Mal se ouvem as vozes em Do Claro Ao Breu percebe-se o quão especial é. Se conhecer as Sopa de Pedra, conjunto de dez mulheres que se conhecem e cantam juntas há muito tempo, também ficará surpreendido. Até aqui trabalhavam muito em volta de cantares tradicionais portugueses. Faziam-no de forma particular, claro, mas o resultado era muito fiel à ideia inicial. Voz e um pouco de percussão, palavras cantadas com uma vontade de refletir o respetivo significado e a importância. Agora, com Do Claro Ao Breu, percebemos que o que está para trás, incluindo o primeiro álbum, de 2017, Ao Longe Já Se Ouvia, era só o início de uma conversa.
Há um conceito evidente em Do Claro Ao Breu, a dualidade dia/noite. Mas também a confirmação de uma vontade, a de trabalharem com material original – impulsionado por convites que surgiram há quase dez anos – e exercerem uma série de diferentes processos para a gravação das canções. Já não é só sobre como encaixam as vozes, como fazer fluir uma dinâmica polifónica para encontrar novos sons. Em Do Claro Ao Breu, as Sopa de Pedra encontram novas dinâmicas de criação e de como usar a voz para se deslocarem da ideia de tradicional e trabalhar uma visão próxima da música contemporânea e da composição minimal.
Estão mais perto de uns Animal Collective de Sung Tongs e Feels do que de uma ideia de tradicional. Embora, as Sopa de Pedra criem, por diversas vezes, atalhos que vão dar a essa história coletiva e partilhada: não para voltar a ela, mas para surpreender quem ouve. Usam esse talento para abrir algumas das composições, oferecer uma luz inesperada. Em conversa com Inês Campos, uma das dez Sopa, e um dos elementos nucleares na criação de Do Claro Ao Breu, percebe-se como precisaram de amadurecer para aqui chegar. É um segundo álbum que soube acumular experiência e partir para outro lugar. Uma surpresa para explorar a partir de 16 de maio.
[“Fonte”, canção do novo “Do Claro ao Breu”:]
Quando começaram?
Somos amigas de infância, temos um par de irmãs e um trio de primas. Começámos muito pequeninas, mas dizemos que começámos em 2012/2013, porque foi a primeira vez que fomos apresentadas a um público no contexto de concerto. Até aí, era uma festa, não era um concerto.
Eram muito jovens. Como aconteceu?
Uma parte de nós andava no Bando dos Gambozinos – uma associação cultural de ensino pela arte, no Porto —, com direção da Susana Ralha e do Rui Pereira, que acontece serem da família de algumas de nós também. Nessa escola cantámos muitos cantautores portugueses, músicas deles e poemas de escritores portugueses. Aliás, cantámos músicas deles e com eles. Aí começa a história para algumas das Sopa de Pedra. Na verdade, fomo-nos cruzando em vários momentos, umas com as outras. Ou no secundário, ou na faculdade, ou em festivais, algumas desencontradas em espaços de anos e reencontradas quatro anos mais tarde. Mas sempre assim meio que juntas. E a partir da adolescência mais assumidamente juntas a cantar.
E como e quando entra a música tradicional portuguesa?
Já estava connosco há mais tempo. Algumas de nós trabalham nessa área, na recolha de cantares tradicionais. E, além disso, termos conhecido José Mário Branco, Amélia Muge, João Loio, termos conhecido músicas de cantautores portugueses que estavam próximos da raiz da canção tradicional quando éramos muito miúdas. A dada altura, percebemos que já estávamos no meio disto, que já cantávamos esta canções.
E para a Inês, pessoalmente?
Interessa-me porque é a minha língua, porque encontro uma riqueza enorme nas letras. Por sentir um lugar meio contrastante, não conhecemos o contexto que dá origem àquelas músicas, não trabalhámos no campo, mas sentimos o poder de cantar, de juntar. Isso é uma componente forte, através da música descrevem-se as situações da vida quotidiana, que são muitas vezes políticas. Sentimos isso e sentimos também um sentido de comunidade. Eu pertenço, faço parte de um grupo, que é a polifonia, a voz tem essa coisa poderosa e sentimos isso quando vamos cantar ao estrangeiro: as pessoas não percebem as palavras, mas sentimos que estamos todos a vibrar no mesmo lugar.
Essa é uma ideia que funciona muito bem em disco, conseguiram de facto concretizá-la. Como o gravaram, pensando até no contexto pandémico?
A meio deste álbum ouve-se “Ao longe já se ouvia esta canção”. A criação deste material começou em 2013 e é fruto de dois desafios lançados ao mesmo tempo, a ideia de compormos música para um filme [para uma coreografia do José Artur de Campos] e o outro era musicarmos um texto escrito da Daniela Duarte da Oficina Arara. Foram desafios que nos chegaram separados, mas na mesma altura. E vinham dar contexto a algo que queríamos, fazer música original. O esqueleto “Do Claro Ao Breu” foi feito em 2013 e foi agarrado por um núcleo mais pequeno de Sopas, a Mariana Gil, Sara Yasmine, Teresa Campos e eu.
