Esta conversa com Fareed Zakaria teve lugar na manhã do dia 1 de novembro de 2024, mas teve verdadeiramente o seu início no trabalho de tradução que fiz, com Noémia Pizarro, do seu último livro, Era de Revoluções. Da história do liberalismo na Holanda do século XVII até às suas limitações hoje e possibilidade futuras. Do temor do regime de Putin e Xi mais do poder das ideias políticas ocidentais do que do poderio militar ocidental até às complexas ligações entre tecnologia, economia, identidade e políticas são vários os temas da obra aqui discutidos. Naturalmente que as eleições presidenciais nos EUA e os seus potenciais impactos revolucionários no país e no resto do Mundo foram um dos temas principais. O que se segue é a tradução da conversa original em inglês (cuja transcrição também pode ler aqui) com uma revisão mínima, nomeadamente para eliminar redundâncias e marcas de oralidade, tornando o texto mais legível.
Sugiro que comecemos com esta citação do ditador português, Salazar. É de um discurso de maio de 1938 que passo a citar: “Às almas dilaceradas pela dúvida e pelo negativismo do século, procuramos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a Pátria e a sua história” e assim por diante. Acha que isto resume bem o tema central do seu novo livro? Qual é a principal conclusão do livro Era de Revoluções?
Sim. Esse é um ótimo resumo. E o próprio Salazar foi uma espécie de personagem do meu livro. Não o menciono, mas Salazar representava esse tipo de reação à modernidade que dizia que a corrosão da modernidade estava a destruir as estruturas tradicionais da sociedade, a injetar a dúvida, a incerteza “e eu vou restaurar isso”. E ele era um Professor, pensou nisto intelectualmente de uma forma que, por exemplo, Franco não pensou, embora Franco possa ter feito muitas coisas semelhantes. Mas toda a gente que o conheceu [Salazar]… lembro-me… acho que foi o Kissinger que me disse que quando conheceu Salazar ficou impressionado pela sua cortesia, parecia um aristocrata do Velho Mundo europeu, saído de uma era diferente.
Talvez tenha sido George Kennan e não Kissinger, porque Kennan foi o número dois da embaixada americana em Lisboa.
Sim, recordo-me que nas suas memórias Kennan tem uma longa secção sobre tudo isso. Pode ter sido Kennan, mas não me lembro. Salazar deixa o cargo em 1970?
Em 1968, porque teve uma trombose.
Então não terá sido o Kissinger…. Já me lembro-me de quem foi! Foi o George Ball! Era o Secretário de Estado Adjunto durante a Administração Kennedy e foi enviado a Portugal para negociar com Salazar.
Ball tem uma frase magnífica em que diz a Kennedy que Portugal não é governado por um ditador, mas por três: Salazar, o Infante D. Henrique e Vasco da Gama.
Exatamente! Penso que a dinâmica central da Era Moderna e, com isso, refiro-me essencialmente ao século XX, tem sido o avanço real e extraordinário que a tecnologia e a economia impuseram, em particular, às sociedades ocidentais e a reação que isso gerou. Se pensarmos na história da industrialização das décadas de 1870, 1880, 1890, na imigração desse período, ou na reação negativa que surge nas décadas de 1920, 1930, as pessoas esquecem-se muitas vezes da enorme imigração judaica para a Alemanha no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial.
Da Europa de Leste.
Houve pogrons no Leste, na Rússia e começaram a chegar pessoas. Os alemães sentiram-se onerados e, naturalmente, conhecemos a reação. Se pensarmos nisso, ação e reação, progresso e retrocesso, progresso e retrocesso, como sabe, o argumento central do meu livro é que estamos agora a viver a reação negativa a 30 anos de um avanço muito rápido, em termos económicos, tecnológicos e culturais. E, em certo sentido, a reação a que agora assistimos é mais vulgar, mais grosseira, carece de uma espécie de dimensão intelectual, quando no tempo de Salazar havia uma resposta mais intelectualizada e ideológica. E suspeito que isso ainda possa vir a acontecer. A única pessoa que está a articular particularmente bem uma resposta desse tipo nesta altura – não que eu concorde com ele – é Viktor Orbán. Se ouvirmos Orbán, há uma espécie de teoria intelectual por detrás do que ele está a fazer. Os restantes limitam-se a identificar uma oportunidade política e a aproveitá-la.
