Entrevista publicada a 6 de setembro de 2022 e recuperada depois de Diogo Ribeiro se sagrar campeão do Mundo dos 50 metros mariposa
“Foi uma lição que me deu força mental, força psicológica. Acho que ganhei uma segunda vida e agora só tenho de aproveitar. Não posso cometer os erros do passado, quando me achava indestrutível”. Assim como se está a desenhar um antes e um depois de Diogo Matos Ribeiro na natação portuguesa, também o próprio atleta teve um antes e um depois definido por uma linha vermelha traçada em 2021, quando sofreu um grave acidente de mota que lhe colocou a ainda curta carreira em risco. “Ainda há um ano estava numa cama de hospital”, recordou na chegada a Portugal após sagrar-se tricampeão mundial de juniores na prova realizada em Lima. As bagagens ficaram em Madrid, as medalhas vieram consigo para Lisboa, as ambições centram-se cada vez mais em Paris, onde terá a sua primeira experiência olímpica em 2024.
As descrições de quem o conhece melhor entroncam quase sempre nos mesmos pontos: um miúdo que é divertido, que gosta de estar bem com a vida, que tinha os excessos normais de qualquer criança. Havia uma certeza: tinha um grande potencial como outros jovens de Coimbra mas com esse princípio básico que tantas vezes faz a diferença de querer desafiar-se dentro de água. Havia uma incerteza: até onde todas essas características poderiam levá-lo. E foi assim que fez o seu percurso desde que chegou à natação aos quatro anos após perder o pai (recordado com a estrela que tem no ombro direito) para ganhar maior capacidade de concentração. Passou por Fundação Beatriz Santos, Clube Náutico Académico e União de Coimbra até assinar pelo Benfica em 2021, inserido no projeto Paris-24 e num contexto onde poderia trabalhar com o técnico brasileiro Alberto Silva, ou Albertinho, no Centro de Alto Rendimento do Jamor.
Foi também nesse ano que teve o acidente que lhe mudou a vida. Hematomas no corpo todo, queimaduras, um ombro deslocado, uma fratura no pé, a parte do dedo indicador direito que perdeu mas foi depois alvo de uma reconstrução sem perder a sensibilidade. Durante uma semana, esteve internado. Durante um mês, esteve deitado numa cama. Ganhou uma outra visão de tudo, a começar por um processo de recuperação onde foi fiel a todos os passos rumo ao objetivo de voltar ainda melhor. O trabalho no CAR com Albertinho e a alteração de rotinas fizeram-lhe bem. O resto, entre dezenas de recordes nacionais absolutos e juniores batidos, é a história que ainda agora começou tendo apenas 17 anos: tornou-se um dos quatro nadadores portugueses medalhados em Europeus seniores de Piscina Longa a par de Yokochi, Alexis Santos e Gabriel Lopes (este também em Roma-22), ganhou três ouros nos Mundiais Juniores em Lima e conseguiu mesmo quebrar o recorde mundial da idade na última prova, os 50 metros mariposa.
Depois de ter sido recebido por dezenas de pessoas no aeroporto Humberto Delgado, acabou por não ir logo para Coimbra e foi recebido no Estádio da Luz pelo seu clube, o Benfica (e o presidente, Rui Costa), na antecâmara da estreia na fase de grupos da Liga dos Campeões de futebol. Pelo meio, passou pela Rádio Observador e esteve no programa Nem tudo o que vai à rede é bola, que contou ainda com o diretor técnico da Seleção, Alberto Silva. Falou-se de Lima e de Roma. Regressou-se aos anos em Coimbra e aos tempos em Lisboa. Projetou-se Paris sem esquecer Fukuoka. Tudo com Diogo Ribeiro sempre atento a todos os pormenores em estúdio. Não é apenas nas piscinas que se quer sentir como peixe na água e foi assim que recordou as várias etapas de uma carreira em ascensão que ainda agora está a começar.