Quando decidiram gravar?
Aconteceu por uma necessidade de irmos para a frente com outra coisa. Esta estava nas nossas mãos há imenso tempo e tínhamos de concretizar. Trabalhámos as ideias primeiro neste grupo menor de quatro pessoas e depois fomos desenvolvendo tudo ao longo dos encontros de trabalho com as dez. Entretanto, aconteceu a pandemia.
E como foi?
Tivemos de inventar uma nova forma de cantarmos e de estarmos em estúdio. O primeiro álbum foi gravado com todas ao mesmo tempo em estúdio. Este aconteceu em parcelas, duas a duas, sendo que algumas não conheciam de imediato o todo sobre o qual estariam a dar voz. Não sabíamos ao que ia soar quando estivesse montado o ramalhete. Foi uma aventura particular, para toda a gente, nesta fase, e no contexto desta música.
Mas correu bem, não foi?
Há uma grande cumplicidade neste grupo, confiança, respeito. E há um sentido real daquilo que é o coletivo, há muito diálogo, muita escuta e procuramos ir ao encontro umas das outras. E ao encontro de somar as ideias umas das outras. Estávamos só desejosas de ver o bicho montado. Conhecemo-nos muito bem, cantamos juntas há muito tempo.
Mesmo sabendo que a ideia base partiu de quatro pessoas, vocês são dez. Como é o vosso processo criativo, como funciona num grupo tão grande?
Neste disco isso é mais assumido porque é uma peça de longa-duração. Esse processo já aconteceu anteriormente, alguém traz uma música e uma proposta de arranjo e vamos fazendo ajustes até encontrar a nossa voz ali no meio. E a voz de cada uma. Isso já acontecia. Mas somam-se sempre todas as opiniões. A ideia de “intérprete” em Sopa de Pedra raramente é isso, não é uma executante, é alguém que vai integrar e personalizar a sua voz no arranjo. Neste caso, foi mais assumidamente assim, porque havia uma vontade de explorar campos diferentes, até do próprio ato de compor, trazer componentes mais visuais, físicas, estados de espírito.
Há pouco mencionou que as primeiras ideias surgiram em 2013. Porque demoraram tanto tempo a transformá-las em canções coesas?
Este álbum existia como uma vontade, mas a música concreta não existia, existia um esqueleto, um esquiço daquilo em que se iria tornar. E agora estamos bastantes contentes. O álbum anterior, o Ao Longe Já Se Ouvia, acaba com uma música da Amélia Muge que é a “À Nave” e que diz que temos da nave o comando, e já vivemos tantas coisas amigas. E acaba num lugar, num interlúdio encantatório, que é uma coisa mais instrumental, e agora sentimos que é o início deste álbum. E este álbum não seria igual se o tivéssemos gravado há 10 anos. Estes 10 anos foram um maturar de tudo o que agora está aqui.
Neste álbum as vozes fazem-me lembrar coisas menos óbvias para o caso, coisas como os Animal Collective. Mas o que senti mais, ao ouvi-lo, foi uma espécie de prisão, em bom, nas mesmas harmonias, como se estivesse num loop. Isto é impressão minha ou intenção vossa?
Acho que ao longo da gravação tivemos muitas vezes a palavra “transe” presente, associada. Tínhamos essa ideia de transe. Para nós, a imagem que temos é a de um grupo de amigos que se encontram, deitam-se no chão da sala, metem o disco a tocar e vão na viagem. Não é tanto uma questão de desenhar um “princípio, meio e fim”, antes um viajar ao longo de uma paisagem. Como se fosse um argumento de cinema, a câmara vem por cima agora, depois faz um zoom, agora precisamos de um plano macro, agora voltamos a afastar. E falávamos assim, com ferramentas de cinema, sobre a música. Essa sensação do loop vem disso, é uma fotografia sobre a qual fizemos zoom, afastámos, vimos de trás, mas é sempre uma fotografia, a mais luminosa e a do breu, e nós a andar ali à volta, numa espécie de visão fractal, de partes dessa mesma imagem.
[as Sopa de Pedra ao vivo no Festival Antena 2 em 2018:]
Há uma história, portanto.
Conseguimos mais uma polifonia espacial do que no passado. Antes era sobretudo algo como “vamos contar esta história e a polifonia são as nossas vozes”. Aqui falamos do espaço físico onde estávamos, se estamos a ser gente, coisa ou vegetal. Recorremos muito a gráficos, partituras, linhas paralelas que depois se afastam, se cruzam. E há esse jogo no design do álbum, uma palavra ao invés de ter um “A”, tem dois “As”. Jogámos com esta lógica paralela ao ato de fazer a música. Queríamos sentir que estávamos a inventar e a criar uma coisa, para depois os papéis se inverterem, para depois ser o próprio álbum a dizer-nos por onde ir a seguir.