Obra de referência na História, título obrigatório no estudo do Império Romano, o livro de Edward Gibbon é composto, originalmente, por seis volumes, elaborados e escritos ao longo de mais de uma década. A Book Builders publica, esta segunda-feira, dia 30 de novembro, uma nova versão, em dois volumes. E o Observador faz a pré-publicação de um excerto.
Edward Gibbon (1737-1794), historiador inglês, desmonta com detalhe os elementos que levaram à formação do Império Romano, as suas principais figuras, regras, leis e sistemas (políticos, sociais e económicos). Uma visão transversal, que inclui o outro lado da história: o declínio e a queda, as crises, as lutas e derrotas.
Neste excerto que o Observador revela, Edward Gibbon aborda o funcionamento do sistema político do Império Romano, descrevendo também as idiossincrasias dos diferentes líderes que o colocaram em prática — desde a fundação do Império, por, Augusto, até Marco Aurélio, o último dos “Cinco Imperadores Bons” e aquele que marcou o fim do período conhecido como “Pax Romana”.
Para resumir, em poucas palavras, o sistema do governo imperial, tal como foi constituído por Augusto e mantido pelos príncipes que entenderam os seus próprios interesses e os do povo, podemos defini-lo como uma monarquia absoluta disfarçada sob as vestes de uma república. Os senhores do mundo romano rodearam o seu trono de sombra, dissimularam a sua força irresistível e intitularam-se humildemente os cônscios ministros do Senado, cujos supremos decretos eles ditavam e cumpriam.
A aparência da corte correspondia às formas da administração. Os imperadores, se exceptuarmos os tiranos cujos caprichos violaram desvairadamente todas as leis da Natureza e da decência, desdenhavam a pompa e circunstância susceptíveis de escandalizar os seus concidadãos, sem nada virem acrescentar ao seu poder real. Em todos os aspectos da vida, davam a impressão de emparceirar com os súbditos e mantinham com eles um equilibrado convívio feito de visitas e diversões. As suas vestes, o seu palácio e a sua mesa não iam além do nível de um senador abastado. A sua casa, embora numerosa e brilhante, compunha-se, na totalidade, dos seus escravos e libertos. Augusto ou Trajano teriam corado ante a ideia de empregar o último dos romanos nestes trabalhos domésticos que, na casa e nos aposentos de um monarca limitado, são tão avidamente solicitados pelos nobres mais orgulhosos da Grã-Bretanha.
A deificação dos imperadores constitui o único exemplo em que eles se afastaram da sua costumada prudência e modéstia. Os gregos asiáticos foram os primeiros inventores, e os sucessores de Alexandre os primeiros objectos deste servil e ímpio modo de adulação; transferiu-se facilmente dos reis para os governadores da Ásia, e os magistrados romanos eram muitas vezes adorados como divindades provinciais, com a pompa de altares e templos, de festivais e sacrifícios. Era natural que os imperadores não recusassem o que os procônsules tinham aceitado; e as honras divinas, que todos eles recebiam das províncias, atestavam mais o despotismo do que a servidão de Roma.
No entanto, os conquistadores depressa imitaram as nações vencidas nas artes da lisonja; e o espírito imperioso do primeiro César consentiu demasiado facilmente em assumir, enquanto vivesse, um lugar entre as divindades tutelares de Roma. O temperamento mais brando do seu sucessor recusou uma tão perigosa ambição, que não voltou a ser despertada senão pela loucura de Calígula e Domiciano. Augusto permitiu, na realidade, que algumas das cidades de província erguessem templos em sua honra, com a condição de associarem o culto de Roma ao do soberano; tolerou a superstição privada que dele fazia objecto; mas satisfez-se em ser reverenciado pelo Senado e pelo povo na sua natureza humana, e deixou sabiamente ao seu sucessor o cuidado da sua deificação pública. Adoptou-se o hábito regular de, por ocasião do falecimento de todos os imperadores que não tivessem vivido nem morrido como tiranos, o Senado os colocar, por decreto solene, entre o número dos deuses; e as cerimónias da sua apoteose juntavam-se às do funeral.