Um colega que trabalha com a extrema-direita, incluindo a Alt Right ou New Right nos EUA disse-me que havia um certo interesse por Salazar em alguns desses sectores, sectores mais intelectualizados. Mas avançando: este é um livro muito ambicioso. Abrange vários séculos. Porque é que achou que era importante recuar tanto no passado? Porque é que acha que precisamos deste tipo de visão histórica de mais longo prazo? Acha que temos uma abordagem demasiado presentista na política?
Sem dúvida! Sobretudo quando olhamos para o que se está a passar agora, em que parece que todo o mundo político foi virado do avesso e lançado no caos. E pensamos que isto é único ou invulgar e, claro, em algumas das suas particularidades, é mesmo. Mas o que eu tentei mostrar é que este é, na verdade, o padrão da História Moderna do Ocidente, que se caracteriza por estas grandes mudanças. Começo com os holandeses no século XVII. E o que achei mais fascinante foi a revolução económica e tecnológica que resultou na ascensão dos holandeses, mas também, e quase ao mesmo tempo, numa revolução da sua identidade. Porque à medida que os holandeses se tornam mais ricos e mais e mais qualificados, começam a pensar em si próprios de forma diferente. Começam a pensar em si próprios como diferentes. Começam a pensar em si próprios como não fazendo parte do Império dos Habsburgo. Começam a pensar que a qualidade distintiva dos holandeses não é o facto de serem cristãos, mas o facto de serem protestantes. E essa mudança de identidade também ajuda a criar uma nova cultura política. E, depois, há uma reação adversa. Este mesmo processo repete-se, em muitos aspetos, na Revolução Industrial, onde primeiro temos mudanças na economia e na tecnologia. E as pessoas que sempre se consideraram camponesas começam a ver-se como trabalhadores. E como trabalhadores têm uma identidade de classe, e essa identidade de classe começa então a fazê-los exigir direitos. É claro também com a classe média, que se redefine como uma classe de comerciantes. O que achei mais interessante, foi este padrão de mudanças na economia e na tecnologia que criam alguma espécie de revolução de identidade, e depois essa revolução identária produz, em muitos aspetos, uma reação adversa, porque este também é o mundo em que nós estamos agora.
Temos todas estas grandes forças estruturais que mudaram o mundo, mas o resultado disso é levar as pessoas a considerarem-se diferentes. No mundo atual, a sua identidade política presentemente é moldada muito mais pelo sentimento de: “Sou uma mulher!” “Sou homem!” “Sou negro!” “Sou mestiço!” “Sou a minha nacionalidade!” “Sou homossexual!” À medida que as pessoas sobem na hierarquia de necessidades de Maslow, estas identidades pós-materiais moldam muito mais o seu sentido de voto. Podemos ver isso nos padrões de votação. E depois vem a reação a isso. O facto de este processo ter sido tão recorrente e ter começado há tanto tempo, foi algo que me espantou ao pesquisar para o livro, e ajudou-me a perceber o que se passa. Escrevo livros em parte para me educar a mim e não apenas para educar os outros!
Deixa claro que este livro não é uma versão liberal (Whig) do progresso ao longo da história, porque não considera que o progresso seja inevitável, requere muito esforço e pode falhar e gerar reações adversas. Não sei se leu o livro mais recente de Robert Kagan, Rebellion. É uma versão anti-Whig da história norte-americana, centrada no seu iliberalismo e não é o único livro recente com essa abordagem, pois há uma série de variantes dessa releitura da história americana. Acha que talvez tenhamos sobrestimado a dimensão liberal na história americana? Existiu sempre este tipo de elemento mais iliberal que pode ser mobilizado em períodos de crise?
