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Alexandre Homem Cristo: Os dois lados de uma pidesca história de horror para o regime
Os divórcios costumam gerar dois lados para uma mesma história. Na ruptura interna do gabinete do ministério das Infraestruturas, até esta audição, apenas tínhamos conhecimento de um dos lados: o de João Galamba, de António Costa e de toda a máquina de comunicação do Governo, que fizeram de Frederico Pinheiro o único responsável por uma enormíssima trapalhada que condenou o Governo a uma profunda crise institucional. A partir de agora, conhecemos a versão de Frederico Pinheiro — e essa versão muito bem-estruturada é demolidora para o Governo.
No plano político, o depoimento de Frederico Pinheiro arrasa o ministro João Galamba. O ex-adjunto informou sobre a intenção do ministro, por via da sua chefe de gabinete, de impedir que as notas de Frederico Pinheiro chegassem à Comissão Parlamentar de Inquérito — e deu a entender que foi instruído para ocultar as suas notas (o que recusou quando o seu nome veio a público). Informou que o ministro o ameaçou com “dois socos” quando o exonerou. Informou que os registos do seu telemóvel foram apagados, aparentemente por ordem da chefe de gabinete (que entretanto negou a acusação e ripostou que só Frederico Pinheiro mexeu no telemóvel). Informou ainda que as reuniões secretas com a TAP vieram da iniciativa de João Galamba. Acusou o ministro e o Governo, incluindo o primeiro-ministro, de o difamarem e acusarem de roubo, usando a força da máquina de comunicação do Governo para destruir a sua reputação. Sobretudo, deu pormenores e detalhes de mais de 50 horas de absolutamente caos governativo e descontrolo emocional no ministério de João Galamba — uma sequência de episódios de um amadorismo confrangedor.
Na audição seguinte, de Eugénia Cabaço Correia, a chefe de gabinete que alegadamente esteve numa troca de agressões com Frederico Pinheiro para recuperar um computador, assistiu-se a um esforço politicamente calculado para desmentir as versões de Frederico Pinheiro sobre os acontecimentos no ministério das infraestruturas. Fê-lo melhor em relação ao “apagão do telemóvel”, mas não conseguiu afastar as dúvidas sobre as intenções do ministro João Galamba de ocultação de documentos à Comissão Parlamentar de Inquérito. A obsessão de Eugénia Correia com o computador de Frederico Pinheiro continua muito mal explicada, pois é sempre apresentada sob a perspectiva de protecção de documentos classificados, quando o cenário mais provável é o de recuperação das notas do ex-adjunto.
O pior de tudo e de longe o mais grave: a descrição de Frederico Pinheiro da acção dos Serviços Secretos (SIS) é pidesca, arrepiante e tenebrosa — e, aqui, comprometendo directamente o primeiro-ministro, que tem a tutela dos Serviços Secretos. O SIS contactou Frederico Pinheiro às 23 horas, fez ameaças veladas ao ex-adjunto e uma sequência de insinuações ameaçadoras, num contexto evidente de intimidação. Dificilmente se imaginaria um comportamento mais sinistro e intolerável num Estado de Direito, percebendo-se que essa acção foi despoletada por “pressões de cima”, associando o SIS a uma espécie de braço armado do Governo. Sobre este assunto, o depoimento de Eugénia Correia, que falou insistentemente de roubo (o que implicaria a PJ e não o SIS), contribuiu para afundar ainda mais o Governo: a chefe de gabinete de Galamba foi vaga acerca das orientações genéricas que recebeu, e recusou-se a indicar quem lhe deu ordens para activar as autoridades — não é um comportamento transparente e sugere uma gestão táctica da informação de alguém que tem uma longa experiência de coordenação política nos gabinetes ministeriais.
O que fica desta maratona de inquérito parlamentar é o retrato de uma trapalhada completa, que fere gravemente o regime, o Governo (João Galamba e António Costa) e o SIS. É impossível que o primeiro-ministro e o Presidente da República tenham assistido a este triste espectáculo sem pensar nas implicações políticas que daqui poderão surgir — afinal, é urgente estancar esta degradação imparável das instituições. Tal como será impossível a qualquer cidadão não se questionar: é mesmo assim nesta indignidade que se governa um país?
