Em Évora o jipe já estava preparado para a viagem de quase 200 quilómetros ao longo de montes e ribeiras. Dos oito concelhos alentejanos atribuídos à Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), Portel foi o escolhido para este dia de sol. Missão: inventariar exaustivamente os ninhos de cegonha-branca.
A redução do número de cegonhas-brancas em toda a Europa desde meados dos anos 50, devido à intensificação da agricultura e ao uso de inseticidas, motivou a preocupação com estes animais e a realização de censos a cada dez anos. Em Portugal, depois do censo de Santos Junior em 1958-1959 que contou 3.490 ninhos, o número decresceu até um mínimo de 1.533 em 1984. Graças aos esforços de conservação o número de ninhos tem vindo a subir desde aí.
O sétimo censo internacional de cegonha-branca (sexto nacional) decorre de março a junho deste ano. As equipas das organizações governamentais e não-governamentais de ambiente vão andar pela Europa a contar ninhos de cegonha-branca, ocupados ou desocupados, estejam eles em árvores, rochedos, postes ou outras construções. Em Portugal, o projeto é coordenado pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, que assumirá todos os concelhos que não forem cobertos pelas organizações parceiras – SPEA, QUERCUS, Liga para a Protecção da Natureza e associação A Rocha.
No lugar de copiloto, Julieta Costa, bióloga na SPEA, observa a carta militar e define o percurso – espera conseguir cobrir os limites norte e nordeste do concelho de Portel, a sul de Évora. A conduzir segue Jorge Safara, dono da empresa eborense Birdwatch in Alentejo, e ornitólogo amador que tem colaborado em projetos de conservação da natureza.
Num projeto que não conta com financiamentos oficiais, a SPEA vai assegurar a realização das atividades recorrendo a fundos próprios e à campanha telefónica da Ave do Ano 2014. O trabalho de campo será desenvolvido pela equipa do Programa Terrestre do Departamento de Conservação – Julieta Costa, Domingos Leitão e Hugo Laborda – e alguns voluntários mais experientes.
O jipe segue pelas estradas de terra batida que cortam os campos verdejantes, pontilhados de amarelo e branco. Para facilitar a procura dos ninhos, Julieta Costa fala com residentes e produtores agrícolas, habituados a ver estes animais. A dona da Herdade da Pesena, de nacionalidade holandesa, costuma ver as cegonhas a pescar na ribeira que por ali passa, mas este ano ainda não viu nenhum ninho.
Antes mesmo de chegar à herdade o cheiro do estrume indica o tipo de produção. “Os holandeses têm vacarias e os espanhóis olivais”, comenta Jorge Safara sobre a quantidade de estrangeiros que ocupam as herdades alentejanas. É por um dos novos caminhos dos olivais de produção intensiva que saem da Herdade da Pesena que se continua o percurso.
Pais dedicados
Com a ficha de campo na mão, Julieta Costa toma notas: o ninho está montado num poste de baixa tensão, junto à ribeira, e tem um adulto de pé. Mesmo sem conseguir ver as crias é certo que já terão nascido, caso contrário a progenitora estaria sentada sobre os ovos. Enquanto está no choco a fêmea é alimentada pelo macho, depois os dois progenitores revesam-se na alimentação e cuidados com as crias. Nas horas de maior calor usam o corpo para servir de sombra aos filhotes.
Na primeira fase da campanha, a contagem de ninhos pretende ser tão exaustiva quanto possível por isso o jipe segue pelo trilho ao longo da ribeira da Peseninha, na esperança de encontrá-los escondidos nos ramos dos freixos. As cegonhas-brancas preferem zonas ribeirinhas ou pantanosas de pouca profundidade onde podem encontrar as rãs e lagostins de que se alimentam. Nos campos agrícolas, que também procuram como zonas de alimentação, ajudam a controlar a quantidade de roedores e insetos. Em Portugal, como ocupam quase todo o território, vão-se adaptando às condições que encontram, até a fazer ninhos em rochedos costeiros.