Esta profanação legal, mas que parece tão indevida e odiosa à luz dos nossos estritos princípios, não suscitou senão um leve murmúrio devido ao carácter condescendente do politeísmo; consideraram-na, porém, uma instituição da política e não da religião. Degradaríamos as virtudes dos Antoninos se as comparássemos aos vícios de Hércules ou de Júpiter. Até as personalidades de César ou Augusto eram muito superiores às destas divindades populares. Os primeiros tiveram, contudo, o infortúnio de viver num século esclarecido, e as suas acções foram registadas com demasiada fidelidade para se admitir a mistura de fábula e mistério que a devoção do vulgo exige. Mas a sua divindade era estabelecida por lei, logo caía no esquecimento, sem contribuir para a sua fama pessoal ou para a dignidade dos príncipes seguintes.
Na análise do governo imperial, mencionámos frequentemente o seu hábil fundador sob o bem conhecido título de Augusto que, no entanto, apenas lhe foi atribuído quando o edifício já estava praticamente acabado. Recebeu o obscuro nome de Octávio de uma modesta família originária da cidadezinha de Arícia. Era um apelido maculado pelo sangue derramado nas proscrições; e, se fosse possível, ele desejaria apagar qualquer recordação ligada à sua antiga vida. Tinha escolhido o ilustre cognome de César, na qualidade de filho adoptivo do imperador; mas era demasiado sensato para esperar que o confundissem ou pretender ser comparado a este homem extraordinário. Propuseram no Senado dignificar o seu ministro com uma nova designação; e, após um debate muito sério, optou-se pela de Augusto, entre várias outras, como a que melhor expressava o carácter de paz e piedade que dele emanava constantemente.
Augusto foi, assim, uma distinção pessoal, e César uma herança familiar. A primeira deveria, naturalmente, ter expirado com o príncipe à qual fora concedida; e, apesar de a última ter sido transmitida por adopção e linha feminina, Nero foi o último príncipe que pôde alegar o direito hereditário às honras da estirpe Júlia. No entanto, no momento da sua morte, a prática de um século ligara inseparavelmente estes títulos à dignidade imperial, e eles foram preservados por uma longa sucessão de imperadores — romanos, gregos, francos e germanos — desde a queda da República aos tempos modernos. Uma distinção não tardou, porém, a ser introduzida. O título sagrado de Augusto era sempre reservado ao monarca, enquanto o nome de César era mais livremente transmitido aos seus parentes; e, a partir do reinado de Adriano, pelo menos, aplicava-se à segunda individualidade do Estado, que era considerada o herdeiro presuntivo do império.
Na análise do governo imperial, mencionámos frequentemente o seu hábil fundador sob o bem conhecido título de Augusto que, no entanto, apenas lhe foi atribuído quando o edifício já estava praticamente acabado. Recebeu o obscuro nome de Octávio de uma modesta família originária da cidadezinha de Arícia. Era um apelido maculado pelo sangue derramado nas proscrições; e, se fosse possível, ele desejaria apagar qualquer recordação ligada à sua antiga vida. Tinha escolhido o ilustre cognome de César, na qualidade de filho adoptivo do imperador; mas era demasiado sensato para esperar que o confundissem ou pretender ser comparado a este homem extraordinário.