Essa é uma excelente pergunta. Não é só na história americana. Acho que nos esquecemos de que há sempre uma grande contestação que ocorre no seio das sociedades. Talvez seja quase um fenómeno de competição de mercado, em que cada ação produz uma reação. Cada movimento numa direção produz uma reação termostática na outra direção. E isso é intelectualmente verdade e é politicamente verdade. Não creio que seja errado dizer que – se olharmos para os argumentos de Steven Pinker – ao longo do tempo temos, claramente, feito progressos. Temos feito progressos económicos. Temos feito progressos em termos de saúde, mas também progressos políticos e morais. Se pensarmos no fim da escravatura, dos duelos, do feudalismo e de todo esse tipo de práticas. Mas penso que seria um erro não reconhecer que o tipo de sociedade em que vivemos é o resultado não só do progresso nas liberdades, mas também da intensa contestação que daí resulta. E isso tem efeitos muito profundos na constituição das nossas sociedades. Por exemplo, nos Estados Unidos, como sabe, abolimos a escravatura na década de 1860. Mas durante cem anos…
Houve uma enorme reação negativa.
Sim! Foi criada uma variante de quase-escravatura, o chamado sistema Jim Crow [de discriminação legal dos afro-americanos], devido a essa reação negativa. Portugal e Espanha atravessaram um período muito longo de reação ao que se passava na Europa. Só na década de 1970 é que regressam à democracia e a vossa política também foi moldada por essa longa interrupção.
Salazar apresentou-se como uma reação não só à República, uma república muito progressista, mas também à Monarquia Constitucional.
Exatamente! Por isso, em cada um destes casos, penso que é preciso reconhecer que as forças que avançam e as forças que tentam impedi-lo existiram numa espécie de dialética hegeliana. E o que emerge não é simplesmente o liberalismo, mas é a síntese dessa dialética.
Trump não será uma surpresa para quem lê o seu livro. Vai mesmo ao ponto de usar a seguinte citação – que, se os liberais (a esquerda, como diríamos na Europa) não resolverem, por exemplo, o impacto perturbador da imigração descontrolada, “então as pessoas colocarão os fascistas no poder para o fazer”. Como encara a campanha presidencial americana e as eleições, tendo em conta os argumentos do seu livro? Tem algum tipo de previsão? Não tanto em termos do resultado das eleições (se a tiver, será bem-vinda), mas em termos do futuro da política americana e até do trumpismo, quer Trump ganhe ou perca.
Essa é a questão crucial. Ainda bem que colocou esse último ponto. Vejamos: no que diz respeito às eleições, trata-se de um empate estatístico. Qualquer pessoa que diga que pode fazer previsões numa situação destas está a mentir! É a eleição mais renhida da minha vida! É certamente a eleição mais renhida dos últimos 30 anos. Nunca tivemos, não só na sondagem nacional, que é de 48%/48% aproximadamente, mas nos Estados oscilantes decisivos (swing states) resultados que estão todos a 1 ou 2 pontos percentuais uns dos outros, o que, já agora, me parece um pouco suspeito, parece ser uma mentalidade de rebanho [nas sondagens] em que todos se estão a aproximar de um lugar confortável e a proteger-se.
Mas a pergunta realmente fundamental é a última que fez, que é aquela para a qual tenho uma resposta clara. Muitas pessoas acreditam que Trump construiu um culto da personalidade e, portanto, quando ele desaparecer, o Partido Republicano voltará à normalidade. Penso que isso é uma interpretação profundamente errada da situação. É realmente um culto à personalidade – e até o facto de a família dele ter um papel tão proeminente torna isso claro. Mas Trump apercebeu-se do surgimento de uma nova coligação republicana, de uma nova coligação de direita. E embora não a ideologize bem, compreendeu os seus interesses e motivações fundamentais melhor do que ninguém. Compreende-o instintivamente.
Trump não é um bom homem de negócios, mas é um ótimo vendedor. E, como qualquer grande vendedor, conhece o seu público. Ele percebe o que o público quer.
