Índice
Índice
“Os psicopatas andam na rua e as pessoas podem nem suspeitar”. Foi o psicólogo e professor catedrático da Universidade de Aveiro Carlos Fernandes da Silva que o disse ao Observador mas algo semelhante podia muito bem ter sido dito por algum vizinho da família Turpin. “Como é que ninguém viu nada?”, questionou um deles. É que pessoas como Louise Anna, de 49 anos, e David Allen, de 57, “não precisavam de possuir características visíveis” capazes de levantar suspeitas. São pessoas “sedutoras, enganadoras e manipuladoras”. No fundo, desenvolvem outras competências que mascaram os segredos que escondem. E o que o casal Turpin escondia estava bem mascarado: dentro da sua casa na Califórnia, que ficou conhecida como a “Casa dos Horrores”, mantinham os 13 filhos em cativeiro.
Parte da realidade macabra da família era ofuscada pela imagem que expunham nas redes sociais. Pálidos mas muito sorridentes (e, na maioria das vezes, todos vestidos com roupas iguais). Era este o aspeto que os 13 filhos de Louise e David apresentavam nas fotografias que o casal partilhava frequentemente, numa página do Facebook que tinha em conjunto. Aparentemente felizes, as fotografias davam a “ideia muito americana da família perfeita”, descreve Carlos Poiares, psicólogo e diretor da Escola de Psicologia e Ciências da Vida da Universidade Lusófona. Algumas fotografias retratam viagens que fizeram com os filhos, à Disneyland ou a Las Vegas. A grande maioria foi tirada quando o casal renovou, por três vezes, os seus votos de casamento, na capela de Elvis, em Las Vegas, na presença de todos os filhos.
[Veja aqui as 13 imagens que mais marcaram o caso que ficou conhecido como “casa dos horrores]
As dezenas de fotos partilhadas são uma prova de que estes pais faziam tudo de forma “bem pensada, ponderada e manipulada”, como os caracteriza José Brites, psicólogo e vice-presidente e diretor geral da associação “O Companheiro”. A capa de família feliz resultou pelo menos para os utilizadores. “Só pode ser amor”, lê-se num comentário de um deles a uma das imagens em que o casal aparece ao lado um do outro — um exemplo dos vários comentários com elogios aos filhos e aos pais que as fotografias partilhadas pelo casal têm.
“A sombra deles pode ser aterradora mas o lado social pode ser insuspeito”, concluiu Carlos Fernandes da Silva. De tal forma insuspeito que nem a família, apesar das desconfianças, se apercebeu que as crianças eram torturadas pelos pais. Aliás, alguns dos comentários às fotografias são da irmã de Louise, Elizabeth Jane Robinette Flores. “Amo, amo, amo, a minha irmã e o meu cunhado”, lê-se num deles. Segundo ela, a restante família “nunca foi autorizada a fazer parte da vida deles”. O contacto era estabelecido por telefone “de vez em quando”, por vezes, de ano a ano. Billy Lambert, irmão de Louise, partilha de um testemunho semelhante: “Com os avanços da tecnologia, pedia para falar com os miúdos por Skype mas a Louise tinha sempre uma desculpa, como ‘O computador está avariado’ ou ‘A câmara não está a funcionar'”.
No dia 14 de janeiro, todas as desconfianças ganharam um sentido. A fuga da “casa dos horrores” estava planeada há dois anos mas só se concretizou na madrugada desse domingo, quando dois filhos do casal Turpin conseguiram fugir. O rapaz voltou para trás com medo. A filha de 17 anos seguiu o plano que acabaria por salvar os 12 irmãos: saltou pela janela e alcançou um telemóvel que, apesar de desativado, permitiu-lhe fazer uma chamada de emergência e contar a “história perturbadora” da sua família às autoridades.
O cenário com que as autoridades se depararam, quando entraram na casa com o número 160 da Rua Muir Woods, em Perris, cidade no condado de Riverside, no estado norte-americano da Califórnia, era tão macabro quanto aquele que tinha sido descrito na denúncia. “Várias crianças acorrentadas às suas camas com correntes e cadeados, na escuridão e num ambiente com cheiros nauseabundos“, lia-se no comunicado emitido pelas autoridades do condado de Riverside, no dia seguinte à fuga. Soube-se mais tarde que, muitas vezes, os filhos estavam isolados ou divididos em grupo e colocados em divisões diferentes.