Propuseram no Senado dignificar o seu ministro com uma nova designação; e, após um debate muito sério, optou-se pela de Augusto, entre várias outras, como a que melhor expressava o carácter de paz e piedade que dele emanava constantemente. Augusto foi, assim, uma distinção pessoal, e César uma herança familiar. A primeira deveria, naturalmente, ter expirado com o príncipe à qual fora concedida; e, apesar de a última ter sido transmitida por adopção e linha feminina, Nero foi o último príncipe que pôde alegar o direito hereditário às honras da estirpe Júlia. No entanto, no momento da sua morte, a prática de um século ligara inseparavelmente estes títulos à dignidade imperial, e eles foram preservados por uma longa sucessão de imperadores — romanos, gregos, francos e germanos — desde a queda da República aos tempos modernos. Uma distinção não tardou, porém, a ser introduzida. O título sagrado de Augusto era sempre reservado ao monarca, enquanto o nome de César era mais livremente transmitido aos seus parentes; e, a partir do reinado de Adriano, pelo menos, aplicava-se à segunda individualidade do Estado, que era considerada o herdeiro presuntivo do império.
O delicado respeito de Augusto por uma constituição livre, que ele havia destruído, somente pode explicar-se por um exame aprofundado da personalidade deste tirano subtil. Uma cabeça fria, um coração insensível e uma índole timorata incitaram-no, aos dezanove anos, a pôr a máscara da hipocrisia, a qual nunca mais voltou a pôr de lado. Foi com a mesma mão, e provavelmente dentro do mesmo espírito, que ele assinou a proscrição de Cícero e o perdão de Cina. As suas virtudes e até os seus vícios eram artificiais; e, segundo os vários ditames do seu interesse, foi primeiramente o inimigo e, por fim, o pai do mundo romano. Ao edificar o engenhoso sistema da autoridade imperial, a sua moderação foi inspirada pelos seus receios. Desejava iludir o povo por meio de uma sombra de liberdade civil, e lograr os exércitos através de uma imagem do governo civil.
I. A morte de César nunca lhe saía da lembrança. Ele cumulara de riquezas e honras os seus partidários; mas os amigos mais íntimos do tio contavam-se no número dos conspiradores. A fidelidade das legiões poderia defender a sua autoridade contra a rebelião aberta; mas a vigilância delas não conseguiria proteger a sua pessoa do punhal de um republicano decidido; e os Romanos, que veneravam a memória de Bruto, aplaudiriam a imitação da sua virtude. César provocara o seu destino, tanto pela ostentação do poder como pelo poder em si mesmo. O cônsul ou o tribuno talvez pudesse ter reinado em paz. O título de rei armara os Romanos contra a sua vida. Augusto era sensível ao facto de a humanidade se deixar governar por nomes; tão-pouco viu malogradas as suas expectativas de que o Senado e o povo se submeteriam à servidão, desde que lhes fosse respeitosamente garantido que continuavam a usufruir da sua antiga liberdade. Um Senado debilitado e um povo inquieto aceitaram de bom grado esta agradável ilusão, enquanto ela se baseou na virtude, ou mesmo na prudência, dos sucessores de Augusto. Foi um motivo de autodefesa, e não um princípio de liberdade, o que induziu os conspiradores contra Calígula, Nero e Domiciano. Atacaram a pessoa do tirano sem dirigir os seus golpes contra a autoridade do imperador.
II. A insolência dos exércitos inspirava a Augusto receios de um teor ainda mais alarmante. O desespero dos cidadãos somente podia tentar aquilo que o poder dos soldados era, em qualquer altura, capaz de executar. Como se revelava precária a sua autoridade sobre homens que ele ensinara a violar todos os deveres sociais! Escutara os seus sediciosos clamores; temia os seus momentos mais calmos de reflexão. Uma revolução havia sido comprada com imensas recompensas; mas uma segunda revolução poderia duplicar estas recompensas. As tropas professavam o mais dedicado apego à casa de César; mas os apegos da multidão são caprichosos e inconstantes. Augusto reverteu em seu benefício o que restava de preconceitos romanos nestes espíritos indómitos; reforçou o rigor da disciplina com a sanção da lei; e, ao interpor a majestade do Senado entre o imperador e o exército, exigiu ousadamente a fidelidade devida ao primeiro magistrado da República que ele era.