Numa segunda fase serão escolhidas 13 áreas que tenham muitos ninhos ocupados, distribuídas por todo o país, para avaliar o sucesso reprodutor dos casais – escolhem-se 30 ninhos em cada área para monitorizar se os juvenis chegam ou não à idade de voo (a partir dos 50 dias). Mas Julieta Costa revela que o esforço de amostragem é muito diferente de país para país: enquanto a Bélgica só tinha um ninho em 2004 e o Luxemburgo teve o primeiro em 2013, Portugal e Espanha têm milhares deles.
Seguir os ninhos que foram identificados em anos anteriores facilita o trabalho. As cegonhas-brancas que migram para África à procura de alimento durante o inverno regressam sempre ao mesmo ninho e sempre com o mesmo par. Durante o ritual de acasalamento lançam o pescoço para trás e batem com os bicos, dedicando-se à reconstrução do ninho que vai crescendo de ano para ano. “Pode chegar aos 300 quilos”, diz Julieta Costa.
Em 10 anos mais 4400 ninhos
A bióloga conta que o ano em que Portugal entrou para o censo europeu de cegonha-branca (1984) foi também o ano em que esta ave apareceu pela primeira vez na lista de animais ameaçados em Portugal. A recuperação verificada nos últimos anos em Portugal – 7.684 ninhos de cegonha ocupados em 2004, contra 3.302 em 1994 – deixa a equipa com muita expectativa em relação aos resultados do censo deste ano (a publicar em 2015). Esperam que se voltem a ver ninhos no Minho e na Serra de Monchique, onde as cegonhas-brancas foram dadas como localmente extintas.
A alteração da paisagem tem afetado as cegonhas-brancas. A redução do número de árvores poderá ter levado as aves a procurar os postes de eletricidade como suporte para os ninhos. O elevado número de mortes por electrocussão e os danos causados na rede elétrica obrigaram a uma maior preocupação no isolamento das linhas e à criação de sistemas que impedissem as cegonhas de nidificar, ao mesmo tempo que lhes forneciam uma plataforma alternativa.
Mas a verdade é que a nidificação nos postes é benéfica para as árvores. Como as cegonhas ensinam as crias a defecarem para fora dos ninhos, o solo junto à base das árvores fica mais ácido e pode matar a árvore. Mas o zelo dos progenitores vai além do cuidado com o ninho. “O cuidado é tão grande que é muito raro ver uma cria caída do ninho”, diz Julieta Costa.
Nos caminhos que percorre pelos montes alentejanos o ornitólogo Jorge Safara aproveita para observar outras aves e fazer registos das observações. Um grifo sobrevoa o jipe a grande altitude, sendo pouco mais do que um ponto negro no céu azul, enquanto a cegonha-negra aproveita o mesmo voo planado mas muito mais próximo do solo. O abelharuco anima o céu com as suas cores vivas, e o cartaxo, de barrete negro e colar branco, vigia os caminhos pousado numa estaca. Até o mocho-galego saudou os observadores poisado no telhado de uma casa em ruínas.
Ao avistar cegonhas em voo ou a alimentarem-se nos campos a equipa fica alerta para a proximidade de ninhos. O que está em cima da árvore tem três crias e o outro em cima do telhado junto ao rio tem mais uma, e estes fazem parte dos 21 ninhos ocupados, em 11 locais diferentes, encontrados durante o dia. Perto dos choupos o chilrear de dezenas de pardais enche o ambiente – aproveitam o ninhos das cegonhas como suporte para os próprios ninhos, e nos três choupos junto ao rio têm pelo menos sete à disposição.
As cegonhas gostam de viver em grandes colónias e convivem bem com os humanos, aproveitando, inclusivamente, as chaminés das casas ou os telhados das igrejas para, ano após ano, construírem os berços. Para os humanos a presença destes animais tem um simbolismo positivo – de boa sorte e fertilidade. Já dizia a lenda que eram cegonhas de voo calmo e bico forte que traziam os bebés até às casas das famílias.