[Ouça aqui a entrevista a Diogo Ribeiro no Nem tudo o que vai à rede é bola da Rádio Observador]
Como é que foram aqueles 50 metros mariposa que deram o recorde mundial? 50 metros em que não respiras, é sempre com a cabeça dentro de água…
Os 50 metros são assim. Tanto nos 50 livres como nos 50 mariposa, não respiro mas só este ano é que comecei a conseguir fazer isso. Consegui perceber que ia atingir o primeiro lugar porque o rapaz que ia na pista 4, que era o Daniel Gracik da República Checa, era quem também estava na luta. Se eu tivesse mesmo ido aos 100 livres, à meia-final, uns minutos antes, talvez até pudesse perder o título para ele. Quando cheguei à parede não sabia que tinha feito o recorde, como é óbvio, porque ainda não tinha visto. Comecei a olhar para os tempos na tabela e só via 23, 23, depois 24, 24, 24. Ainda não tinha visto o 22, então a reação foi um bocado…
Porque já tinhas tentado fazê-lo, nos Europeus, em Roma.
Exatamente. Há um vídeo em que se vê a reação, quando eu olho para a tabela. Mas depois ouvi o relatador a dizer que foi 22,96 e aí sim, subi para cima da pista e comecei a bater na água.
Depois olhaste para as bancadas e estava lá a tua mãe, a tua irmã, o teu tio, a tua tia, todo o staff da Seleção. Isso foi importante naquele momento?
Sim, estavam lá todos. Mas também estavam lá uns brasileiros e uns espanhóis que me apoiaram bastante! Quando ganhei a primeira medalha fizeram bastante barulho e quando eu passei, a sair da água, estavam a chamar-me e a gritar para mim. Quando cheguei ao pé do meu treinador e do meu fisioterapeuta, depois do recorde mundial, estavam os dois muito emocionados. Mas o meu fisioterapeuta estava mesmo mal! Estava mesmo vermelho, acho que até passou um bocado mal depois da prova, ouvi dizer que teve de se encostar à parede…
É fácil estares num Campeonato do Mundo e ouvires o treinador dizer que vais ter de abdicar da meia-final dos 100 metros livres sabendo que também poderias ir lá buscar uma quarta medalha? Já consegues conviver com essa questão de abdicar de uma quarta medalha para lutares por um terceiro ouro?
Quem me conhece sabe que nunca gosto de sair de nada, gosto de fazer sempre tudo. Essa decisão foi tomada em conjunto. Falamos todos juntos sobre essas coisas, todo o staff, cada um dá a sua opinião. Nessa decisão em específico, fui eu que fui ter com eles a perguntar se não era melhor fazer isso, deixar os 100 livres. Porque já estava a sentir o cansaço, à tarde ia ser muito junto à prova e era a última oportunidade para bater o recorde mundial. Claro que me custa, claro que me custou, porque era uma quarta medalha. Mas sentimos que era o mais correto a fazer… E foi.
Tiveste um acidente de mota muito grave, há pouco mais de um ano, que te deixou com várias sequelas físicas. O que é que foi mais importante nessa altura: a recuperação física ou a questão mental, a ideia de que ainda podias chegar onde querias chegar?
Para mim, a parte mais importante de um atleta é mesmo essa parte mental. Sinto que trabalhei bastante bem este ano e depois do acidente, naquele espaço de um mês em que estive de cama a tentar recuperar, foi quando tive tempo para pensar mais e melhor sobre aquilo que realmente andava a fazer. São decisões que são tomadas em segundos. Claro que não queria que o acidente tivesse acontecido mas sinto que, se não fosse isso, não tinha aprendido bastantes coisas.
Passaste a olhar para a natação de forma um bocadinho mais a sério?
Sem dúvida. Já tinha pensado em ir para Lisboa e para o Benfica também, já tinha falado com o Benfica, também fiquei com medo de que alguma coisa pudesse cair, de que o contrato caísse. Mas eles foram impecáveis, deram-me suporte em tudo. Também estou aqui hoje por causa deles.
Foi difícil sair de Coimbra? Deixar a tua mãe, a tua família, a tua equipa, toda a gente com quem trabalhavas.