Durante um longo período de duzentos e vinte anos, desde a instituição deste engenhoso sistema até à morte de Cómodo, os perigos inerentes a um governo militar foram, em grande parte, arredados. Os soldados raramente tiveram a fatal consciência da sua própria força e da fraqueza da autoridade civil, originadora, antes e depois, de tantas calamidades horríveis. Calígula e Domiciano foram assassinados no seu palácio pelos próprios servidores; as convulsões que agitaram Roma na altura da morte do primeiro confinaram-se às muralhas da cidade. Nero, porém, arrastou todo o império na sua ruína. No espaço de dezoito meses, quatro príncipes sucumbiram pelo gládio; e o mundo romano foi abalado pela fúria dos exércitos rivais. Exceptuando esta breve embora violenta erupção de desenfreamento militar, os dois séculos decorridos entre Augusto e Cómodo não assistiram ao derramamento de sangue civil nem foram perturbados por revoluções. O imperador era eleito pela autoridade do Senado e o consentimento dos soldados. As legiões respeitavam o seu juramento de fidelidade; e somente uma análise minuciosa dos anais romanos permite descobrir três revoltas insignificantes, que foram todas elas reprimidas em poucos meses e sem sequer se chegar à contingência da batalha.
Nas monarquias electivas, a vacatura do trono constitui um momento pleno de risco e discórdia. Os imperadores romanos, desejosos de poupar às legiões este intervalo de incerteza e a tentação de uma escolha irregular, investiam o sucessor designado de uma tão larga dose de poder imediato que os tornava capazes, após o falecimento do monarca, de assumir o mando normal sem permitir que o império se desse conta da mudança de amo. Por conseguinte, Augusto, depois de ter visto ruir as suas mais queridas perspectivas devido a mortes prematuras, depositou as suas últimas esperanças em Tibério, obteve os poderes censórios e tribunícios para o seu filho adoptivo e decretou uma lei que investia o futuro príncipe de uma autoridade igual à sua sobre as províncias e os exércitos. E também foi assim que Vespasiano amansou o espírito generoso do seu filho mais velho.
Tito era adorado pelas legiões do Oriente que, sob o seu comando, haviam recentemente concluído a conquista da Judeia. O seu poder era temido e, na medida em que a intemperança da juventude lhe encobria as virtudes, gerou-se a suspeita quanto aos seus desígnios. Em vez de dar ouvidos a tão ignominiosas suspeitas, o prudente monarca associou Tito aos plenos poderes da dignidade imperial; e o filho agradecido portou-se sempre como o humilde e fiel ministro de um pai tão indulgente. O bom senso de Vespasiano levou-o, na realidade, a adoptar todas as medidas susceptíveis de consolidar a sua recente e precária elevação.
O juramento militar e a fidelidade das tropas tinham sido consagrados, pelos hábitos de um século, ao nome e à família dos Césares; e embora esta família somente tivesse subsistido graças ao ritual fictício da adopção, os Romanos ainda respeitaram, na pessoa de Nero, o neto de Germânico e o sucessor directo de Augusto. Os guardas pretorianos só relutantemente e cheios de remorsos tinham sido convencidos a abandonar a causa do tirano. A rápida queda de Galba, Otão e Vitélio ensinou os exércitos a considerar os imperadores como criaturas saídas da sua vontade e instrumentos da sua licenciosidade. A origem de Vespasiano era obscura; o avô fora soldado raso, e o pai um pequeno funcionário da fazenda pública que se elevara ao imperialato já em idade avançada e por mérito próprio; só que as suas qualidades tinham mais utilidade do que brilho e as suas virtudes foram desfavorecidas por uma rígida e até mesmo mesquinha parcimónia. Este príncipe tomou em conta os seus verdadeiros interesses associando a si um filho cuja personalidade mais brilhante e amável poderia desviar as atenções públicas da origem modesta para as futuras glórias da casa Flaviana. Sob o brando governo de Tito, o mundo romano usufruiu de uma felicidade passageira, e a sua adorada recordação fez suportar, durante mais de quinze anos, os vícios do seu irmão Domiciano.
