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Os sinais de que vale a pena torcer pela presença portuguesa entre as criações germânicas chegam logo à entrada do salão. No Kulturforum, num blusão oversized do Atelier Batalan, o patchwork de cachecóis de clubes de futebol confirma a tendência: antes de entrar em campo em Frankfurt já o Sporting marcava terreno na capital. Em plena Semana da Moda, eis um exemplar da temporada 1999/2000, um modelo vintage, portanto, que capta o olho de quem chega depois da passagem pelo piso inferior, onde se mostra o resultado da colaboração entre a Ugg X FCG Rising Voices, e ainda uma instalação do ucraniano Jean Gritsfeldt.
O certame que arrancou na passada segunda-feira chega ao fim este sábado, depois de um extenso calendário de desfiles, showcases, instalações, conferências, festas e outros eventos paralelos que pretendem tirar do segundo plano uma montra com 15 anos ainda à distância das veteranas Paris ou Milão. E numa Berlim a entrar num cálido outono, o soalheiro sul da Europa é o mais rápido a entrar em campo (muito mais que circular numa cidade com obras ao virar de cada esquina e congestionamento reforçado pela visita do presidente de Israel). “Estes sapatos são feitos em Portugal”, aponta Christof Baum. Em São João da Madeira, para sermos mais precisos, caso lhe faltem as coordenadas óbvias no que à confeção de calçado diz respeito. Christof lidera a Maison Baum, uma das 30 marcas presentes neste Der Berliner Salon, palco para roupa e acessórios que reúne alguns dos nomes mais vibrantes da cena berlinense. Admite que as mulheres alemãs preferem os práticos ténis para o dia a dia e reservam os saltos para momentos especiais, e porque as modas e tempos são outros, a lista de clientes é palmilhável também no masculino. “Os números vão até ao 42. Temos um dentista de Hannover que usa saltos muito altos, especialmente em cor de rosa”.
Formada originalmente com um colega francês, cirurgião ortopédico, a marca lançada há dois anos atualizou a sua vocação para o registo fashion. Depois de estudar produção na China e em Itália, foi em território nacional que Baum encontrou as “fábricas mais recetivas à introdução de alterações. Para mim era importante serem confortáveis, poderes dançar com eles”.
A ponte com o (bem) “feito em Portugal” irá conduzir-nos praticamente ao longo de quatro dias — e não se fica, claro, pelo vestuário ou acessórios, como a carteira preta com assinatura Elisabete Machado que a finlandesa Sari tira da mala para nos mostrar a meio de um almoço. “É bom sinal ver que ainda se produz na Europa!”. Depois de um périplo pelos néctares californianos, o encontro à mesa de uma comitiva de 25 pessoas, entre buyers e imprensa, é regado com um muito elogiado Três Bagos. “Ótimo! Escolho sempre Douro quando vou a Portugal”, explica a irmã, Marianne, a contar os dias para se aventurar nos greens do Algarve em outubro. “Vamos variando entre Vilamoura e Portimão, que é metade do preço”.
Mais tarde ou mais cedo, as contas, que não as da refeição, acabam sempre por entrar em cena quando diferentes nacionalidades partilham um prato de borrego ou um copo de tinto. Num serão de blind dates empresariais à mesa no restaurante Crackers, o resto dos comensais alemães abre a boca de espanto quando Natascha von Hirschhausen (a designer que trocou a Física por uma máquina de costura de que se tornou inseparável) partilha que ainda consegue manter a sua loja na famosa Friedrichstraße, a principal artéria comercial berlinense. “Uau, és um unicórnio! Há dez anos Berlim ainda era Berlim… agora Berlim é… Berlim”, diz a chefe de eventos Jennifer, reduzindo o timbre até ao nível da surdina – o elevado preço do metro quadrado, para efeitos comerciais ou de habitação, justifica o espanto e o tom desmaiado da nossa companhia.