Como lançar um bom slogan de vendas.
Percebeu que a fórmula Reagan – mercados livres, comércio livre – estava morta. Que o Partido Republicano era agora um partido protecionista culturalmente nacionalista, algo reacionário. Por isso vem a ideia de tornar a América grande… de novo! É uma política de nostalgia. Leva-nos ao passado. Este vai ser o futuro da direita na América. Penso que esse é o principal legado pelo qual Trump é responsável – ele destruiu o velho Partido Republicano.
Será que alguém vai aparecer para fornecer uma ideologia a este novo partido? É muito interessante que ele tenha escolhido JD Vance como seu candidato a Vice-Presidente. Porque Vance tem uma ideologia, que é uma ideologia muito pouco liberal. Como sabe, há pessoas como Patrick Deneen e estes filósofos da Nova Direita que são contra o mercado livre, contra o comércio livre, muito a favor da família tradicional e da sociedade tradicional num sentido que não é muito diferente do de Salazar: a ideia de uma restauração da velha ordem, especialmente da velha ordem social.
Uma espécie de nacionalismo católico tradicional e organicista.
Exatamente, exatamente. Não é por acaso que JD Vance se converteu ao catolicismo. Vou dar um exemplo. A genialidade de Trump foi ter percebido que muitos homens negros e hispânicos não se sentiam à vontade no novo Partido Democrata, que celebra os direitos dos transexuais e fala sobre o uso de pronomes e terapias de afirmação do género. E então o que é que ele faz? Convida Hulk Hogan para a Convenção Nacional Republicana para rasgar a sua camisola! Para os vossos leitores: Hulk Hogan é uma espécie de lutador americano (de Wrestling) muito grosseiro e vulgar, que é o epítome de uma espécie de…
Masculinidade à moda antiga!
Exatamente. Aquilo a que a esquerda chamaria masculinidade tóxica. Mas Trump apercebeu-se de que isto seria um símbolo fantástico, um sinal. Tanto um símbolo como um sinal para os jovens negros, para os jovens hispânicos: “Venham para cá! Este partido está aberto a vós. Este partido sente-se confortável com esta versão da masculinidade; não com a versão do Partido Democrata de um tipo de masculinidade afetada, temerosa, sabe: “o marido tem de lavar a loiça”!
Agora, caberá a alguém como Vance ideologizá-la, explicar por que razão, mesmo na era moderna atual, é necessário reconhecer que existem papéis tradicionais de género e como podem ser desempenhados de forma igualitária e coisas desse género. Trump não pode fazer tudo isso. Um deles pode tratar do instinto, e o outro pode fazer ideologia. É, na verdade, uma combinação poderosa.
Esse é um ótimo ponto para avançarmos para as implicações desta mudança nos EUA para o resto do Mundo, incluindo a Europa. Na Era de Revoluções afirma que foi crucial para este tipo de modelo liberal o facto de ter sido adotado pela Inglaterra e pela Grã-Bretanha, que se tornaram a potência global dominante, e depois, claro, pelos EUA. Quais seriam as implicações do peso desta Nova Direita na política norte-americana – quer esteja no governo, quer esteja a influenciar a governação – para este tipo de modelo liberal no resto do Mundo?
Penso que é muito importante, porque o que me fascina neste novo populismo de que estamos a falar é que não está a acontecer apenas nas sociedades industriais avançadas. Grande parte da atratividade de Erdogan na Turquia reside no facto de ele ser antielitista. Era contra a classe intelectual cosmopolita da cidade. Era contra a classe tecnocrática e culta. A sua base de apoio era mais religiosa, mais tradicional. Defendia papéis de género muito mais tradicionais. É uma parte importante desta reação à modernidade. Muito da atratividade de Modi na Índia é um fenómeno muito semelhante.
Ou Bolsonaro no Brasil.
