A demora na conclusão da auditoria aos negócios internacionais da Santa Casa atrasou a tomada de medidas “de gestão esclarecidas” e fundamentadas e “potenciou o agravamento de eventuais responsabilidades e legais e contratuais, não despiciendas por parte” da instituição.
Num parecer, o conselho de auditoria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) diz que “foram praticados atos para o exterior e extraídas consequências para a instituição com base em resultados preliminares” e considera que o “continuar a perpetuar no tempo situações por esclarecer apenas contribui para investigações ineficazes e ações mediáticas com desgaste da imagem institucional, sem valor acrescentado para um efetivo esclarecimento dos assuntos ou para a realização da justiça”.
A opinião que também pode ser vista como uma crítica à forma como a gestão liderada por Ana Jorge lidou com o tema da auditoria à Santa Casa Global consta do parecer emitido pelo conselho de auditoria à versão corrigida do relatório e contas de 2022 e data de 18 de março deste ano.
A auditoria forense aos negócios internacionais da Santa Casa foi pedida pela então ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, em junho do ano passado, mas só foi contratualizada em agosto. De acordo com o contrato publicado no portal base, a auditoria custou 168,4 mil euros mais IVA à SCML e deveria ter sido concluída a 31 de outubro.
No final de setembro, Ana Jorge foi ao Parlamento onde divulgou alguma informação da auditoria com base em resultados preliminares, nomeadamente procedimentos que não cumpriam as normas em vigor e indícios de irregularidades, e que foram enviados logo para o Ministério Público. Também foram surgindo pontualmente notícias sobre o teor das descobertas, sem que os principais visados tivessem sido ouvidos para dar a sua versão ou explicações, como aliás afirmou publicamente o ex-provedor, Edmundo Martinho.
Auditoria à Santa Casa Global detetou “indícios de irregularidades”, que provedora já enviou à PGR
Esta precipitação merece reparos do órgão de fiscalização da Santa Casa no parecer às contas de 2022, que foram refeitas só este ano porque estiveram à espera dos resultados da auditoria. A correção de contas para refletir a exposição e perdas na operação internacional acabou por ser feita depois de ter sido entregue um relatório da BDO já muito completo a 31 de janeiro deste ano, mas que ainda não era o definitivo. Mas o relatório final da auditoria só chegou à Santa Casa esta quinta-feira, já depois da exoneração da provedora e mesa.
Os trabalhos da auditoria foram-se arrastando no tempo, muito por causa das dificuldades sentidas no terreno para obter documentos e acesso a saldos bancários e atos formais das sociedades que tinham sido criadas no Brasil pela Santa Casa Global com sócios locais para desenvolver os negócios naquele mercado. A Santa Casa teve de contratar advogados no Brasil e nomear um novo representante depois de ter suspendido de funções os dois diretores (e quadros da instituição) que estavam à frente da Santa Casa Global. A interrupção das transferências financeiras para as parcerias no Brasil, com foco nas empresas ligadas ao jogo no Rio de Janeiro, também alimentou a desconfiança dos sócios locais, o que foi mais um obstáculo no acesso à informação.
Sobre estas dificuldades de acesso à informação ou sobre a eventual inexistência da mesma, o conselho de auditoria defende que seria premente a necessidade de serem abertas investigações em países terceiros — em concreto no Brasil — “por forma a uma mais célere, rigorosa e eficaz obtenção de resultados e o apuramento integral de responsabilidades”.
O órgão de fiscalização defende ainda que deve ser apurada responsabilidades por uma “eventual omissão do dever de informação relativa a participadas” aos administradores que transitaram da equipa de Edmundo Martinho. Numa reunião de 12 de março deste ano, os membros da mesa terão manifestado o conhecimento de planos estratégicos e de atividades — onde eram descritos os investimentos previstos para cada ano — mas não é claro se teriam sido informados dos movimentos financeiros associados à internacionalização desenvolvida em 2021 e 2022, como deveria ter acontecido.
É apontado como “aconselhável e relevante conhecer igualmente a informação detida e as opiniões expressas nos últimos anos pelos órgãos previstos nos estatutos da Santa Casa, em particular pelo conselho de jogos, órgão cuja competência está dirigida à atividade de exploração de jogos por outras entidades.
O conselho de auditoria é composto por um representante do Ministério das Finanças que preside ao órgão (Vítor Braz), por uma representante do Ministério da Trabalho e Segurança Social (Ana Lopes Carreira) e por um revisor oficial de contas (António Maria Belém).
BDO não encontrou evidências de que planos de atividades de 2021 e 2022 tenham sido aprovados pela tutela
Segundo informação recolhida pelo Observador, a consultora externa responsável pela auditoria, pedida pela tutela anterior, ao negócio de internacionalização da Santa Casa, também não encontrou — na versão preliminar do documento — evidências de que os planos de atividades e orçamento de 2021 e de 2022 tenham sido aprovados pela tutela. Já o de 2023 teve aprovação a 18 de abril de 2023.
A questão é relevante uma vez que a argumentação do ex-provedor Edmundo Martinho, em cujo mandato se iniciou a internacionalização, era a de que a tutela — então liderada por Ana Mendes Godinho — sabia dos investimentos previstos e em curso pela Santa Casa através dos planos de atividades que foram sendo entregues ao Ministério — e, dizia Edmundo Martinho, por este aprovados.
