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Quem abrisse o canal de Telegram de Jair Bolsonaro ao início da noite deste domingo, sem ter visto previamente as notícias, não adivinharia o que acontecera em Brasília ao longo do dia. Investimento público, Auxílio Brasil e performance do real eram os temas abordados pelo ex-Presidente longas horas depois de centenas de manifestantes invadirem os edifícios-símbolo do poder em Brasília. Sobre o ataque de manifestantes que em seu nome invadiram os edifícios dos poderes legislativo, executivo e judicial do Brasil, nem uma palavra.
Meia hora depois das publicações no Telegram — e várias horas depois da invasão —, Bolsonaro comentou finalmente a situação em Brasília. A condenação foi tímida: “Depradações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje”, escreveu, “fogem à regra”, mas são comparavéis, aos olhos do antigo Presidente do Brasil, com outros atos “praticados pela esquerda em 2013 e 2017”. O ex-Presidente disse ainda repudiar “as acusações sem provas” que o ligam às manifestações e disse sempre ter estado “dentro das quatro linhas da Constituição”. Três simples tweets, mais sucintos do que as três publicações no Telegram em que elogiou a ação passada do seu governo.
– Manifestações pacíficas, na forma da lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) January 9, 2023
Bolsonaro não reivindicou a ideia da invasão à Praça dos Três Poderes, mas a proximidade ideológica dos manifestantes — que reivindicavam o afastamento de um governo “ladrão” de Lula da Silva, que consideram ter sido eleito por “fraude” — ao bolsonarismo é clara. O silêncio do ex-Presidente tem sido, aliás, a norma, num último mês em que se repetiram as manifestações contra a tomada de posse de Lula; o jornal Estado de S. Paulo, no seu editorial, afirmou mesmo que as “meias palavras” e “insinuações” de Bolsonaro contribuíram para a “escalada de violência que culminou na tentativa de golpe ocorrida em Brasília”.
Moraes posiciona-se para investigar “financiadores” e “instigadores”, Lula ataca Bolsonaro e destaca “incompetência” ou “má fé” da Polícia Militar
A gravidade do que ocorreu este domingo em Brasília, a fazer lembrar a invasão ao Capitólio norte-americano a 6 de janeiro de 2021, determina que haverá um antes e um depois deste dia 8 de janeiro de 2023.
Alexandre de Moraes, juiz presidente do Tribunal Superior Eleitoral, já deixou claro que a investigação judicial irá até às últimas consequências: “Os desprezíveis ataques terroristas à Democracia e às Instituições Republicanas serão responsabilizados, assim como os financiadores, instigadores, anteriores e atuais agentes públicos que continuam na ilícita conduta dos atos antidemocráticos”, escreveu o juiz odiado pelos bolsonaristas pelas investigações prévias ao ex-Presidente — tão odiado que a porta de um armário do seu gabinete foi arrancada pelos manifestantes este domingo e passeada pela Praça dos Três Poderes.
Os desprezíveis ataques terroristas à Democracia e às Instituições Republicanas serão responsabilizados, assim como os financiadores, instigadores, anteriores e atuais agentes públicos que continuam na ilícita conduta dos atos antidemocráticos. O Judiciário não faltará ao Brasil!
— Alexandre de Moraes (@alexandre) January 8, 2023
Uma garantia que também foi deixada pelo Presidente Lula da Silva no seu discurso de reação aos acontecimentos, onde decretou o controlo do Distrito Federal (Brasília) pelos poderes federais até ao fim do mês e apontou o dedo à Polícia Militar, depois de vários dos seus agentes terem sido captados a fotografar os manifestantes e a comprar água de côco perante a visão dos manifestantes a invadirem os edifícios estatais: “Incompetência, má vontade e má fé”, disse o chefe de Estado.