Ou Bolsonaro no Brasil. Falei com o primeiro Ministro dos Negócios Estrangeiros de Bolsonaro [Ernesto Araújo]. E perguntei-lhe: qual é o vosso projeto principal? Disse-me: é a restauração da ideia do Brasil como um país cristão e católico. Essa é a nossa prioridade número um. Economia, tudo o resto é secundário. Achei isso muito revelador. Por isso, penso que se trata de um fenómeno global, porque vivemos numa época em que estas ondas tecnológicas e económicas, estas revoluções de que falo, embora afetem muito mais o Ocidente – porque se trata de países industriais avançados – também afetam toda a gente.
Por exemplo, a Índia é tão afetada pela revolução da informação e pela tecnologia móvel como qualquer outro país, apesar de ser um país muito pobre. E, como resultado, estamos a assistir a uma reação negativa porque estamos a assistir a uma mudança nos papéis dos géneros. E se observarmos os governantes destes países, sejam eles democratas ou ditadores, todos estão muito conscientes do limite do número de mudanças que podem promover e da rapidez com que o podem fazer.
Veja-se o caso da Arábia Saudita, onde o Príncipe Herdeiro [Muhammad bin Salman] é provavelmente o líder mais revolucionário dos últimos 50 anos, e está a promover a dessegregação das mulheres, a deixá-las trabalhar, a deixá-las conduzir, a deixá-las fazer tudo. Mas, ao mesmo tempo, está muito consciente de que pode haver uma reação adversa. Por isso, o governo da Arábia Saudita emitiu uma declaração há apenas alguns meses: todos os homens sauditas que trabalham para o governo devem usar roupas tradicionais sauditas na função pública. Ainda não liberalizaram a questão do álcool. Ainda não liberalizaram a permissão para que outras religiões construam locais de culto. Estão, portanto, a tentar perceber qual o grau de mudança que a sociedade pode aceitar sem desencadear uma reação negativa.
O livro também aborda o que designa de Revolução Geopolítica, cujo principal aspeto é a ascensão da China. Mas qual é o impacto disto em toda esta discussão? Estamos a assistir, por exemplo, a estas eleições contestadas em Moçambique. A China acaba de dizer que a FRELIMO de Daniel Chapo ganhou. Quais são as implicações disto em questões como a promoção da democracia no resto do mundo pelos Estados democráticos ocidentais?
Penso que há uma implicação profunda porque a China e a Rússia perceberam que não estão apenas a contrabalançar geopoliticamente o poder americano ou o poder ocidental. Estão a contrabalançar ideologicamente as ideias liberais, porque penso que ambos perceberam que a ameaça não era apenas o poder militar ocidental. No caso da China, penso que perceberam que na verdade o Ocidente nunca ameaçou a China militarmente. Mas o Ocidente é uma ameaça muito letal para a China, penso eu, mas…
Para o regime chinês…
Para o regime! Penso que se lermos um livro que é essencialmente uma biografia intelectual de Kevin Rudd sobre Xi Jinping [On Xi Jinping: How Xi’s Marxist Nationalism is Shaping China and the World]. O que se percebe é que Xi é um homem obcecado pelo desmembramento da União Soviética. E, para ele, o mais importante foi o facto de Gorbatchev ter sido infetado pelas ideias liberais do Ocidente. Gorbatchev começa então a tentar adotar essas ideias liberais. Isso significa que o Partido Comunista Soviético perde a confiança em si próprio e tudo se desmorona. Portanto, para Xi Jinping o perigo são as ideias liberais ocidentais. No caso de Putin é absolutamente claro que ele sempre considerou as ideias liberais ocidentais como profundamente ameaçadoras. E, nesse contexto, têm de contestar essas ideias. Têm de as contestar, quer seja em Moçambique, quer seja na América Latina, quer seja na Ásia. O jogo tornou-se muito mais contrabalançar o poder ocidental ideologicamente do que meramente contrabalançar o poder ocidental no plano político e militar.