E por falar em copos, nem Sanna Marin escapa no cardápio ao longo deste dias indicados para poliglotas. “É cool ela ser uma primeira-ministra nova mas parece uma professora que nunca se ri. Tem dificuldades em trabalhar com os outros. Podes dançar e cantar, sim, mas a questão é que na Finlândia temos um problema grave de álcool. Devia dar o exemplo. E sobretudo saber de quem se rodeia”, alertam as irmãs finlandesas, em busca de mais um copo de prosecco, a bebida que jorrará a bom jorrar ao longo desta agenda frenética. Porque afinal um dia não são dias.
Em março, a Asuna, a loja que mantêm em Helsínquia, celebra 20 anos. “Queremos fazer algo”, explicariam mais tarde sobre a empresa que as traz à capital alemã em busca de novidades para comprar, até então sem grande sucesso. “É pouco vestível. E já vi isto nos anos 80 e 90”, desabafa Sari ao jantar depois de assistir ao desfile de Marcel Ostertag, no fotogénico We Werk.
Das buyers portuguesas ao cartão de visita ucraniano (sempre em alemão)
Universal mas não tanto. Congregadora, a língua que a moda fala esbarra na eventual barreira linguística em solo alemão. Apesar da vocação internacional, do interesse forasteiro, da família multicultural que ocupa uma metrópole com cerca de 3.6 milhões de habitantes, aquela língua inglesa que fica sempre bem e facilita diálogos, raramente desfila nas intervenções oficiais. Escusado será dizer que muita informação útil fica pelo caminho.
As regras do patrocinador oficial Mercedes-Benz — segredam-nos entre um frango com massa — são claras: no que toca a apresentações e outros momentos públicos, todos os participantes na Semana da Moda devem expressar-se no idioma do país. “É tudo em alemão, até os flyers. Se estivéssemos em Portugal é provável que acontecesse o mesmo, mas é uma barreira muito grande. Se o objetivo é internacionalizar, trazer as pessoas, não falar inglês dificulta muito as coisas. A apresentação da coleção muda completamente o olhar que temos sobre ela. Não conseguir perceber sobre o que é pode deixar-nos reticentes”, lamenta Francisca.
Gestora de operações da portuguesa The Feeting Room, seguiu do Porto para a Alemanha na companhia da buyer Ana Morais, de olho no recheio das lojas mais entusiasmantes. “É essencial perceber o que está a surgir de novo, a moda é mutável. Queremos perceber o que se faz lá fora. O nosso intuito é angariar sempre mais marcas portuguesas, no entanto também somos muito abertos a descobrir designers fora de Portugal. Começámos uma concept store, temos a nossa imagem, mas também é importante recolher informação. Queremos visitar outras grandes lojas e mercados e ver como funciona”, explica Ana sobre o plano para as próximas jornadas, comparando ainda os respetivos viveiros de talentos. “Estamos em pé de igualdade com os alemães. Temos grandes marcas, bons designers, somos muito inovadores. Temos o bónus de confecionar bem. Gostamos do que vimos mas estamos super à frente em Portugal”, arrisca no balanço. “Também ficámos interessadas nos designers que Elisa tem representado nas semanas de moda, incluindo esta de Berlim”, acrescenta Francisca.
Elisa é Єлизавета, a jovem que chefia o departamento de comunicação da Semana da Moda da Ucrânia, inseparável da pulseira talismã que se mantém presa ao pulso desde que a guerra estalou. Chegada da semana da Moda de Budapeste, esta é mais uma escala no trajeto de divulgação dos designers do seu país, e encaixe nas restantes semanas da moda europeias. A minimalista BOBKOVA, por exemplo, apresentou no Telegraphenamt, o hotel ainda por inaugurar onde a Mercedes centralizou os desfiles do calendário oficial do programa. “Muitas vezes perguntam-me se os nossos designers vão conseguir ter coleções para apresentar, mas eles estão a conseguir. Nem que seja coleções cápsula”. De resto, nota a responsável que se faz acompanhar por Aleksandra Kakurina, chefe do departamento de Design do mesmo organismo ucraniano, se alguns optaram por abandonar o país face ao desenrolar dos acontecimentos, as suas equipas não arredaram pé da Ucrânia, para onde muitos entretanto regressaram, dando continuidade ao trabalho eventualmente deixado em stand by.
