Pode nunca ter ouvido falar de Miranda Cowley Heller, mas talvez ela já tenha passado pelos seus dias, de forma indireta. Foi diretora executiva da HBO num período em que o canal de cabo transformado em produtora lançou uma série insuperável de séries: “Os Sopranos”, “The Wire”, “Deadwood” e “Sete Palmos de Terra”. Tudo títulos em que Miranda Cowley Heller teve mão. Antes, foi editora da Cosmopolitan, editora de livros, ghost writer. Depois fez uma espécie de pausa – já saiu da televisão há algum tempo – e, no ano passado, quase com sessenta anos, publicou o primeiro romance, que foi agora lançado em Portugal.
Em O Palácio de Papel, Miranda Cowley Heller construiu ótimas personagens e diálogos, num tom que não pede licença para ser direto. E, por ser assim, deixa o leitor desprotegido. Elle é a protagonista e narradora com quem vivemos duas histórias — ou duas vidas, que são a mesma: um dia contado ao sabor dos acontecimentos, e os cinquenta anos que a levaram até aquele momento.
E “aquele momento” é o de ter de escolher entre o marido, Peter, e o melhor amigo, Jonas, com quem devia ter casado e não casou. Não é a típica história de arrependimento – aliás, não é de todo uma história de arrependimento. É sobretudo uma viagem que tem como ponto de partida um momento de criação de uma – possível – nova vida. Sem julgamentos por parte da escritora, Miranda Cowley Heller apresenta uma personagem imune a juízos e moralismos. A mesma que, num futuro próximo, será também protagonista de uma série da HBO Max. Estivemos à conversa com a escritora via Zoom. Falou-nos a partir da sua casa em Cape Cod, local onde também se desenrola parte da história de O Palácio de Papel.
Por que razão quis contar a história de uma mulher com dois tempos em simultâneo?
A ideia era contar a vida de uma mulher de duas formas, em 24 horas e nos cinquenta anos que a levaram até àquelas 24 horas. Foi como se tivesse saltado de um precipício, para depois voltar a colocá-la no topo desse precipício. Agradava-me a ideia de uma mulher madura a perguntar-se como chegou ali, o que aconteceu, e fazer a viagem até aquele momento. O leitor experiência isso com ela, como chegou, porquê, e porque é que fez aquilo na noite passada, depois de décadas a rejeitar o que acabou por fazer. Também me interessava a ideia da vida que vivemos na cabeça em oposição à vida que vivemos de facto. O que acontece se viveres a vida que fantasias, o que fazes? Qual escolhes, como escolhes, porquê? Adoro lançar questões, não me interessa tanto respondê-las. Queria que se percebesse a complexidade da vida, viajando nessas complexidades com a personagem. Sem julgamento.
No início, do nada, testemunhamos o relato da infidelidade de Elle com Jonas. Porque resolveu tirar o tapete ao leitor logo na terceira página?
Queria começar no fim. E chegar lá pelo início. Esse é o momento crucial que faz com que a vida da personagem mude. Como decidir entre um homem e outro, entre duas vidas, entre dois polos iguais? Mas seja qual for a escolha, o futuro mudará para cima. Queremos viver com remorsos ou não? Quem quero ser no final da minha vida? Mas para nos interrogarmos sobre isso, é preciso começar no fim. Para mim, era importantíssimo que ela já tivesse saltado do precipício, ou seja, depois de ter tido relações com o melhor amigo, com o marido e a mulher dele dentro da casa. E depois percorrer a vida dela até àquela noite.
Era sua intenção que aquelas 24 horas se lessem como mais do que um dia?
Sim, no sentido em que queria que aquele dia fosse a versão de uma vida. Ou seja, tem de ter o ritmo de uma vida, anos, horas. Tanto acontece numa hora, emocionalmente para ela. Ela vive uma vida em 24 horas, tinha de ser muito preenchida.
As cenas de sexo, foram um desafio?
