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As funções que Armando Vara tem agora na prisão de Évora eram antes as de um polícia condenado por agressões graves. Nunca antes este lugar tinha sido ocupado por uma pessoa tão “importante” como um ex-ministro, conta fonte prisional ao Observador. Homem “culto”, “educado” e um “recluso que se diferencia dos outros” pela sua sabedoria, viu ser aceite o pedido que fez à diretora do Estabelecimento Prisional de Évora para trabalhar na biblioteca dos reclusos. Foi lá que começou a passar todos os dias desde dezembro de 2020, menos de um ano depois de começar a cumprir a pena de quatro anos e nove meses por tráfico de influências a que foi condenado no processo Face Oculta.
Os dias, esses, começam às 8h30, hora a que as celas são abertas. Da cela 27 da ala direita, no primeiro piso, sai Armando Vara — das celas do lado, sai um ex-polícia condenado por violação e o cabo António Costa, o militar da GNR considerado o último serial killer português por ter assassinado três raparigas em Santa Comba Dão, em 2005 e 2006. A partir dessa hora e até às 19h00, quando as celas voltam a ser trancadas, o ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD), tal como todos os reclusos, tem uma certa autonomia dentro dos muros da prisão.
Nenhum guarda prisional anda propriamente atrás dele: Vara sabe que há horários e regras a cumprir, por isso, procura evitar as consequências de não o fazer. Nunca criou qualquer problema e quando quer pedir alguma coisa aos guardas prisionais fá-lo com “educação e respeito”. “Se lhe disserem que é para ir para a direita, ele vai. Se é para ir para a esquerda, ele vai”, conta ao Observador um ex-recluso, acrescentando: “Vai devagarinho a levar o barco a bom porto”.
A “postura exemplar” já lhe valeu quatro saídas precárias, mas o pedido de liberdade condicional foi recusado
O “bom porto” é a porta de saída da prisão. É lá que Vara quer chegar. E a chegada poderá acontecer já em fevereiro do próximo ano, altura em que completa dois terços da pena que está a cumprir e poderá ser colocado em liberdade condicional. Mas, para isso, seria preciso que a nova condenação a dois anos de prisão efetiva, em primeira instância — no âmbito da Operação Marquês –, não transitasse em julgado.
Operação Marquês. Armando Vara condenado a dois anos de prisão por branqueamento de capitais
Apesar do obstáculo que se avizinha, a “postura exemplar” já lhe trouxe vantagens. Teve, por exemplo, direito a quatro saídas precárias — a última para estar presente no julgamento da Operação Marquês.
O seu “comportamento adequado” já foi até elogiado num relatório da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais — esse relatório foi também entregue ao juiz de instrução Ivo Rosa, que pediu explicações sobre o comportamento do arguido da Operação Marquês, mas também recluso condenado no âmbito do caso Face Oculta. O relatório, divulgado pela SIC no início de 2020, revelava que não havia “registo de quaisquer incidentes”, até nas saídas precárias para consultas ou tratamentos médicos. “Tem sido dispensada a utilização de algemas”, segundo o relatório.
Apesar do bom comportamento, em abril deste ano, quando completou metade da pena de prisão, Vara pediu para sair em liberdade condicional, mas o Tribunal de Execução de Penas recusou. Ainda assim, não se desmotivou nem perdeu o foco. Quando lhe abrem a porta da cela, Armando Vara continua a ter um “comportamento adequado” e fazer o que é suposto fazer: trata da sua higiene pessoal e depois desce para o rés-do-chão até ao refeitório, aberto das 8h40 às 9h00. Não dispensa o pequeno-almoço. Até porque tem um longo dia de trabalho pela frente. Depois de comer, volta a subir ao primeiro andar até à sala ao fim do corredor onde funciona a biblioteca dos reclusos.