Por aqui, a resistência segue o seu caminho em modo bicolor. O azul e amarelo da bandeira pontuam diferentes recantos, como a Esthetica, o conjunto de conferências organizado por Orsola de Castro, inserido nesta semana, onde criadores debatem a melhor forma de minimizar impactos negativos e otimizar bons exemplos quando o assunto é sustentabilidade e a urgência de reduzir drasticamente as emissões de gases poluentes. “A esperança é o maior partido da Terra”, confia Max, o moderador deste encontro.
Uma cidade a meio gás “por causa de um estúpido” e um evento que precisa de outro fôlego
Por falar em gás, por falar em energia, vamos ao ponto de situação incontornável numa cidade massacrada pelas obras (já falámos disto mas falta referir o resto). A abertura de dois novos clubes noturnos e a feira de tecnologia FIA trouxeram ainda mais gente e dificultaram a vida de quem por estes dias segue intensivamente ao volante. Ah, falta mencionar outro pequeno detalhe. Um surto de coronavírus contribuiu em muito para a carência de motoristas na Semana da Moda. Em cima da hora, quatro deles viajaram seis horas e meia de carro de Munique para Berlim para suprir a lacuna. “É o meu primeiro dia aqui”, confessa Eugen, depois de 45 minutos perdido na zona das chegadas do aeroporto de Brandenburg. “Está muito complicado… O Governo vai baixar a temperatura dos edifícios públicos e governamentais para os 19 graus, mudaram o limite na autoestrada para 80, em Berlim anda-se a 30 à hora… É o que tem tornado a cidade tão lenta. É horrível circular de um ponta à outra”, partilha enquanto nos transporta para o centro da capital. Nem falemos do valor do litro quando falamos em gasolina. “Às vezes chega aos 2,30 euros. “Estamos assim tudo por culpa de um estúpido”.
Preveem-se tempos menos suaves para o país que “só investe em carros”, admitem em uníssono os alemães da comitiva. “Não compram moda alemã. Têm um bom casaco e para eles chega”. Pragmatismo, bom senso, ou alheamento completo de um setor ainda à procura do rumo certo? Os próprios moldes em que é montada esta Semana da Moda não são lineares. As voltas e contravoltas dos vínculos passam pela aproximação, afastamento e de novo reaproximação à vista com o Grupo Premium, responsável pela organização de duas grandes feiras de moda, e a distribuição dos designers e respetivas apresentações é uma teia relativamente complexa. “O conselho da Moda tem cerca de 200 membros. Se entras na agenda oficial de desfiles da Mercedes, os designers têm que pagar 20 mil euros, o que e muito, à exceção dos nomes convidados.”, descreve-nos Elke Timmerman, a nossa ponte com o certame. Os restantes, que apresentam em diferentes locais, recebem envelopes de 5 ou 10 mil euros do Conselho da Moda da Alemanha (ou FCG).
“Temos que começar uma conversa diferente. A semana da moda é algo que nós enquanto novos países, como Portugal e Alemanha, querem construir de forma a apoiar talentos? É este o modelo? Se calhar temos que nos interrogar se devemos seguir este caminho ou se devemos seguir outras formas. Mas penso acima de tudo que o talento, o jovem talento, precisa de uma montra. A moda é algo tão emocional que lhe queremos tocar, queremos ouvir a música, ver como as passeias desfilam a roupa nas passerelles.”