Os 13 filhos do casal Turpin não eram libertados para ir à casa de banho, de acordo com provas recolhidas pelas autoridades. Além disso, só tinham direito a tomar banho uma vez por ano. Assim, a justificação para os “cheiros nauseabundos” estava apresentada. Mas a pergunta que mais se fez foi aquela à qual ainda não foi obtida resposta: porquê? No momento da detenção, os pais foram “incapazes de fornecer imediatamente uma razão lógica que justificasse por que razão os seus filhos estavam reprimidos desta maneira”. As hipóteses são muitas.
“Fanatismo religioso leva a este tipo de ação”. É este o trunfo dos Turpin em tribunal?
“Não há nenhuma pista de terror dentro do número 160”, pode ler-se na reportagem da BBC feita no local. É uma casa pequena numa zona de vivendas espaçosas mas próximas umas das outras. O que levanta a questão: como é que nenhum dos vizinhos se apercebeu do segredo obscuro que a família escondia? Bom, quase nenhum. Houve pelo menos um — Mike, um médico antigo vizinho que não quis revelar o último nome — que viu cenas macabras a acontecer entre a meia-noite e as três da manhã dentro do número 160. É que os filhos dos Turpin dormiam de dia e estavam acordados durante a noite. “Eles marchavam para a frente e para trás durante a noite. A luz estava sempre ligada durante todo o tempo e eles [os pais] faziam as crianças marchar em círculos”, contou ao The Telegraph, acrescentando que todos os 13 “falavam de forma robótica, monótona e ao mesmo tempo”. Mike defende que a família “era como um culto” — uma hipótese que José Brites considera entre aquelas que podem justificar o caso. “O fanatismo religioso leva a este tipo de ação e comportamento”, explica.
A verdade é que os pais de David, James e Betty — que não viam os netos há cerca de quatro ou cinco anos –, admitiram que a família sempre foi considerada uma “boa família cristã” que defendia que “Deus escolheu-os” para terem tantos filhos como tiveram. Carlos Fernandes da Silva aponta que pessoas mais obcecadas com a religião “têm tendência para rituais que para eles fazem sentido”. Têm também tendência “para proteger tudo e mais alguma coisa”. José Brites alerta que a religião pode ser “usada para proteção dos próprios [em tribunal], como forma de os inibir e tornar imputáveis” na medida em que podem alegar que aquela era a forma que arranjaram de proteger os filhos da sociedade.
Quer tenha sido uma forma de proteção ou não, Louise e David nem sequer libertavam os filhos para que fossem à escola, exceto dois deles. A filha de 29 anos andou na escola, desde o jardim de infância ao terceiro ano do ensino primário, no Texas, onde a família viveu até 2010, quando se mudaram para a Califórnia. O filho que tem agora 26 anos — o mais velho dos rapazes — fez três semestres, entre 2014 e 2016, na universidade comunitária de Mt. San Jacinto, na Califórnia. Passou com um “A” — a nota mais alta no sistema de avaliação norte-americano – em todas as disciplinas. Ninguém diria que o aluno que tinha nota máxima a todas as disciplinas era acorrentado e torturado em casa, pelos pais.
“Ele tinha uma das caras mais tristes que vi em anos”, disse Marci Duncker, uma colega de turma do filho de Louise e David. Estava “sempre calado e sozinho” e era um dos últimos a sair da sala quando as aulas acabavam, lembra a colega de turma, revelando que chegou a cumprimentá-lo várias vezes mas o rapaz apenas olhava e não respondia. Com autorização para sair de casa, mesmo com a mãe a esperá-lo no exterior enquanto estava nas aulas, o filho tinha a possibilidade de denunciar o que se passava em casa. Mas não o fez.
Os restantes filhos recebiam (supostamente) educação em casa. Aliás, quando o caso foi descoberto, descobriu-se também que a casa onde a família vivia aparecia no diretório do Departamento de Educação como Sandcastle Day School, uma escola privada com seis estudantes matriculados. David aparecia referenciado como sendo o diretor.