????AGORA: Enquanto bolsonaristas invadem o Congresso Nacional, Planalto e STF, policiais de Brasília tiram foto e conversam com os golpistas.
pic.twitter.com/QXEXBufdHW— CHOQUEI (@choquei) January 8, 2023
Mas as palavras mais duras de Lula foram reservadas para Jair Bolsonaro, que foi diretamente responsabilizado pelo Presidente. “A culpa também é dele”, disse, apelidando o ex-Presidente de “genocida”. “Todos sabem que tem vários discursos do ex-Presidente da República estimulando isso”, acusou, lembrando que Bolsonaro recusou ir à sua tomada de posse para lhe passar a faixa presidencial. Um discurso que não afina pelo tom de “pacificação” e “união” que Lula — que tomou posse há apenas uma semana — tinha prometido para o país.
Os aliados de Lula deixaram claro qual é a tese do governo sobre o que se passou em Brasília, com o senador Randolfe Rodrigues e a presidente do PT, Gleisi Hoffman, a abordarem rapidamente o Procurador-Geral da República. Ao cair da noite, a Advocacia Geral da União pedia ao Supremo Tribunal a detenção em flagrante delito de 30 pessoas, entre elas Anderson Torres, que até horas antes ocupava o cargo de secretário da Segurança do Distrito Federal (Brasília).
Anderson pronunciou-se inicialmente contra a invasão e prometeu mobilização do efetivo policial, mas, à medida que as horas passavam, a situação de caos continuava na Praça dos Três Poderes — com manifestantes a destruírem património e a passearem-se descontraidamente dentro dos três edifícios, chegando a fazer da tribuna do Senado escorrega. Não tardou a ser demitido pelo governador, Ibaneis Rocha.
????AGORA: Bolsonaristas invadem o plenário do Senado Federal e depredam o patrimônio público. pic.twitter.com/G34PE0ZNNA
— CHOQUEI (@choquei) January 8, 2023
O papel do bolsonarista Anderson Torres (que está nos EUA) e o passa-culpas entre governo e governador
As dúvidas sobre a atuação de Torres adensavam-se, com vários deputados a pedirem o seu afastamento. O ex-secretário da Segurança é um conhecido bolsonarista, foi ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e, segundo a imprensa brasileira, está atualmente na Flórida (EUA), precisamente o local onde se encontra neste momento o ex-Presidente. O próprio, porém, negou qualquer articulação com Bolsonaro, em declarações à Folha de S. Paulo este domingo: “Não vim para os EUA para encontrar Bolsonaro. Não me encontrei com ele em nenhum momento. Estou de férias com a minha família. Não houve nenhuma trama para que isso ocorresse.”
Outro possível responsável é o próprio governador de Brasília, Ibaneis Rocha, outro aliado de Bolsonaro. Se inicialmente apontou o dedo ao poder federal — “o Exército devia ter acabado com o acampamento e não o fez” —, Rocha acabou por fazer um vídeo onde garantiu que é “um democrata”, condenou a invasão e pediu desculpa a Lula da Silva, à presidente do Supremo Rosa Weber e aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado.
Contudo, o governador aproveitou a declaração para co-responsabilizar o ministro da Justiça, Flávio Dino: “Conversámos de ontem para hoje por várias vezes e não acreditávamos em momento nenhum que essas manifestações tomariam as proporções que tomaram”, afirmou. Horas depois, Dino reagia apontando o dedo exclusivamente a Rocha: “O governador ao pedir desculpas está reconhecendo que algo deu errado no planeamento”.
A dança do passa-culpas continuará certamente nos próximos dias, à medida que os passos das últimas semanas são escrutinados ao pormenor. As movimentações bolsonaristas já decorriam antes da tomada de posse de Lula, tendo até havido um ataque abortado na véspera de Natal. O ministro da Justiça, Flávio Dino, havia-se desdobrado em declarações, dizendo que não serão tolerados atos violentos, na tomada de posse ou depois dela.