Só Deus sabe! É muito fácil quando não somos nós. A Elle não sou eu, eu sou muito como a Anna [a irmã da protagonista], mas não tenho nada a ver com a Elle. Quando estamos dentro da cabeça e do corpo de uma personagem, vemos tudo pelos olhos dela. Tentamos não envernizar, apenas fazê-lo bem.
Investe cuidado na forma como conta coisas incómodas. Como, por exemplo, a história de abusos sexuais da mãe de Elle.
Importa-me muito a ideia daquilo que não é dito, nunca quebrar aquela regra do “mostra, não contes”. É uma maneira de contar logo a vida da Wallace, pela forma como surge na conversa. Pela falta de contexto… eu conto da mesma forma que a Wallace conta à Elle. Isso diz muito sobre a Wallace, para mim, desde o início. As dinâmicas tonais são importantes para mim, eu penso muito de forma musical, gosto das luzes e das trevas embaterem, ou o limpo e o sujo. Gosto de escrever assim.
E dá-nos as personagens como elas são.
Penso que isso é importante. No caso de Elle, que é uma mulher nos seus 50, queria representá-la como ela é, e não como poderia ser pensada ou como é suposto que seja, signifique isso o que significar. Queria que ela fosse sexual, complicada, que pudesse cometer erros. Não queria atenuar as cenas que são difíceis de falar, ou tabu, mas também não queria explicar demasiado. Há uma referência à menopausa, mas é uma piada. É a vida, é complicada, estas coisas existem. Queria que fosse real, tivesse um tom verdadeiro.
Preocupou-se em retratar a Elle, a mãe e a avó como mulheres de um tempo particular?
Um dos grandes temas do livro é a escolha, as que fazemos, as que não fazemos, como a escolha mais pequena pode mudar tudo. Mas não são só as nossas escolhas, mas as dos nossos pais e avós. As escolhas que a avó dela fez mudaram a pessoa em que a Wallace se tornou. E porque a Wallace é dessa forma… se a Wallace fosse uma mãe diferente, será que a Elle seria assim? Herdamos as escolhas deles, as escolhas amorosas dele. Todas elas são mulheres complicadas, são poderosas e todas elas sobreviveram a coisas muito sombrias. E todas elas são verdadeiras ao seu tempo. A avó é de um tempo em que as mulheres não trabalhavam, em que dependiam dos homens. Parece uma personagem da Jane Austen. Mas isso não a redime, apenas a explica.
Tem uma casa em Cape Cod, onde cresceu. E o seu marido, Bruno Heller, é britânico. Parte da história acontece em Cape Cod e Peter, o marido de Elle, é britânico. Porquê essa proximidade?
A paisagem foi a primeira personagem do livro. Foi aí que comecei. O local, a sua importância. Existir um sentido de lugar. Criar uma personagem com uma ligação à natureza, a forma como se relaciona com ela. Isso foi muito importante para mim. O marido, contudo, é bastante diferente do meu. As culturas que eu conheço, os meus filhos são britânicos, viveram lá parte da infância, eu queria construir um britânico diferente, de outra classe social e totalmente diferente da minha experiência. Foi divertido escrever, escrever um pai, um homem como aquele.
Porque é que só agora escreveu o seu primeiro romance?
Escrevi durante anos, fui uma ghost writer, fui editora, escrevi artigos de revistas, mas queria escrever ficção. Antes tinha escrito poesia, ainda escrevo. Tinha tentado ficção e não era boa. E a minha vida desviou-se disso, trabalhei em televisão – que é algo semelhante a ser editora de livros, pela minha experiência. Quando deixei a HBO, que foi há muito tempo, comecei a escrever. Comecei a escrever este livro há muito tempo, o primeiro capítulo. A minha família está cheia de escritores, de críticos, sou uma perfecionista e não queria falhar. Por isso, comecei a escrever o livro sem dizer a ninguém. E na minha cabeça, não o tinha de mostrar a ninguém.