Uma máquina de “produzir filhos” para criar um reality show
“Perguntei-lhe por que carga de água queriam ter mais filhos e ela [Louise Turpin] disse-me que estavam na esperança de ter um reality show“. Quando o irmão de Louise fez esta revelação numa entrevista ao The Sunday People, surgiu mais uma hipótese a integrar a lista de justificações para o caso e uma possível explicação para o facto de vestirem os filhos com roupas iguais. De facto, o casal construía uma imagem digna de reality show através da página do Facebook.
Surgiu também a prova de que Louise e David eram o tipo de pessoas que usam “os outros como instrumentos pessoais e para satisfação pessoal” e que têm “desprezo pela espécie humana”, de acordo com Carlos Poiares, que não tem dúvidas: “Quando se faz isto aos filhos, faz-se a qualquer pessoa”. São 13 filhos mas o casal pensava ter, pelo menos, mais um: “No mês passado [dezembro de 2017], Louise disse-me que ela e David estavam a pensar em ter outro filho”. Ela [Louise] costumava dizer como seriam perfeitos para a televisão e referia várias vezes que seria maior do que o reality show ‘Kate Plus 8′” — um programa norte-americano do canal TLC que acompanha a vida de Kate Gosselin e os seus oito filhos. “Achava que o mundo ia ficar fascinado com as sua vidas”, contou Lambert. “Há seres humanos que não desenvolvem as capacidades que nos caracterizam como espécie, como compaixão e respeito. Quem não as desenvolve pode perfeitamente produzir filhos única e exclusivamente para estarem ao seu dispor“, explica Carlos Fernandes da Silva, alertando que, não tendo a possibilidade de avaliar as pessoas, as suas explicações não passam de uma hipótese. “Eles não queriam saber das crianças. Só deles”, defendeu o irmão de Louise.
É com base neste sonho de “fazer milhões” com um reality show e tornarem-se um “nome conhecido” que se justifica o facto de a família ter-se mudado, em 2010, do Texas para a Califórnia. “Para ficarem mais perto de Hollywood“, revelou o tio das crianças.
O sorriso em tribunal e a estranha vida sexual do casal. Louise também era vítima de David?
A pedido do procurador responsável pelo caso, Mike Hestrin, o juiz assinou uma providência cautelar para proibir os Turpin de contactar com os filhos. “Devem permanecer a, pelo menos, 90 metros de distância de todos eles em qualquer momento, exceto quando presentes a tribunal. Ok? Muito bem. Está a acenar com a cabeça”, disse. O advogado de David, David Macher, mostrou-se até satisfeito: “[A providência cautelar] protege toda a gente, incluindo o meu cliente. Não quero o meu cliente exposto a acusações de ter tentado perseguir ou ameaçar a testemunha“. Já o advogado de Louise não comentou a ordem do juiz. Mas a reação que mais suscitou polémica foi a de Louise. No momento em que foram informados da decisão, Louise olhou para o marido e sorriu. Porquê?
É possível que esta seja a pergunta relacionada com este caso que tem mais respostas (ainda que hipotéticas) possíveis. Explica Carlos Poiares que o sorriso pode, numa análise mais superficial, ter sido motivado pelo “nível de ansiedade em que estava” mas também por ser uma medida que Louise “já previa”. Pode também ser, de acordo com Carlos Fernandes da Silva, um “sorriso irónico”, como se quisesse dizer ao marido “Eles não nos entendem”, caso existam crenças. Mas Carlos Poiares chama a atenção para um aspeto: “Quando há crimes deste género, parece que são feitos em parelha mas um pode bem ser vítima do outro”. Tal significa que Louise pode também ela ser vítima de David e, com o sorriso, “estava a mostrar-lhe prazer”. “Pode haver uma dominação forte do pai, com que a mãe teve de alinhar. Perante isto, tendo visto o fim das atividades macabras, sentiu uma libertação e mostrou um sorriso de satisfação pelo pai ter ficado impedido de contactar com os filhos” explica Carlos Fernandes da Silva. O irmão de Louise defendeu que David “controlava tudo” e a irmã Louise “deixou-se ficar e foi indo na onda dele”, disse, não deixando de considerar que “são ambos culpados pelo que aconteceu”. David está acusado de um “ato obsceno a uma das crianças” por ter tocado “inapropriadamente” uma das filhas menores.