Tem a palavra a chairwoman Christiane Arp, mítica ex-editora da Vogue, presença icónica nas primeiras filas, que acumula com esta função a curadoria do Salão de Berlim. “Talvez esteja tão treinada com desfiles… Adoro esta adrenalina. Claro que podemos ver imagens depois mas não é o mesmo. Temos que pensar em formatos que possam preencher este desejo de um momento emocional”, diz-nos à margem de um jantar. “Estava agora mesmo a falar com uma jovem designer que vai apresentar amanhã. Sou responsável pelo Fashion Council, que é uma casa jovem com apenas seis anos. Sabíamos que era preciso ter uma organização destas, aprendemos com outros países. Uma organização que pense a moda 365 dias por ano, para lá do momento da Semana da Moda, que são apenas uns dias. Tens que criar uma consciência. Neste momento sinto que há uma nova geração de talentos. Para eles, a sustentabilidade é o novo normal. Eles não pensam fora disto. É importante ver o que andam a fazer.” Será essa meta um horizonte cumprível ou estará ela mais próxima do sonho que continua em fila de espera? “Vamos sempre procurar o novo. Desde que cumpramos todos os passos em termos de circularidade, só usamos o que já lá está, e isso é ok. Se estes novos designers conseguirem isso, é ótimo”.
Anos 90, denim e bolas de espelho pretas: pelos atelier dos designers
Durante algumas semanas, um estagiário (certamente desavindo com o google) chegou a perguntar-lhes qual dos dois era Richerdt Beil. Para evitar tropeção na mesma gaffe, saiba que falamos de uma dupla de criativos, que uniram esforços e apelidos no seu pequeno atelier num prédio residencial. Peças one shoulder, inspirações desportivas, e muito upcycling, com o underwear a ganhar visibilidade no entrosamento com camisas e outras referências, juntam-se nos charriots ao jersey produzido (mais uma vez) em Portugal, ao denim confecionado na Turquia e às (vamos chamar-lhes assim) rubber shirts como se o guarda roupa motard conhecesse uma injeção de coolness. As t’shirts começam nos 80 euros, os casacos podem ascender aos dois mil, e vale mesmo a pena mantê-los debaixo de olho. Assim como assim, só tem que decorar um nome.
Seguimos o périplo por outros estúdios que são cartão de visita do que se faz por aqui. De origem iraniana, Leila Piedayesh, o nome da fundadora, emigrou para a Alemanha em 1979, para onde levou o típico padrão keffiyeh que aplicou à sua linha de acessórios, numa marca fundada há 18 anos. Na sua Lala Berlin, deslizamos pelo enorme escritório-showroom e conferimos um sorriso no rosto da nossa equipa lusa de buyers, um pouco mais convencidas com o target da oferta. De novo, as malhas são confecionadas em Portugal, mas são os lenços em caxemira italiana os prediletos das escandinavas, que figuram entre as clientes mais fiéis.
É de Itália que chegam também boa parte dos tecidos usados pela criadora que chegou a brilhar num reality show nos EUA, mercado que lidera entre os seus compradores. “Não ganhei um milhão por pouco, fiquei em segundo. A minha marca tem 29 anos. Sou o dinossauro da Semana da Moda”, brinca Esther Pembardt, na pequena loja e atelier com dez anos (e vistosas bolas de espelho pretas). “Não consigo trabalhar se não tiver isto!” A cor impera neste endereço e no seu look. Vestida de negro da cabeça aos pés, com um chapéu Fiona Bennet, Pembardt começou por desenhar peças coloridas, quando trabalhava em Paris para uma marca que seguia este registo. “Quando voltei para Berlim realizei que só vestia preto e que havia um gap entre mim e a minha marca”, admite, agora em sincronia total adiantando que o cliente padrão é feminino mas o segmento masculino tem crescido muito. Quanto à nova coleção de joias chega no final de setembro — “a joalharia é a minha segunda pele”. Em março, fez o primeiro desfile em seis anos, com o styling apurado de Christiane Arp. Quem mais?