André Abrantes Amaral: A lição a tirar desta novela
De acordo com a narrativa contada pelo ministério das infra-estruturas, e corroborada pelo primeiro-ministro, o assessor Frederico Pinheiro terá perdido a cabeça ao saber da sua exoneração. Na audição de ontem na Assembleia da República, Frederico Pinheiro contou-nos a sua versão da história. E desta depreendem-se três pontos: primeiro, que terá sido o homem de confiança de Pedro Nuno Santos (de quem é amigo, como teve o cuidado de sublinhar no depoimento) e que acompanhou o processo da TAP desde o seu início; segundo, que a confiança era tal que o seu computador se encontrava fora rede do Governo, quem sabe para que ninguém fora do ministério tivesse acesso ao seu conteúdo; terceiro, que é estranho que uma pessoa com acesso a tanta informação durante tanto tempo se tenha, repentinamente, tornado incompetente e emocionalmente descontrolado.
Sendo a pessoa que melhor conhecia o dossier da TAP, a continuação de Frederico Pinheiro no ministério das infra-estruturas depois da demissão de Pedro Nuno Santos foi perfeitamente natural. O Governo era o mesmo e o novo ministro, um ex-secretário de Estado do mesmo ministério. Sucede que a forma de trabalhar do antigo e do novo ministro era diferente. O que ressalta da polémica à volta das ditas reuniões em Janeiro é uma falta de cuidado, para não dizer amadorismo. O que sucedeu daí até aos tristes acontecimentos de 26 de Abril é uma tentativa de uns escaparem dos efeitos desse amadorismo, mesmo que à custa do elo mais fraco que não se terá querido ficar.
Mas o assunto não se reduz apenas a uma telenovela mexicana. Resulta de um pecado original que foi a nacionalização da TAP, feita pelo actual Governo. O que tem sucedido na TAP desde então, os 3,2 mil milhões de euros que os portugueses foram forçados a investir numa empresa de aviação e os estragos causados através das interferências políticas na gestão dessa empresa, toda a novela na Comissão Parlamentar de Inquérito comprovam o que é sobejamente conhecido e comprovado: o Estado não deve ser dono de empresas de aviação porque não faz parte das suas funções e porque, quando se misturam política com negócios, nem os negócios correm bem nem a política fica bem vista. Esta é a lição mais importante que podemos tirar desta lamentável história.
Helena Garrido: Descontrolos, contradições e mistérios no caso TAP
A importância de um portátil que desencadeou o descontrolo de cinco a seis pessoas, incluindo do ministro das Infraestruturas, é um dos mistérios que se mantém depois de uma tarde e noite em que foram ouvidos no Parlamento do ex-adjunto de João Galamba e a sua chefe de gabinete. O que tinha ou tem aquele computador para ter levado Frederico Pinheiro a deslocar-se propositadamente ao Ministério, depois de ter sido exonerado de forma, ao que diz, agressiva pelo ministro? O que tinha ou tem para ter desencadeado uma intervenção tão ativa, para dizer o mínimo, da equipa do que estava no gabinete na noite de 26 de Abril? Porque não deixaram calmamente sair o portátil e ligaram com serenidade para a polícia? E o que tem ou tinha para justificar a entrada em cena de um agente do SIS, noite dentro desse dia, para o recuperar? São questões que apesar das horas de audição continuam por esclarecer.
Informação confidencial, diz a chefe de gabinete. Dados pessoais que eram seus, argumenta o ex-adjunto. Nunca saberemos. Como dificilmente conseguiremos desvendar outro mistério, o das notas. A chefe de gabinete Eugénia Correia garante que Frederico Pinheiro sempre disse que não tinha notas, da famosa reunião da ex-presidente executiva da TAP de dia 17 de Janeiro com o grupo parlamentar do PS. Que só disse que “afinal havia notas” em cima do prazo de entrega da documentação à Comissão parlamentar de inquérito e que levou 28 horas a enviá-las, sem ceder o ficheiro eletrónico, pondo assim em causa a veracidade das notas enviadas ao Parlamento. Versão oposta tem Frederico Pinheiro, embora sem explicar porque levou tanto tempo a enviar as famosas notas.
A forma como o SIS actuou, de acordo com o testemunho de Frederico Pinheiro, é outro mistério que justifica a maior das preocupações em todo este processo. Ficou para já esclarecido porque é que o SIS foi contactado: a chefe de gabinete tinha orientações para reportar aos serviços de segurança qualquer evento que considerasse colocar em risco a segurança do Estado. E Eugénia Correia assim fez, porque o portátil tinha “documentos relevantes de uma empresa estratégica” para o país.