Vara trabalha das 9h00 às 17h00 na biblioteca, mas não abdica dos intervalos para caminhar no pátio
Começa a trabalhar às 9h00 da manhã todos os dias — incluindo aos fins de semana — e termina às 17h00. À exceção da hora de almoço, das 11h30 às 14h00, Vara passa a maioria dos dias fechado numa sala que tem pouco mais de 20 metros quadrados e apenas uma janela com vista para o pátio, apesar das grades. Três das quatro paredes estão cobertas de prateleiras com livros. As funções de Vara resumem-se, em poucas palavras, a entregar aos reclusos os livros que requisitaram e receber os que já acabaram de ler. É também a Vara que compete zelar pela limpeza e higiene da biblioteca — tal como pela da sua cela.
Trabalhador único da biblioteca, as companhias de Vara são os reclusos que aparecerem para entregar e levar livros. Está sozinho e nem sequer tem um guarda prisional à porta a vigiá-lo. “Se não cumprir com as normas instituídas, há de haver consequências. Em ultima instância, ser despedido”, explica ao Observador fonte prisional. Cabe aos Serviços de Educação e Ensino do Estabelecimento Prisional acompanhar o trabalho que Vara faz na biblioteca. Só se houver mau comportamento ou caso se suspeite que se está “a passar qualquer coisa de errado na biblioteca”, é que os guardas prisionais entram em ação — o que, até ao momento, não foi necessário.
Armando Vara já está na cadeia de Évora. Ex-ministro apresentou-se para cumprir 5 anos de prisão
Mas Vara tira os seus intervalos. De manhã, das 9h00 às 11h00, e à tarde, das 14h30 às 16h30, o pátio da prisão é aberto. E o ex-ministro não abdica de fazer uma pausa de manhã e outra no período da tarde — embora nenhum recluso seja obrigado a ir até ao pátio. Vara, de 67 anos, usa aquele espaço para caminhar. “Caminha muito à volta do pátio. Tem as rotinas dele”, conta ao Observador um antigo recluso da prisão de Évora.
Relaciona-se com todos, mas não tem nenhum amigo especial. Gosta de “passar pelos pingos da chuva”
Pouco depois das 16h30 do dia 16 de janeiro, Vara chegou ao Estabelecimento Prisional de Évora para se entregar. Fê-lo um dia antes do fim do prazo dado pela juíza Marta de Carvalho. À chegada, revelou aos jornalistas que o esperavam que sentia “uma certa indignação mal contida” e reafirmou a sua inocência. Tinha pela frente uma pena que considerou “extremamente injusta”: cinco anos de prisão por três crimes de tráfico de influências — que dois meses depois passaram a quatro anos e nove meses, após o Tribunal de Aveiro ter aceitado descontar o período em que esteve sujeito a prisão domiciliária, no âmbito da Operação Marquês.
Ao fim de dois anos e meio de prisão, Vara não tem nenhum amigo recluso em especial. “Relaciona-se com toda a gente, mas não se dá com nenhum em especial”, conta uma fonte prisional ao Observador, lembrando que “ninguém o põe de parte” apesar do cargo que teve. Ainda assim, é bastante discreto. Procura “passar pelos pingos da chuva“, segundo descreve um antigo recluso. “Tem uma postura diferente de Sócrates, que era arrogante. É o dia para a noite de Sócrates”, acrescenta.
Nesses dois anos e meio que passaram, cabe uma pandemia. Fiel cumpridor das normas da prisão de Évora, Vara também passou a cumprir as novas regras impostas na cadeia para o combate à doença. Apesar de ter sido repreendido pelo juiz Rui Coelho por, durante o julgamento da Operação Marquês, usar a máscara sem tapar o nariz, tal nunca aconteceu na prisão. O antigo administrador da CGD já foi até vacinado contra a Covid-19 com as duas doses, ao que apurou o Observador junto de fonte prisional.
Ao fim de um dia de trabalho na biblioteca e de jantar no refeitório, Vara regressa invariavelmente à cela 27 — localizada entre outras duas celas onde está um ex-polícia condenado por violação e o último serial killer português. É ali, num espaço pequeno — tem apenas uma cama, uma sanita, um lavatório, uma mesa, uma cadeira e uma televisão — que o ex-administrador da CGD fica até ao dia seguinte, sabendo que só dali a 13 horas lhe abrem a porta.