“Queremos reclamar o nosso território, cavar o nosso nicho”, atira com confiança Ioannes, o ex-formando de Central Saint Martins que vive o primeiro ano da sua marca homónima em Berlim. “Rapaz do campo, nascido no centro da Alemanha”, em julho mostrou algumas das peças em Paris (em cujos arredores continua a assegurar o tailoring), expandiu a equipa, a coleção, colocou algumas das suas peças na The Icon, em Kiev, e cumpriu o seu “sonho dos anos 90” de ter um casaco com pele vaca, produzido na Grécia. Os padrões reclamam também o seu território, agora no charriot ao fundo do atelier onde a estética clean, luminosa e depurada convida a prolongar a visita.
Com um hype um pouco mais acelerado, a Mykita redireciona agora o GPS desta tour de imprensa e justifica a paragem em Kreuzberg, o bairro onde se ergue o mega complexo com fauna hipster, onde os cães também vão para o trabalho, e há minis portuguesas no trailer amarelo no pátio central onde os 240 empregados podem tomar café. Do novo acetato ao mylon, sem esquecer o aço inoxidável, os óculos que ganharam fama, feitos manualmente neste reduto, são compostos por 88% de material reciclado — e as armações batizadas com os nomes de quem aqui trabalha, “sobretudo com os mais estranhos”, explica a nossa guia, enquanto subimos e descemos pelos diferentes andares e recantos, para conferir de perto todo o processo de nascimento de uma peça, da ideia original à conceção, do lasering à inscrição dos logos.
Estátuas vivas, minimalismo, e vanguardismo na meca dos hipsters
Descemos aos subterrâneos do número 70, um antigo bunker que alberga hoje a Feuerle, a coleção privada de arte asiática de Désiré Feuerle, dispersa por 6 mil metros quadrados e aberta ao público desde 2016. Sf1oG é um dos nomes aguardados nesta edição, um entusiasmo confirmado mal o desfile começa — com 45 minutos de atraso (perdoáveis por formato e conteúdo). Ao som de intérpretes de cordas, um exército de sonâmbulos cumpre uma hipnotizante marcha lenta, num torpor que encontra redenção na imagem de um bebé e de um animal fiel. “Untitled”, de Rosa M Dahl, celebra o investimento no artesanal enquanto “arte tangível”. “A proeminência é dada à consciência dos materiais, à habilidade de desenhar inspiração a partir deles, e à conexão com as histórias que as suas imperfeições contam”, lê-se na apresentação da coleção.
A noite segue junto aos carris da estação de Unbanhof, no The Tunnel. Entre bolas de espelhos, uma passerelle sem fim à vista, e o improvável som da Lambada a sair da mesa de mistura do DJ, Willian Fan (ou ventoinha, que seria oferecida no interior de um goodie bag em prática versão portátil) é uma exuberante locomotiva com direito a trenchs ultra brilhantes. Pode começar a chover em Berlim que já encontrámos a nossa — chamemos-lhe assim — “gliterdine”.
No dia anterior, à grande e à alemã, Dawid Tomaszewski oferecia um fim de dia imaculado no Barte, no topo do Humboldt Forum, com direito a uma vista panorâmica de cortar o fôlego, carrinho de gelados, música, manequins-estátua, matéria prima extra para street style e, de novo, muito prosecco.
Entre a monta do futuro e o histórico armazém comercial (com uma escala na High Snobiety)
Alugar uma loja pop up no metaverso, QR codes, DJ set e, vá, um recanto com um apetecível bar e alguns acessórios instagramáveis. Num mundo pós-Covid, e com o cómodo e-commerce à distância de um clique no sofá, como será o presente-futuro da experiência de compra física? A montra/evento de Marcell von Berlin anima a tarde e propõe a fórmula que combina todos os ingredientes anteriores enquanto vistosos sapatos vão surgindo em ecrãs tácteis diante dos nossos olhos. Mais que suculenta para uma geração tik tok, quem sabe um pouco fatigante para a geração X e um pesadelo sonoro para um baby boomer. Mas adiante.