E assim chegamos ao retrato que a audição da chefe de gabinete nos deu sobre a forma como eram tratados esses documentos da TAP, com informação que devia estar bem guardada. Os tais documentos que incluem o plano estratégico da TAP e informação financeira da companhia aérea, que deviam estar protegidos, estavam simplesmente e apenas num portátil que, como disse um dos deputados, podia até ter caído da bicicleta. E mesmo depois de terem sido classificados pelo Gabinete Nacional de Segurança, lá se mantiveram, no já famoso portátil, sem que tivessem sido retirados e incluídos no arquivo do Ministério.
Depois de o SIS ter actuado de uma forma que é no mínimo discutível quanto à sua legalidade, levando-nos a legitimamente admitir que se considera mais ao serviço do Governo do que ao serviço do Estado, soubemos agora que documentos de uma empresa considerada estratégica estavam num portátil, nas mãos de apenas uma pessoa, que os podia copiar quando e como quisesse. E continuaram a estar. Ou seja, o ministro João Galamba, se quiser hoje consultar os documentos da TAP tem de pedir aos seus colegas de Governo, nomeadamente ao ministro das Finanças.
É inacreditável, lamentável e até doloroso ouvir o que se passou naquela noite no quarto andar e no piso zero do Ministério das Infraestruturas. Agressões, gritaria, portas encerradas, pessoas escondidas em casas de banho, polícias que deixam sair quem eram supostos não deixar sair, polícias que não aparecem, um agente do SIS em acção. Tudo desencadeado por uma exoneração feita pelo telefone com ameaças de “dois socos”, a crer no que disse o adjunto despedido. E tudo por causa de um portátil onde o Governo guardava (e guarda) informação relevante sobre a TAP. É uma imagem aterradora sobre o funcionamento se não do Governo pelo menos do Ministério das Infraestruturas que o ex-ministro Pedro Nuno Santos também terá de explicar.
Como é que se atinge este grau de desorientação e descontrolo é mais uma das perguntas que ficará sem resposta. Num processo recheado de contradições e mistérios, aguardemos pelas próximas audições, na expectativa que se faça alguma luz que nos corrija esta imagem de um Governo que se considera o Estado e não consegue funcionar.
Filomena Martins: A resposta que interessa: que interesse tinha Frederico Pinheiro para esconder as notas?
Um hamster a andar na rodinha. É a imagem que me fica da narrativa criada pelo Governo para justificar os sucessivos episódios da novela Galambagate com o seu apogeu na ‘crise da bicicleta’, como lhe chamaram os jornais espanhóis. E depois das duas audições desta quarta-feira, e já antecipando a de João Galamba, atrevo-me desde já a concluir que o bicho vai ficar ainda mais estafado e a roda não vai sair do sítio.
Há só uma pergunta (desdobrada) para a qual gostava mesmo de ter resposta: que interesse tinha Frederico Pinheiro para esconder as notas sobre as reuniões da TAP? Para dizer que não as tinha? Para não as entregar? E para depois as ‘inventar’ de repente?
Foi esta a ideia que foi criada. Que o adjunto que transitou do núcleo de Pedro Nuno (como aliás João Galamba) era quem queria esconder coisas à Comissão. A narrativa surgiu quando, ups, foram conhecidas aquelas duas reuniõezinhas que era suposto terem sido secretas para preparar a ex-CEO da TAP a ir dizer coisas simpáticas ao Parlamento em janeiro. Primeiro a do grupo parlamentar do PS (que afinal foi só com um deputado) e depois uma outra, que afinal até tinha acontecido na véspera, do próprio ministro com Christine Ourmières-Widener.
A partir daí, para salvar Galamba, foi preciso sacrificar alguém. Calhou a Pinheiro. Não sei se o ex-adjunto está a falar completamente verdade sobre o que se passou naquele dia no ministério (ainda que desconfie sempre de exageros e provas de imagens de câmaras que afinal não funcionam). Mas é fácil perceber que até esse dia, e depois dele, os argumentos do Governo que entraram na rodinha do hamster estão estafados e não levam o bicho a lado nenhum. Já todos perceberam que não colam. E cada vez fica mais claro como o animal estás a dar as últimas. E, neste caso, o animal é não só o próprio ministro das Infraestruturas, um morto-vivo. E já todo o Governo, ferido de credibilidade.