Nerva ainda mal tinha recebido a púrpura das mãos dos assassinos de Domiciano quando descobriu que a sua idade avançada não lhe permitia deter a torrente de distúrbios públicos que se haviam multiplicado sob a longa tirania do antecessor. A sua índole conciliadora foi respeitada pelos bons; mas os romanos degenerados necessitavam de um carácter mais firme, cuja justiça inspirasse terror aos culpados. Embora tivesse vários parentes, dirigiu a sua escolha para um estranho. Adoptou Trajano, que na altura andava pelos quarenta anos e comandava um poderoso exército na Baixa Germânia; e declarou-o de imediato, mediante um decreto do Senado, seu colega e sucessor no império. É verdadeiramente lamentável que, enquanto acabamos por nos cansar do repugnante relato dos crimes e loucuras de Nero, nos vejamos reduzidos a conhecer os actos de Trajano através dos vislumbres de um resumo ou à luz duvidosa de um panegírico. Existe, no entanto, um panegírico que se situa muito para lá da suspeita de lisonja. Decorridos mais de duzentos e cinquenta anos sobre a morte de Trajano, o Senado, ao expandir-se nas costumadas aclamações durante o advento de um novo imperador, desejou que ele conseguisse superar a felicidade de Augusto e a virtude de Trajano.
Não nos é difícil acreditar que o chefe extremoso do seu país hesitasse se devia depositar o poder soberano nas mãos do seu instável e ambíguo parente Adriano. Nos derradeiros momentos de vida, as artes da imperatriz Plotina ou desembaraçaram a indecisão de Trajano, ou fizeram supor ousadamente uma adopção fictícia; torna-se espinhoso apurar a verdade, e Adriano foi tranquilamente reconhecido como legítimo sucessor. Sob o reinado dele e como já se mencionou, o império floresceu num clima de paz e de prosperidade. Adriano promoveu as artes, reformou as leis, reforçou a disciplina militar e visitou pessoalmente todas as províncias. O seu vasto e activo génio abarcava igualmente as visões mais alargadas e os minuciosos pormenores da política civil. No entanto, as paixões dominantes da sua alma eram a curiosidade e a vaidade. Consoante elas prevaleciam e eram atraídas por vários objectos, Adriano revelava-se alternadamente um excelente príncipe, um sofista ridículo e um tirano cioso. O teor geral do seu comportamento merece elogios devido à equidade e moderação que o caracterizou. No entanto, durante os primeiros dias do seu reinado, condenou à morte quatro senadores consulares, seus inimigos pessoais e homens que haviam sido julgados dignos do império; e o torpor de uma penosa doença tornou-o, por fim, irritável e cruel. O Senado hesitava entre elevá-lo à categoria de deus ou apodá-lo de tirano; e as honras decretadas em sua memória só foram concedidas ante as súplicas do piedoso Antonino.
O capricho de Adriano influenciou a sua escolha de um sucessor. Depois de haver pesado no seu espírito vários homens de reconhecido mérito, que ele apreciava e odiava, adoptou Élio Vero, um jovial e voluptuoso nobre recomendado ao amante de Antínoo pela sua invulgar beleza. Mas, enquanto Adriano se regozijava com o seu aplauso pessoal e a aclamação dos soldados, cujo consentimento fora assegurado por um imenso donativo, o novo César era arrebatado dos seus braços por uma morte prematura. Deixou um único filho. Adriano confiou o rapaz à gratidão dos Antoninos. Foi adoptado por Pio; e, por altura da entronização de Marco, investiram-no de uma igual quota-parte de poder soberano. Entre os muitos vícios deste mais jovem Vero, surgia uma virtude: uma respeitosa deferência pelo seu colega mais sábio, ao qual de bom grado abandonou os encargos árduos do império. O imperador filósofo encobriu as suas loucuras, lamentou a sua morte inesperada e lançou um véu de decência sobre a sua memória.
