Paula Abdul em Straight Up, o playback de Cindy Crawford, Naomi Campbell, Linda Evangelista, Christy Turlington e Tatjana Patitz no vídeo de George Michael para Freedom ‘90, e o icónico preto-e-branco que projetou Madonna para a década de 90 em Vogue (só para citar alguns) são da sua autoria.

[o vídeo de “Vogue”, de Madonna:]

Tal não significa, contudo, que os seus filmes sejam alheios a explorar questões relacionadas com o capitalismo tardio e a sociedade americana contemporânea. Pelo contrário, o cinema de Fincher evidencia um nítido toque satírico, faceta algo subvalorizada na sua obra. O humor negro está lá sempre, escondido por entre as imagens de violência e sadismo niilista pelas quais é celebrado (e, por vezes, criticado). Porventura, essa dimensão tem o seu exemplo mais nítido em Clube de Combate, um marco no final da década de 90 que, partindo do livro homónimo de Chuck Palahniuk, apontou o dedo ao consumismo desmedido e à crise de masculinidade do “fim da história”.

"A Rede Social", de 2010

Merrick Morton

Não é caso único. Ainda que um drama, House of Cards, a série que ajudou a criar para a Netflix, em 2014, reduz muitas das complexas jogadas de bastidores nos meandros políticos de Washington a confrontos de egos corriqueiros e fúteis; Em Parte Incerta, do mesmo ano, tem sob mira a espetacularização das histórias de crime pelos meios de comunicação, particularmente a televisão (fenómeno que só se intensificou desde então), bem como o perverso benefício mútuo da cultura das celebridades – várias leituras nos anos que se seguiram ao filme entendem a escolha de Ben Affleck para o papel principal como tudo menos inocente. O próprio assassino anónimo do mais recente filme descontrai, antes e depois dos crimes que comete, com a música dos The Smiths, é cliente assíduo da Starbucks e da McDonald’s e compra as suas “ferramentas de trabalho” na Amazon.

As alusões não são acidentais, e revelam Fincher como alguém particularmente astuto e observador do papel que as grandes corporações desempenham na sociedade do consumo, e à forma como esta fecha os olhos aos elementos sórdidos que nela se camuflam. É um olhar irónico sobre os seres humanos, que recusam confrontar o seu lado mais escondido a menos que este seja comodificado e espetacularizado pela televisão e pelo cinema. Uma ideia que o próprio, com um sorriso, revela. “Acho que as pessoas são pervertidas. Sempre acreditei nisso. É a base de toda a minha carreira”.

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