PS: A história da intervenção do SIS é digna da Rússia de Putin e precisa ser explicada e investigada. Eu temo viver num país assim.
Sara Antunes de Oliveira. “Foi pena.” Marcelo já sabia (e Costa também devia saber)
É difícil resistir à tentação de imaginar Marcelo Rebelo de Sousa, sentado num sofá do Palácio de Belém, a assistir à audição de Frederico Pinheiro no Parlamento. Quando, há duas semanas, o Presidente da República lamentou que António Costa tivesse recusado o pedido de demissão de João Galamba, disse duas palavras que soaram a maldição: “Foi pena”. Agora, ao ouvir o relato do ex-adjunto do ministro das Infraestruturas na Comissão de Inquérito à TAP, é como se Marcelo, sentado no sofá, as dissesse outra vez.
“Foi pena” que António Costa não soubesse aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa já sabia: o dia desta audição ia chegar e João Galamba não ficaria bem na fotografia.
“Foi pena” que António Costa não tivesse querido resolver a 2 de maio um problema que não só não ia desaparecer, como ia voltar rapidamente.
“Foi pena” que António Costa tenha preferido desafiar Belém e ver um ministro exposto a descrições de amadorismo, descontrolo e “comportamentos laborais impróprios”. Mais: a acusações graves de ocultação de informação à comissão de inquérito.
“Foi pena” que António Costa tenha posto o ego político acima da credibilidade do Governo, já tão frágil.
Já era claro que, nesse jogo de tabuleiro, João Galamba era só um peão. Agora é um peão com dois ou três cantos esbotenados, que de pouco servirá seja a quem for — sobretudo ao país. A António Costa pouco restará senão ficar a ouvir, talvez também sentado num sofá no Palácio de São Bento, à tentativa que Galamba fará para desmontar esta versão. Porque entre reuniões secretas para as quais, afinal, o ministro contribuiu ativamente; notas escondidas da Comissão de Inquérito; mensagens e telefonemas intimidatórios; arquivos de mensagens inexplicavelmente apagados; e um SIS “pressionado” que diz que não houve coação, mas avisou que era melhor resolver tudo a bem… a verdade há-de estar algures no meio. Mas do vexame já ninguém livra o Estado português.
Judite França: Pancadaria, um espião e o elo mais fraco
Há quem recomende fazer uma filme ou uma série a partir desta trapalhada em volta da TAP, do caso do adjunto, das assessoras que se esconderam em casas de banho e do agente do SIS que se encontra a meio da noite para recuperar um portátil. Eu recomendo lamentar. Lamentar porque chegamos a isto.
Não vou discutir quem esmurrou quem. Quero saber o que aconteceu, mas até lá são o típico “ele disse e ela disse”. Mesmo que o “ela” seja uma entidade coletiva: para todas as ocasiões, a chefe de gabinete do ministro João Galamba, Eugénia Correia, utiliza as mesmas 5 testemunhas. Nada contra. Mas é como quando se diz que a família não é testemunha fiável. Aqui funciona a mesma regra.
E funciona ainda outra lógica: a de que há um ministério inteiro contra uma pessoa só. Frederico Pinheiro é o exemplo perfeito do elo mais fraco. Do underdog. Claro que todos torcemos por David contra Golias. Está na natureza humana, o que não nos deve toldar o juízo.
Será Eugénia a falar a verdade, será Frederico? Frederico deu muitos factos, parecia muito seguro e desabrido a falar sobre o tema. Já Eugénia, a dada altura, estava claramente a responder aos bochechos e foi preciso insistir para que admitisse ter recebido uma chamada do SIS.
Há incongruências disparatadas: como a de não pedir o telemóvel e apenas o computador; dizer que o telemóvel tinha sido bloqueado quando Frederico Pinheiro o conseguiu formatar. Era bom não nos prendermos em minudências deste calibre. Mas é inevitável. Como é inevitável que a nossa fé na organização da democracia tenha sofrido um rude abalo. Uma coisa é certa: politicamente este é um episódio absolutamente desastroso para o Governo. Resta saber se o Presidente da República assistiu a estas cenas pindéricas que envergonham o país.