Mencionou os escritores na sua família. Sentiu essa pressão?
Senti a pressão de… ser grande ou esquecer. Portanto, esqueci durante muito tempo. O meu avô [Malcolm Cowley] escreveu-me uma carta em que dizia “tens de escrever”. Qual foi a minha reação a isso? Não escrevi. O meu avô era um grande editor e poeta, dizia que todos os livros têm de ter um início, um meio e um fim, com o fim discretamente no início. E foi isso que fiz, embora não estivesse a pensar nisso quando escrevi.
Vendeu os direitos do seu livro à HBO e está a escrever a adaptação. Como é estar, agora, do outro lado?
Nunca escrevi argumentos, por isso estou a aprender. É difícil, porque sei o que é bom e o que não é. Sou muito crítica de mim própria. A grande diferença é que uma experiência é colaborativa à força, a outra é colaborativa com o editor, concordando ou não com as notas dele. Mas ninguém me vai forçar a escrever o que ele disse. Não sou despedida do meu próprio livro. Na televisão, toda a gente tem as suas ideias, os seus inputs, que quer colocar dentro da série. E é preciso aceitar as ideias dos outros se quero continuar no projeto. E isso é uma outra versão da escrita. Estou a aprender.
O trouxe dos seus anos para a HBO para a escrita?
Diálogo. A forma como as pessoas falam entre si. O poder dos gestos em oposição às palavras. A importância de não haver exposição. Tudo isso. É preciso desenvolver uma grande imaginação quando se lê um argumento, é um músculo que se desenvolve. Adoro escritores que indicam algo e percebemos que esta pessoa odeia aquela, mas é uma palavra. O James Salter faz isso muito bem.
E é uma grande fã de Jane Austen, certo?
Há pouco tempo reli o Sensibilidade e Bom Senso e é um romance radical. Penso que as pessoas não se apercebem disso, é muito mais do que os outros romances dela. É chocante o que as personagens pensam e dizem. É fascinante reler anos depois e perceber o quão moderno é esse romance.
Como foi trabalhar na chamada era de ouro da televisão?
Foi fabuloso. Fui muito sortuda. Estive no início, quando começámos esse departamento comecei a trabalhar com a Carolyn Strauss, era a minha chefe. Foi um momento de criação único, naquela altura deixávamos os argumentistas fazerem o que queriam e se falhassem, era um problema deles. Eles tinham uma palavra em tudo, desde a publicidade… todos os elementos eram decididos por eles. É por isso que os programas dessa altura são todos tão bons.
Trabalhou em “Os Sopranos”, “Deadwood” e “The Wire”. Mas também em “Sete Palmos de Terra”. Não sente que ficou um pouco esquecida? Por exemplo, no ano passado celebraram-se vinte anos da sua estreia e praticamente ninguém falou nisso. E foi uma série tão importante – e inovadora – naquele tempo.
Era um programa tão bom, tão popular, cheio de nuances. Adorei trabalhar com o Alan Ball. Mas é interessante, os programas mais masculinos, mais musculados, essas séries têm sempre muita atenção. São incríveis, mas havia outros programas incríveis. Talvez seja uma coisa de terem uma audiência mais masculina. Não sei, nunca tinha pensado nisso… talvez “Sete Palmos de Terra” tivesse uma audiência menos masculina, em termos demográficos.
Esperava este sucesso?
Não, de forma alguma. Fiquei surpreendida. Mas o que mais me impressiona são os leitores que me dizem que a história fala para eles. Eu sabia que estava bem escrito, mas não tinha a certeza se as pessoas iriam perceber a minha visão. E isso surpreendeu-me. Porque queremos alcançar essa conexão. E isso é mesmo muito muito gratificante.
E foi fácil vender o seu primeiro romance?
Sim, recebi dez ofertas. Foi submetido numa segunda-feira, e na sexta-feira já tinha dez ofertas. Desde o início que foi uma viagem louca. Foi um sonho, basicamente é isso, foi um sonho.