Duas perguntas finais. Uma das principais tendências que identifica é, na verdade, também recorrente: as revoluções económicas assentes em mudanças tecnológicas e energéticas. Como refere, a Revolução Industrial é essencialmente uma revolução tecnológica e energética – e são estas que realmente contam – e estamos agora a meio de uma com potenciais implicações significativas. Menciona, por exemplo, as enormes implicações potenciais da Inteligência Artificial [IA] no plano económico e da segurança, pela sua velocidade e também pela multidimensionalidade dessas mudanças. Como que vê isto? Associado a isto está também o enorme poder do fenómeno que poderíamos designar como dos tecno-barões, como Musk ou Bezos. Houve, por exemplo, esta controvérsia recente sobre o Washington Post e, em geral, existe uma enorme concentração de poder nas mãos destes bilionários tecnológicos.
São duas coisas distintas. O poder destas novas empresas tecnológicas e da nova elite é muito preocupante, porque estamos a regressar a uma espécie de plutocracia. O que me preocupa não é tanto qualquer ato individual. O que me preocupa é o facto de estarmos a construir uma classe de pessoas que vai ser muito mais poderosa do que eram os antigos barões da indústria (robber barons), porque a verdade é que os níveis de riqueza atuais são níveis de riqueza inimagináveis. Se alguém tem um património de 200 mil milhões de dólares, pensem no que isso significa! Significa que, provavelmente, recebe 20 mil milhões de dólares por ano, se estiver a receber um retorno de 10% sobre o seu capital. Portanto, para ele gastar 200 ou 300 milhões de dólares numa eleição não é nada! Poderia gastar 2 biliões de dólares numa eleição, todos os anos! Como é que isto pode não ter um efeito perturbador? Mas penso que as pessoas não se apercebem de quão profunda é a acumulação de riqueza no topo da escala, particularmente na América. Mas não é só na América. Na Índia – onde o PIB per capita é de 3.000 dólares – há dois empresários que têm mais de 100 mil milhões de dólares.
E chegamos à IA, que é mais um elemento neste caminho de revoluções maciças da era da informação que têm efeitos psicológicos profundos. Penso que ainda estamos a tentar lidar com a Revolução da Informação. Porque a Revolução da Informação criou fundamentalmente um mundo em que nos tornamos muito bem-sucedidos se manipularmos palavras, código informático, imagens, linguagem, ideias. Esse é o mundo do sector dos serviços: consultores, banqueiros, advogados, programadores, designers gráficos. Mas quem manipula manualmente coisas físicas – máquinas, lixo, seja o que for – não tem poder de fixar preços, porque esse tipo de trabalho não tem poder de fixação de preços. Agora, é provável que a revolução da IA seja um passo em frente, ou talvez vários passos em frente nesta tendência. Isso leva-nos também à questão do que significa ser humano num mundo em que o computador consegue ser mais inteligente do que nós. Sempre nos valorizámos como pensadores.
Mais uma vez, surge a dimensão da identidade.
Exatamente. Voltamos a esta questão da identidade. A IA é tão revolucionária que considero que nem sequer podemos compreendê-la com os parâmetros a que estamos habituados, uma vez que é a primeira tecnologia na história da humanidade em que, em última análise, não controlamos a tecnologia. A tecnologia controla-nos a nós, ou vai controlar-nos! E não consigo prever o que isso significa para a identidade humana. Mas posso dizer-vos que vai ser mais revolucionário do que todas as revoluções sobre as quais já escrevi.
Uma última pergunta. Tendo em conta tudo isto, qual é o pior cenário e o melhor cenário possível? E o que podemos fazer para avançar no sentido do melhor cenário?