[Veja no vídeo o estranho sorriso da mãe quando soube que seria impedida de contactar os 13 filhos]
Recordemos, então, a história do casal. Louise fugiu de casa quando tinha 16 anos para casar com David, que na altura tinha mais oito anos do que ela. “Ele claramente tinha um desejo por estudantes. Talvez ainda o tenha. É simplesmente perverso. Ele é perverso”. Quem o acusa de ser “perverso” é o tio das crianças, Lambert. Mas histórias contadas por outros familiares podem sugeri-lo. Por exemplo, Flores guarda memórias macabras do tempo em que viveu durante uns meses com a irmã e com o cunhado, David, enquanto andava na universidade, no Texas. Nessa altura, o casal só tinha quatro filhos. “Ele [David] fez coisas que me deixaram desconfortável. Se eu ia tomar banho, ele ia lá e via-me a tomar banho. Era como se fosse uma piada. Mas ele nunca me tocou, nem nada”, contou.
Outra história contada por outra irmã, Robinette, coloca a questão de, caso Louise fosse mesmo vítima de David, os abusos poderem também ter sido sexuais. Numa entrevista ao “The Today Show” do canal norte-americano NBC, Robinette revelou que David levou a mulher até Hunstville, no estado norte-americano do Alabama, para que pudessem conhecer um homem que tinha conhecido online a para Louise “dormir com ele”. David não só “não se importava” como foi ele que levou a mulher até ao motel. O encontro com o homem do Alabama aconteceu “perto do aniversário dos 40 anos” de Louise, “por volta de 2009 ou 2010”. Foi a própria Louise que contou a história à irmã explicando-lhe que os filhos mais velhos ficavam a tomar conta dos mais novos para que ela e o marido pudessem “cometer as loucuras da juventude que não cometeram”. “O que torna tudo pior e mais estranho”, conta Robinette, é que no dia em que fez um ano que Louise se tinha encontrado com o homem de Alabama, “David levou-a ao mesmo sítio, exatamente ao mesmo quarto de hotel, exatamente à mesma cama onde ela dormiu com esse homem, para dormir com ela“.
Mãe abusada sexualmente em criança virou mãe abusadora? O descontrolo dos pais com “mente distorcida”
David e Louise começaram a abusar dos filhos no Texas, embora o casal só esteja a ser acusado por atos que aconteceram desde 2010. Nessa altura, Lambert costumava visitar os sobrinhos. E recordou: “A educação deles era muito estranha, muito ao estilo militar”. Tal como testemunhos de outros familiares, Lambert também contou que as crianças não estavam “autorizadas a misturarem-se com outras crianças”. “Tudo o que faziam tinha a sua rotina”, revelou, acrescentando que “qualquer sinal de desobediência e eram punidos”. De acordo com o procurador, tudo “começou com casos de negligência” como forma de castigo, em que as crianças eram amarradas com cordas. A casa onde viveram, em Rio Vista, em Fort Worth, no Texas, ainda guarda os vestígios do início dos abusos. “Tinha fezes esmagadas nas paredes. Na sala de estar e em todos os quartos havia um odor terrível. Havia lixo por todo o lado e buracos nas paredes”, descreveu Nellie Baldwin, agora com 78 anos, que comprou a casa e teve de assinar um termo de responsabilidade porque o banco não queria responsabilizar-se se ela ou algum familiar se sentisse mal lá dentro.
[Veja aqui as imagens do interior da primeira “casa dos horrores”, no Texas]
Segundo o procurador, só mais tarde — não se sabe quando — os 13 filhos passaram a ser presos com correntes e cadeados. Os pais começaram a ser mais severos até ao ponto de as crianças serem torturadas, agredidas e estranguladas. Os castigos podiam “durar semanas ou meses”. Bastava que uma criança estivesse a lavar as mãos e deixasse a água passar dos pulsos, que era acusada de estar a brincar com a água e, por isso, castigada. José Brites vê uma relação entre o “modelo educacional mais rígido” e a questão de “serem texanos, de uma América profunda — o que tem um impacto muito grande”. Carlos Fernandes da Silva não exclui também a hipótese de terem “surgido dinâmicas em que os filhos tenham sido mais resistentes e desafiadores, fazendo aumentar o investimento deles”. Ainda assim, considera que estas ações são de educadores já “com mente distorcida”, que os leva a “comportamentos disfuncionais que não entendem como tal porque é o modelo que têm”.