Mas os sinais de dissonância por parte das autoridades eram emitidos não apenas pelos responsáveis do Distrito Federal, que permitiam a continuação dos acampamentos de manifestantes que pediam um golpe militar. O próprio José Múcio Monteiro, ministro da Defesa de Lula, — um homem que já foi elogiado pelo próprio Bolsonaro — classificou as ações como uma “manifestação da democracia” e confessou até ter familiares e amigos que faziam parte dos protestos. O que significa que o governo de Lula da Silva ou não considerava a ameaça séria ou tinha diferentes entendimentos dentro do seu executivo.
Agora, depois de invadidos os edifícios dos Três Poderes, a situação é outra. Não apenas Brasília é agora controlada pelas autoridades federais, como o próprio Exército está em prontidão. E, segundo a Folha, Múcio reuniu-se com o comandante do Exército Júlio César de Arruda ainda na tarde deste domingo.
O silêncio e o distanciamento dos bolsonaristas — e dos pós-bolsonaristas
Alguns dos bolsonaristas mais radicais aplaudem o envolvimento do Exército, crentes de que isso pode abrir a porta ao golpe militar que tanto desejam para por fim ao governo de Lula — mas não há qualquer sinal neste momento de que os militares tenham algum desejo de tomar o poder.
Esse é, aliás, um dos sintomas de que a revolução desejada pelos invasores está longe de ser acompanhada pela maioria. Para além da condenação por parte de todos os principais responsáveis de órgãos de soberania do país — incluindo Arthur Lira (presidente da Câmara dos Deputados) e Rodrigo Pacheco (presidente do Senado), longe de poderem ser considerados aliados de Lula —, as figuras mais relevantes do bolsonarismo permaneciam, até meio da noite de domingo, em silêncio.
Isso mesmo notou a Globo, dizendo que não só os filhos de Bolsonaro (o senador Flávio, o deputado Eduardo e o vereador Carlos) não se tinham pronunciado durante o dia, como também alguns dos seus aliados mais relevantes como os deputados Nikolas Ferreira, Bia Kicis, Major Vítor Hugo e Ricardo Salles se mantinham calados.
Sinal ainda mais visível de que o bolsonarismo pode não manter a frente unida perante a escalada de violência é o facto de algumas figuras ligadas ao movimento do antigo Presidente terem criticado diretamente a invasão. Foi o caso do presidente do Partido Liberal, a que pertence Bolsonaro. “Esse movimento de Brasília hoje é uma vergonha para todos nós. Não representa o nosso partido, não representa Bolsonaro”, disse Valdemar Costa Neto.
Foi também o caso de Tarcísio de Freitas, o governador de São Paulo que foi eleito à boleia de Bolsonaro, mas que tem tentado correr em pista própria: “Manifestações perdem a legitimidade e a razão a partir do momento em que há violência, depredação ou cerceamento de direitos. Não admitiremos isso em SP!“, disse — uma afirmação que ganha mais relevância quando se sabe que há acampamentos bolsonaristas ainda montados em São Paulo.
Para que o Brasil possa caminhar, o debate deve ser o de ideias e a oposição deve ser responsável, apontando direções. Manifestações perdem a legitimidade e a razão a partir do momento em que há violência, depredação ou cerceamento de direitos. Não admitiremos isso em SP!
— Tarcísio Gomes de Freitas (@tarcisiogdf) January 8, 2023
A ambiguidade de algumas das figuras que cresceram mediaticamente graças ao bolsonarismo perante esta invasão foi encarnada por Sérgio Moro. Ao início da tarde, o antigo juiz da Lava-Jato — que chegou a ser ministro da Justiça de Bolsonaro, mas bateu com a porta — acusava no Twitter o governo de Lula de estar “mais preocupado em reprimir protestos e a opinião divergente do que a apresentar resultados”. Horas depois, apelava aos manifestantes que saíssem dos edifícios invadidos, dizendo que os “protestos têm que ser pacíficos” e que a oposição tem de ser “democrática”. Depois deste 8 de janeiro, talvez fique mais claro se Bolsonaro está totalmente isolado ou não.