Sim, basicamente foi começar uma vida nova. Mudei tudo, mudei de clube, mudei de cidade, de piscina, de treinador. Agora posso dizer que foi uma ótima decisão. Também senti um bocadinho que precisava de sair de Coimbra, já não estava a dar para mim. Mas claro que todo o pessoal de Coimbra sempre me apoiou, todos os treinadores por que passei, todos os colegas de equipa. Isto de que estamos aqui a falar hoje, que foi feito há uns dias, também não tinha sido possível sem a ajuda deles.
Nesta altura, quantas horas por semana é que passas dentro de água?
Horas, horas, não sei. Mas faço nove treinos de água mais quatro de ginásio por semana. Também tenho de conciliar com a escola, normalmente é à hora de almoço, estou numa escola em que é tudo online, para não ter de me deslocar. Também é mais fácil descansar para os treinos assim.
Vais continuar a estudar? Ou a partir de agora vais dar prioridade à natação?
Eu sempre quis conciliar as duas coisas. A prioridade sempre foi a escola — para os meus, pelo menos, para mim sempre foi o desporto. Vou sempre ligar à escola, nunca vou sair da escola, mas acho que a partir de agora vou ligar-me um pouco mais à natação. Se estiver indeciso sobre alguma coisa, se calhar, opto pela natação. Mas claro que a escola é uma coisa sempre bastante importante, que deve estar sempre presente na vida dos atletas.
Tens alguma preferência em termos académicos, alguma área que depois gostasses de seguir nos estudos?
Sim, gostava de seguir Desporto na faculdade. Mais na área da gestão de treino, como treinador, adjunto… Biomecânico, se calhar, já é demais…
Mas o que é que querias ser quando fosses grande, quando eras miúdo?
Quando era miúdo dizia sempre que queria ser bombeiro ou polícia. Acho que todos já dissemos isso.
E o futebol, nunca te passou pela cabeça?
Eu andei, no futebol, por acaso. Mas foi só até aos 10 ou 11 anos.
Mas com jeito?
Com um pé esquerdo…
E depois a natação começou a exigir um bocadinho mais, foi isso?
Sim. Houve uma altura em que até andei no basquetebol, na natação e no futebol. Depois queria sair da natação e estar só no futebol. Mas depois disse à minha treinadora ‘Ou me ensinas a nadar mariposa ou vou para o futebol’.
Porquê essa paixão pela mariposa?
Não sei, sempre gostei do estilo, sempre gostei de ver os atletas a nadar mariposa. E quanto mais cedo se começa a aprender, mais técnica, mais velocidade, se tem mais tarde.
[Aqui entra na conversa por telefone Alberto Silva, mais conhecido como Albertinho, treinador brasileiro que trabalhou com antigos medalhados olímpicos como César Cielo ou Thiago Pereira e que assumiu no ano passado a direção técnica do grupo de elite da Federação Portuguesa de Natação]
Albertinho, é fácil convencer um miúdo de 17 anos a deixar tudo para se dedicar à natação?
Eu não tive de o convencer, ele queria fazer isto. Acho que quando temos de convencer alguém a fazer alguma coisa, ainda para mais neste nível, já começa errado. Tive a felicidade de encontrar o Diogo, com o talento que ele tem, e ver que estava motivado. Mas, como ele também já disse, os estudos são muito importantes e ele não só estava predisposto a dedicar-se à natação como estava pronto para não deixar de estudar, o que é importante.
Já trabalhou com uma série de antigos campeões e figuras da natação mundial e dos Jogos como o César Cielo ou o Thiago Pereira. O que é que o Diogo tem de diferente?
Diferente é difícil dizer porque todos eles têm muita determinação e muita vontade, aprendem com mais facilidade. Com menos tempo conseguem fazer coisas que os outros demoram um pouco mais. Talvez o Diogo tenha feito isso um pouco mais cedo do que a maioria dos atletas com quem trabalhei… Cada momento é um momento, o que senti neste Mundial de juniores foi especial e diferente de outras situações pelas quais já passei com outros atletas também.
Diferente em que sentido?