Esta tese tinha sido contrariada por Ana Mendes Godinho quando ainda era ministra da Segurança Social, que por diversas vezes garantiu que a única operação aprovada por si foi a constituição da sociedade Santa Casa Global. E que, ao contrário do que ficou estabelecido por um despacho por si assinado, não lhe foi pedida a autorização para nenhuma outra operação concreta.
O Observador questionou, a 12 de dezembro, Ana Mendes Godinho sobre se teve conhecimento dos investimentos através dos planos de atividades e orçamentos, mas a então ministra não respondeu diretamente à pergunta. “A auditoria o que determinará é se as condicionantes que incluí e que detalhei no despacho de autorização foram cumpridas”, afirmou, reiterando: “Não autorizei nenhuma operação ou investimento em concreto”.
A auditoria também não terá encontrado evidências de que as transferências efetuadas após a criação da Santa Casa Global tenham tido a autorização da tutela. Também conclui que, tendo sido efetuados compromissos com a banca, incluindo no Brasil através da Santa Casa Global Brasil, os representantes das empresas não tinham poderes suficientes para tal.
Provedora não teria previsto ajuste que compensasse quebra na receita
A exoneração de Ana Jorge e da mesa da SCML foi formalizada a dias de a provedora concluir um ano à frente da instituição. No despacho de exoneração, o Governo acusou Ana Jorge de não ter prestado “informações essenciais ao exercício da tutela”, incluindo o relatório e contas de 2023 (só viria a ser entregue após a exoneração) e sobre a execução orçamental do primeiro trimestre de 2024, bem como a ausência de resposta de “todos os pedidos de informação até agora solicitados”.
Segundo informação recolhida pelo Observador, Ana Jorge transmitiu à ministra da Segurança Social, numa reunião a 12 de abril, que a SCML estaria com uma quebra de receitas face a período homólogo de 10%. Estimativas do Ministério — feitas antes da exoneração e de receber o relatório e contas de 2023 — apontavam para que o valor chegasse aos 14% (29 milhões de euros), pelo que a tutela viu como pouco credível a previsão de receitas dos jogos, de 214 milhões de euros, inscrita no plano de atividades e orçamento de 2024 formulado meses antes. Toda a projeção das contas foi vista com desconfiança pelo Ministério.
O Ministério terá questionado Ana Jorge, em reunião, sobre se previa algum ajustamento ao nível da despesa corrente que pudesse equilibrar a diminuição na receita, mas a resposta terá sido negativa. A “ausência” de um plano de reestruturação financeira, tendo em conta o “desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital”, foi outro motivo apresentado no despacho de exoneração pelo Governo, que acusou Ana Jorge de “atuações gravemente negligentes que afetam a gestão” da instituição.
Numa carta enviada aos trabalhadores, Ana Jorge acusou o Governo de a ter exonerado de “forma rude, sobranceira e caluniosa” e indicou que tinha desenhado um “plano e reestruturação sólido” que queria “implementar”. Para o Governo, esse plano não passava de “medidas avulsas” que não estavam enquadradas num plano de reestruturação propriamente dito.
Ana Jorge tinha um plano de reestruturação para a Santa Casa ou eram apenas “medidas avulsas”?
Outro dos pontos que chamou à atenção do Ministério foi a evolução da despesa com pessoal, como o Observador já explicou, incluindo o aumento da despesa com remunerações dos órgão sociais. Além disso, o plano de atividades e orçamento para este ano prevê uma redução do recurso a serviços externos face à estimativa de execução de 2023, em cerca de seis milhões de euros, mas para a tutela essa evolução foi vista como pouco provável. O Ministério também apontou o facto de as despesas correntes serem superiores às receitas correntes e de a instituição ter vindo a usar os saldos de tesouraria.
A exoneração tem efeitos imediatos, segundo o despacho de exoneração, mas a tutela já fez saber que entende que a mesa tem de manter-se em funções até os sucessores serem nomeados. Perante a informação de que os elementos da mesa cessante se preparavam para abandonar os cargos por entenderem que não estavam obrigados a manter-se em funções — uma vez que os despachos de exoneração produzem efeitos a 30 de abril —, o Ministério da Segurança Social enviou para a Santa Casa um despacho “aclarativo”, com data de 2 de maio, em que determina que a mesa tem de se manter em funções até à tomada de posse dos sucessores.
O Ministério fundamenta o despacho com o normativo que aprovou os estatutos da Santa Casa (não os próprios estatutos), assim como o que diz ser o princípio constitucional da continuidade dos serviços de natureza pública ou com fins público, justificando com a necessidade de haver uma transferência de poderes adequada. O entendimento da tutela é que o artigo 186.º da Constituição, no seu número cinco, é extensível à Santa Casa — “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”, prevê o artigo.
Se a mesa não cumprir, o Ministério avisa que tal consubstancia o crime de abandono de funções previsto no artigo 385.º do Código Penal, segundo o qual “o funcionário que ilegitimamente, com intenção de impedir ou de interromper serviço público, abandonar as suas funções ou negligenciar o seu cumprimento é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Governo avisa administração da Santa Casa que incorre em crime se abandonar funções