“Pus isto aqui a dizer para não tocar porque já sabia que as pessoas iam todas tocar”, explica o responsável pela Showz sobre a indicação no vidro da montra, enquanto as luzes se acendem no interior da vitrina. Descarregar uma app, scannar a montra, obter uma experiência de desfile e comprar. É fácil experienciar todo o universo von Berlin, num encontro visual entre as coordenadas do deserto de Los Angeles e as do showroom em Berlim.
Enquanto isso, no quartel general do evento, a Mercedes-Benz expõe o resultado da mais recente incursão no mundo das parcerias. Depois de colaborar com Balenciaga ou Virgil Abloh, junta-se ao elenco de peso o Acte TM, o berlinense e emergente estúdio criativo que se divide entre instalações nos Alpes com a Moncler e a direção artística da coleção PradaXAdidas.
O roteiro não esquece uma passagem por um dos (já) monumentos da cultura pop. Lançada em 2005 por David Fischer, hoje com escritórios em destinos como Amesterdão, Londres, Milão, Nova Iorque, Los Angeles e Sydney, a marca de media e moda Highsnobiety já conquistou o seu lugar no pequeno grande olimpo do streetstyle. Na sua morada na capital alemã, acolhe mais uma edição da loja pop up Berlin Berlin, espelho das colaborações entre a plataforma e artistas como Soho House, 6PM, Acte TM, Adidas, Crocs, Dr Martens, Blue Note Records, Kasia Kucharska ou La Maison.
Da realidade alternativa e vertiginosamente high tech para os grandes departamentos comerciais. 12 milhões de visitantes ano, seis mil metros quadrados, 2500 empregados. Depois do Harrods, os KaDeWe são o maior espaço do género no continente, um imponente templo de consumo que remonta a 1907, sobreviveu ao avião americano que em 1943 se despenhou no telhado, remodelou-se no pós-guerra e beneficiou de upgrade recente. Elevador acima ou pelas impressionantes escadas rolantes, o luxo é o denominador comum nestes pisos. Quer um ecrã de TV micro led personalizado? Ainda a semana passada fizeram um redondo para um cliente. Já ninguém envia cartas? Com uma Montblanc entre os dedos pode escrever exclusividade no destinatário. Por um lado, a fine art do gifting como o selo Giobagnara. Por outro, provadores impressos em 3D.
“As pessoas podem não precisar destas coisas, mas quem sabe um dia…”, diz o CEO Andre Maeder, admitindo que nos encontramos num reduto encantado do supérfluo e da eterna novidade. Basta pensar como o corner da Louis Vuitton é mudado de alto a baixo a cada seis meses, num exercício que responde à voragem de consumo.
Para a história ficam os bolos feitos dentro de portas para a Kuchen& Brotechen, as fileiras de mercearia fina, o cruzamento entre as pilhas de marisco fresco e um imprescindível beer hall bárbaro — porque afinal a cerveja é uma instituição mesmo que a escassos metros se brinde com champanhe — e, bom, uma lista de 26 restaurantes numa zona com assinatura de Rem Koolhaas para que não falte variedade na hora de escolher, mesmo que seja fora de horas. E crise? Tem sido notada neste colosso onde ainda antes do almoço se compram diamantes ou simplesmente se cobiçam as novidades no stand da Charlotte Tilbury? “Na secção infantil sentimos muito a falta dos avós ricos que vêm comprar peças Dior ou Gucci para oferecer aos netos”, desabafa Maeder, que recua à pandemia para mais adiante encarar o futuro. “Claro que a guerra e a crise energética nos está a afetar. Entre janeiro e julho aumentámos os gastos em 45%. Não sabemos como será o consumo daqui para a frente. Nem todos os clientes são milionários. Temos jovens que vêm aqui de vez em quando comprar uns sapatos ou uma carteira mas continuam a vestir H&M”. Quanto a movimentos de poupança, tendo em conta que o termómetro assinala 26 graus lá fora e nas torneiras dos WC corre água quente, parece que é uma ideia que até pode estar à venda mas por aqui ainda ninguém comprou.
O Observador viajou a convite da Mercedes-Benz Berlin Fashion Week