O pior cenário é que o caos seja muito maior do que as pessoas conseguem imaginar e isso produzirá uma reação que será muito, muito, mais dura. O pior cenário de reação é o da década de 1930. A história não se repete, mas vale a pena recordá-la. As pessoas esquecem-se de que a Alemanha era o país mais civilizado do mundo. Em 1933, a Alemanha tinha ganho mais prémios Nobel em Ciências do que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos juntos. A República de Weimar era a democracia liberal mais avançada do mundo em termos da sua Constituição, das suas práticas e dos direitos das minorias. Se, em 1933, tivéssemos de escolher entre ser judeu na Alemanha ou negro na América, não haveria qualquer margem para dúvidas! Um judeu na Alemanha podia ser juiz, podia ser um homem de negócios. O banqueiro de Bismarck era um judeu, von Bleichroeder. Na América, um negro era um cidadão de terceira classe, nem sequer de segunda classe. E, no entanto, tudo isso se desmorona na Alemanha devido a esta profunda reação à incerteza, à desmobilização, à hiperinflação, à Grande Depressão. Não creio que se possa imaginar que ultrapassámos essa fragilidade das sociedades.
Mas o melhor cenário possível é aproveitarmos as enormes vantagens, a riqueza e o progresso que estas tecnologias nos proporcionam e encontrarmos uma forma de as conduzir, respondendo a algumas das preocupações das pessoas que se sentem deixadas para trás. É por isso que digo: não tratem todos os que se preocupam com a imigração como racistas. Não tratem todos os que se preocupam com os direitos dos transexuais e as terapias de afirmação do género como se fossem misóginos ou intolerantes. Estas pessoas estão a tentar navegar um mundo que foi completamente virado do avesso. E querer ir devagar, abordar algumas dessas preocupações, reconhecer que a sociedade não aguenta tantas mudanças – tudo isto são coisas importantes.
Em última análise – como sabe, escrevo sobre isso no final do livro – temos de encontrar uma forma de ser liberais no sentido lato, e não de uma forma que faça as pessoas sentirem que têm um vazio no coração, para que não sintam um vazio interior. Porque o liberalismo não responde às questões últimas do sentido da vida e do objetivo da vida. Não é uma ideologia concebida para gerar admiração e maravilhamento (ou deslumbramento), levar-nos a construir as maiores catedrais do mundo e a escrever as maiores sinfonias do mundo. As pessoas fizeram isso por Deus. Fizeram-no por uma nação. Fizeram-no por causa destes ideais abstratos e intangíveis. Por isso, temos de reconhecer que, quando as pessoas vivem num mundo liberal, sentem este vazio. Têm esta solidão. E se não encontrarmos uma forma de lidar com isso, se não encontrarmos uma forma de reforçar a vida em comunidade, de reforçar os aspetos intangíveis da vida que fazem com que as pessoas sintam que são vistas, que são ouvidas, que há um sentido para a sua existência, confrontar-nos-emos sempre com este problema, que é o facto de esse vazio no coração ser preenchido por forças por vezes muito tenebrosas. Porque mesmo que sejam tenebrosas, mesmo que representem algum ódio ou alguma rejeição, elas respondem a esse apelo. E esse apelo de querer acreditar em algo maior do que nós próprios é muito forte nos seres humanos; de querer acreditar que existe um sentido para a vida. E de querer fazer parte de uma comunidade – de uma tribo de algum tipo.
Muito obrigado, Fareed.
Foi uma conversa fantástica, muito estimulante e profunda. Obrigado.
Fareed Zakaria é o responsável do programa de política global GPS na CNN, é colunista no Washington Post, e um ensaísta de grande sucesso. Zakaria foi nomeado em 2019 um dos “Top 10 Global Thinker of the Last 10 Years” pela revista Foreign Policy. Antes de trabalhar na CNN, Zakaria foi editor da Newsweek International, editor-chefe da Foreign Affairs, colunista da Time entre outras funções. Fareed Zakaria é doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard.
Bruno Cardoso Reis é o responsável pelo podcast de política global Cinco Continentes da Rádio Observador e é comentador regular sobre estes temas na SIC Notícias. Durante o ano letivo de 2024-25 é Professor Convidado FLAD na Universidade de Georgetown. Foi subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL, onde coordena o Doutoramento em História, Defesa e Estudos de Segurança. Bruno Cardoso Reis é doutorado em War Studies pelo King’s College de Londres.