Assim que a paixão de Adriano ficou satisfeita ou desiludida, ele resolveu merecer o reconhecimento da posteridade colocando a mais eminente aptidão no trono romano. O seu olhar arguto descobriu facilmente um senador com cerca de cinquenta anos de idade, sem mácula em todos os aspectos da sua vida; e um jovem com cerca de dezassete anos, cuja precocidade abria risonhas perspectivas de todas as virtudes; o mais velho deles foi declarado filho e sucessor de Adriano, mas na condição de, por seu turno, adoptar imediatamente o mais novo. Os dois Antoninos (pois é deles que agora falamos) governaram o mundo romano durante quarenta e dois anos com o mesmo invariável espírito de sabedoria e virtude. Embora o Pio tivesse dois filhos, preferiu o bem-estar de Roma ao interesse da família, deu a sua filha Faustina em casamento ao jovem Marco, levou o Senado a conceder-lhe os poderes tribunício e proconsular, e, com um nobre desdém, ou antes ignorância do ciúme, associou-o a todas as tarefas do governo. Por outro lado, Marco venerava a personalidade do seu benfeitor, amava-o como a um pai, obedecia-lhe como ao seu soberano e, quando ele cessou de viver, regeu o seu próprio governo segundo o exemplo e as máximas do seu antecessor. Os seus dois reinados unidos são talvez o único período da História em que a felicidade de um grande povo constituiu o único objectivo do governo.
Tito Antonino Pio foi justamente denominado um segundo Numa. O mesmo amor à religião, justiça e paz era a principal característica dos dois príncipes. No entanto, a situação do último abria um campo muito mais largo ao exercício destas virtudes. Numa só conseguiu impedir algumas aldeias vizinhas de saquearem as colheitas umas das outras. Antonino difundiu ordem e tranquilidade pela maior parte da Terra. O seu reinado assinala-se pela rara vantagem de fornecer escasso material histórico; se entendermos por isto, na realidade, pouco mais do que o registo de crimes, loucuras e infortúnios da humanidade. Na vida privada, ele era um indivíduo afável e de bom fundo. A simplicidade nata da sua virtude desconhecia a vaidade ou o fingimento. Gozava com moderação das vantagens da sua fortuna e dos inocentes prazeres da sociedade; e a benevolência da sua alma espelhava-se num temperamento alegre e sereno.
A virtude de Marco Aurélio Antonino era de um tipo mais austero e elaborado. Tratava-se do bem merecido fruto de muitas prelecções eruditas, de muitas leituras pacientes e de muitas elucubrações nocturnas. Aos doze anos adoptou o rígido sistema dos estóicos, que lhe ensinou a submeter o corpo à mente, e as paixões à razão; a considerar a virtude o único bem, o vício o único mal, e todas as coisas exteriores como indiferentes. As suas Meditações, escritas na agitação dos acampamentos militares, chegaram até nós; e foi a ponto de condescender em dar lições de filosofia, de uma forma mais pública do que talvez fosse adequado à modéstia de um sábio ou à dignidade de um imperador.
A sua vida constituiu, no entanto, o mais nobre comentário dos preceitos de Zenão. Foi severo para si próprio, indulgente ante as imperfeições dos outros, justo e beneficente para toda a humanidade. Lamentou que Avídio Cássio, que ateou uma revolta na Síria, o tivesse privado, mediante uma morte voluntária, do prazer de converter um inimigo num amigo; e justificou a sinceridade deste sentimento moderando o zelo do Senado contra os adeptos do traidor. Detestava a guerra, vendo nela a desgraça e a calamidade da natureza humana; mas quando a necessidade de uma defesa justa o forçou a pegar em armas, não hesitou em expor a sua pessoa a oito campanhas invernosas nas margens geladas do Danúbio, cujo rigor acabou por se revelar fatal à sua débil constituição. A sua memória foi venerada por uma posteridade agradecida, e, mais de um século após a sua morte, muitas pessoas conservavam a imagem de Marco Aurélio Antonino entre as das suas divindades domésticas.