É que há um facto que não pode passar despercebido: Louise foi abusada por “um membro da família muito, muito, muito chegado“, segundo revelou a irmã, Robinette. Justifica? “Não”, defende Carlos Fernandes da Silva. “Mas pode explicar”, acrescenta, explicando: “São pessoas que sofrem de tal maneira que têm de desenvolver comportamentos psicopatados para sobreviver e aprender a manipular”. Quando uma pessoa é abusada pelos pais, fica com “uma visão distorcida da parentalidade”, explica Carlos Poiares. “Se foi vítima, é muito provável — embora não exista uma causa-efeito — que passe a assumir na vida adulta o papel de agressora”, explica José Brites. Isto porque está “muito relacionado com o modelo educacional que aprendem”.
Há pessoas abusadas em crianças que não desenvolvem comportamentos destes e, muitas vezes, desenvolvem até comportamentos compensatórios. O que é que faz com que umas pessoas se tornem agressoras e outras não? “Depende da prática educativa que têm”, começa por explicar José Brites: “A uma determinada fase, começamos a ter outros modelos e vão-nos dando outras aprendizagens”. Ao longo da nossa vida, podemos “fazer a nossa escolha” de modelo educacional, “que é adaptativo”. “Vou escolher o que é mais aceitável. Se escolho o pior, tenho uma perturbação de saúde mental”. A pergunta é: Louise fez a escolha e continuou vítima do marido ou manteve-se fiel ao modelo educacional que aprendeu em criança ?
A filha de 17 anos parecia ter 10. A falta de dinheiro desmoronou a família?
Dada a “aparência frágil” e os sinais de subnutrição, as autoridades assumiram que todos eram menores de idade. Mas, na realidade, sete deles já não o eram. Robinette já tinha reconhecido estes sinais nos sobrinhos e várias vezes confrontou a mãe deles. “Meu Deus, eles estão tão magros”, costumava dizer. “Ela [Louise] ria-se” e apresentava até uma justificação: “Bem, o David é tão alto e magro. Eles vão ser como ele”. A filha de 29 anos — a mais velha de todos os 13 — pesava 37 quilos. A filha de 17 anos que denunciou o caso “parecia ter 10” devido ao seu “tamanho pequeno” e “aparência magra”. “Uma das crianças de 12 anos tinha o peso de uma de 7”, revelou o procurador responsável pelo caso. A filha mais nova tinha apenas dois anos e era a única com o peso certo para a idade. Não é então estranho que, quando a polícia chegou à casa, deu alimentos e bebidas às vítimas, que disseram “estar famintas”. É que os pais compravam comida, até mesmo tartes, deixavam nas bancadas para as crianças verem mas não permitiam que comessem. O mesmo acontecia com os brinquedos: eram mantidos dentro das embalagens e as crianças não estavam autorizadas a brincar.
A página do Facebook que o casal tinha em conjunto não sugere que tivesse dificuldades económicas (mas também não sugere que mantinha os 13 filhos acorrentados a camas e móveis). Há fotografias da família em viagens. As roupas são sempre diferentes, de fotografia em fotografia, e parecem novas. Mesmo os pais aparecem vestidos de noivos, por três vezes, na renovação de votos na capela de Elvis — cujo preço do pacote para renovação dos votos custa cerca de 223 euros.
Nada indicava a hipótese de que os filhos se encontravam naquele estado por falta de dinheiro da família mas a verdade é que o casal declarou insolvência duas vezes, de acordo com o advogado do casal, Ivan Trahan — que os representou em 2011, quando declararam estarem falidos pela segunda vez. A última insolvência aconteceu numa altura em que David era engenheiro na Northrop Grumman, outra empresa de aeronáutica e tecnologia de defesa. Louise, a mãe, não trabalhava. Na altura, diz o advogado, o pai era “relativamente bem pago”. Ganhava cerca de 114 mil euros por ano, segundo documentos a que o jornal The Los Angeles Times teve acesso. Mas as despesas também eram elevadas e excediam os rendimentos em cerca de 800 euros. “Pareciam pessoas muito normais que tiveram problemas financeiros“, disse o advogado, que também nunca desconfiou de nada.