Cada situação é especial. Por exemplo, se perguntar ao Diogo se a emoção foi maior entre o vice-campeonato júnior europeu no ano passado ou uma medalha agora de campeão é óbvio mas naquela altura foi o maior título da carreira. É difícil comparar a sensação e o momento porque agora tem a questão da superação pós-acidente, ter mudado de treinador, de cidade… Foi como para mim, foi o primeiro campeão e a primeira medalha júnior. Tive um atleta no Brasil que foi medalhado mas na estafeta. Tem um sabor especial mas o ponto principal das emoções que vivi ali foi a sobreposição das provas. Pelo que tinha feito em Roma sabíamos que vinha para disputar as medalhas nas quatro provas mas nadar uma meia-final 15 minutos antes de uma final, e isso aconteceu todos os dias, foi difícil emocionalmente. Logo a começar, só a simples decisão de escolher entre ganhar mais medalhas e poder perder posições no pódio. Agora que deu tudo certo parece fácil mas naquele momento foi muito difícil…
Essa decisão do Diogo de prescindir da meia-final dos 100 metros livres também revela já a sua maturidade como atleta?
Acho que foi mais um desejo dele como atleta, eu respeitei. As primeiras decisões tomamos sempre em conjunto. Claro que a última é minha, se acato ou não, se decidimos ir pelo mesmo caminho… Ali foi mais ele sentir que podia ganhar. Estava na mesma posição do que eu, vou abrir mão de uma medalha em prol de tentar algo mais ou tento as quatro correndo o risco de estar cansado e poder ser superado por algum atleta? A superação e a maturidade vieram com a disputa da prova, o autocontrolo para gerir isso.
A próxima emoção pode chegar nos Jogos Olímpicos?
Eu particularmente, apesar de estar a vislumbrar já os Jogos Olímpicos [de Paris], vejo muita coisa a acontecer antes com o potencial que ele tem. Está no nosso radar chegar lá e ter uma boa participação mas vou concentrar-me na próxima época, temos alguns desafios culminando com o Mundial absoluto de Fukuoka porque os Jogos serão uma consequência disso. Está perto mas para mim ainda distante…
[E aqui volta de novo a falar Diogo Ribeiro, que foi ouvindo de forma atenta os comentários do seu treinador acenando de quando em vez com a cabeça em sinal de concordância com o que era dito]
Sim, no fundo é o que o Alberto disse. Agora vou três semanas de férias, só depois é que vamos pensar na melhor forma de estruturar a próxima época. Claro que penso fazer os tempos de acesso aos Jogos a partir de março, que é quando começa, mas o foco vai estar nos Mundiais de Fukuoka.
Quando olhas para esses Mundiais, partindo agora como um tricampeão de juniores, são mais importantes as posições ou as marcas?
Vão ser os meus primeiros Mundiais absolutos, por isso na minha cabeça diria que estará chegar a uma final e sem dúvida realizar boas marcas.
Portugal esteve apenas presente numa final da natação dos Jogos Olímpicos, com Alexandre Yokochi em 1984 nos 200 metros bruços [sétimo lugar]. Quando partem para aquela que é a maior competição, olham para um estilo em especial, neste caso livre ou mariposa, mediante os adversários que têm, como o Popovici da tua idade no crawl?
Trabalho ambos os estilos nos treinos. O Popovici é uma estrela mundial, tem recordes mundiais absolutos. Era com ele que me ia divertir entre aspas na final dos 100 metros livres se não tivesse prescindido. Na mariposa não vieram EUA, China e Austrália, não sei como teria sido se estivessem. Sinto que sou o melhor do mundo em mariposa nos juniores e se trabalharmos bem um dia também estarei entre os melhores na mariposa nos adultos.
Já conseguiste encaixar essa frase, sou o melhor do mundo na mariposa nos juniores, ou ainda estás a perceber se é mesmo verdade?
Acho que ainda não encaixei bem na minha cabeça o quão bem estes Mundiais me correram, também agora só quero mesmo é dormir mais um bocadinho e tirar as minhas férias, mas sei que foi uma grande coisa para Portugal e tenho muito orgulho nisso.
Tiveste noção do impacto que teve cá, a medalha de Roma e as vitórias no Peru?
Acho que agora no Peru teve muito mais impacto, não senti porque não estava cá e desliguei um bocado as redes sociais para estar focado. Foi isso…