Na altura da segunda insolvência, o casal já vivia no número 160 da Rua Muir Woods, em Perris, na Califórnia. Até 2010, a família viveu em Rio Vista, em Fort Worth, no estado norte-americano do Texas — embora não se saiba a localização exata. Sabe-se que, até essa data, David trabalhou na Lockheed Martin, uma empresa de aeronáutica e tecnologia de defesa que resultou da fusão da Lockheed Corporation e da Martin Marietta, segundo um porta-voz da empresa em declarações ao mesmo jornal.
Filhos não tinham “noção sobre como o mundo funciona”. Alguma vez vão ter?
Quando as autoridades chegaram à casa para resgatar as crianças, muitas delas não sabiam o que era um polícia. Os 13 filhos já não iam ao médico há mais de quatro anos e nunca tinham ido a um dentista. A jovem de 17 anos que conseguiu fugir revelou que não sabia o que eram comprimidos. Alguns não sabem o que é uma escova de dentes. Não tinham acesso a televisão nem a rádio, mas tinham direito a ter cadernos onde escreviam e desabafavam — centenas de cadernos que foram apreendidos e que, certamente, trarão novas revelações para o caso. “Não tinham qualquer tipo de noção sobre como o mundo funciona”, revelou Mark Uffer, diretor executivo do centro médico regional de Corona. Alguma vez terão, em especial os que estavam em cativeiro há mais tempo? “Depende da vivência com que cada um lidou com a situação”, explica José Brites, garantindo que, “do ponto de vista terapêutico, é possível que os adultos e crianças sejam adaptados à sociedade”. “É preciso um trabalho psicoterapêutico muito bom para os 13 filhos não se tornarem adultos agressivos. É preciso avaliar se é uma situação traumática e a forma como cada um deles vivenciou a situação”, explicou.
Os 13 filhos podem “sentir vergonha ou medo” ao ponto de defenderem os pais. Há outra questão para a qual o psicólogo alerta, que é preciso ter em atenção: “A irmã que denunciou pode passar a ser o lado negro da família” por ter denunciado os pais e ser a responsável por agora estarem afastados dos pais. “Perderam os pais. Quer queiramos, quer não, são os pais”, disse José Brites.
Assim que foram libertados, os 13 filhos do casal foram internados em dois hospitais diferentes: os seis menores foram levados para um centro médico do Riverside University Hospital System, em Moreno Valley, e os sete filhos adultos para o centro médico regional de Corona, ambos na Califórnia. Mesmo tendo pedido aos assistentes sociais para ficarem juntos, os sete filhos adultos foram para um centro de assistência estatal. Os seis menores foram divididos em duas casas de acolhimento. Os médicos estão a integrar a música no seu tratamento e estão a expô-los a tudo, “dos livros do Harry Potter aos iPads”, de acordo com os procuradores, em entrevista à CBS News.
O casal foi detido de imediato e ficou em prisão preventiva, sujeitos a uma fiança de cerca de 10 milhões de euros para cada um. O casal foi acusado de 12 crimes de tortura, sete de abuso contra adultos dependentes, seis de abuso de menores e 12 de falso sequestro — uma vez que, segundo Hestrin, a filha de 2 anos não foi torturada. David, o pai das crianças, está ainda acusado de um crime de “ato obsceno a uma das crianças”. Na primeira audiência, em tribunal, David e Louise declararam-se inocentes de todas as acusações. Numa nova audiência, no dia 23 de fevereiro, o casal foi acusado de mais três crimes de abuso de menores. A mãe foi ainda acusada de um crime adicional de agressão. Louise e David estão sujeitos a uma pena que pode ir “até 94 anos de prisão”. Ou mais. É que a determinada altura foi admitida a possibilidade de o casal ter tido um ou mais filhos que morreram e de terem escondido os corpos. As autoridades chegaram a deliberar sobre a possibilidade de enviar cães pisteiros, em busca de corpos.