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Desigualdade na política. É esta a grande vitória do socialismo?

Esta não irá ser a grande vitória do “socialismo”. Mas os tempos também não serão auspiciosos para o “liberalismo” e a sua crença fundamental na mobilidade de bens e pessoas. Ensaio de Pedro Lomba.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Nestes tempos de pandemia, o mundo pôde mais uma vez confirmar que a globalização não é um processo simétrico e homogéneo. Há uma globalização vivida sobretudo na esfera da economia e do comércio internacional, que tem reduzido a desigualdade entre os indivíduos e os povos. Mas há outra globalização, dependente de processos políticos ou sustentada em aspirações políticas, que tem acelerado a desigualdade entre os Estados e as nações. A crise pandémica representa o choque entre estes dois movimentos divergentes da globalização.

Se levarmos em conta essa forma de desigualdade favorecida pela globalização política, perceberemos que a resposta à pergunta do título só pode ser negativa. Esta não irá ser a grande vitória do “socialismo”, cuja vocação internacionalista está a ser questionada pelo xeque às instituições globais. Mas os tempos também não serão auspiciosos para o “liberalismo” e para a sua crença fundamental na mobilidade de bens e pessoas. Qual será o vencedor desta encruzilhada histórica em que nos encontramos? Para já, suspeito que não existe. Esperem, então, por algo completamente diferente: incerteza, conflito e vulnerabilidade.

A globalização política e a grande divergência

A partir da segunda metade do século XX e, em especial, após a queda do Muro de Berlim, os Estados democráticos ocidentais foram fortalecendo as instituições de uma ordem multilateral crescentemente participada e regulada. Surgiu, ou reforçou-se, um direito internacional da segurança, do desenvolvimento, dos recursos ou dos direitos humanos, baseado em obrigações multilaterais e não já simplesmente bilaterais. Nas últimas duas décadas, este processo de internacionalização adquiriu contornos mais profundos. O velho padrão cooperativo em que os Estados e as organizações atuavam, através de tratados e declarações comuns, foi sendo substituído por formas de governação global, criadoras das suas próprias regras e decisões. As elites nacionais passaram a confrontar-se e a concorrer com as elites globais. As responsabilidades foram também sendo gradualmente transferidas para aquelas instituições e elites globais, gerando um efeito de deslocação e erosão dos poderes nacionais. Os direitos já não são só “fundamentais” na relação entre os indivíduos e o Estado; os direitos são agora “humanos”, pelo que até dispensam de certo modo relações com os Estados.

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A pandemia tem posto à prova a coexistência entre a permeabilidade dos Estados nacionais que voluntariamente aquiesceram ao poder das instituições do governo global, e outros Estados autoritários que conservaram e, nalguns casos, até reforçaram a sua lógica de controlo e rejeição daquelas instituições.

Sabemos que os Estados têm sido, por isso mesmo, os perdedores mais visíveis da globalização política, caracterizada pela confiança numa espécie de novo cientismo contrário à lógica da subsidiariedade: os problemas poderão ser melhor resolvidos se forem tratados de uma maneira global, a uma escala global e por agentes e instituições globais. Neste governo global, os agentes dominantes já não são os Estados mas as redes – e redes de especialistas, de funcionários, também de académicos, justamente conquistados pelo novo cientismo e as suas aspirações normativas. Na realidade, porém, estamos longe de poder afirmar que este processo ascendente da globalização política atingiu todos os Estados por igual. Como o historiador inglês Niall Ferguson demonstrou num livro recente, o conflito entre “hierarquias” e “redes” é recorrente na nossa História, assim como a necessidade de o gerir eficazmente. No atual contexto da política internacional, parece óbvio que os resultados daquele conflito não apontam no mesmo sentido. As hierarquias representadas nos Estados nacionais deixaram-se tomar no seu próprio auto-enfraquecimento, a favor da afirmação, tida como necessária e inelutável, das redes e blocos de poder global. Mas noutros Estados, com a China na primeira fila, hierarquias altamente disciplinadas têm conseguido responder ao poder emergente das redes globais, desafiando a sua entronização política e normativa.

A pandemia tem posto, assim, à prova esta coexistência entre a permeabilidade dos Estados nacionais que voluntariamente aquiesceram ao poder das instituições do governo global, e outros Estados autoritários que conservaram e, nalguns casos, até reforçaram a sua lógica de controlo e rejeição daquelas instituições.

A pandemia e a nova desigualdade

Um aspeto sem dúvida determinante para compreender a evolução da crise global causada pela pandemia está nessa relação triangular entre as democracias ocidentais, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e os Estados autoritários como a China, onde começou a propagação do novo coronavírus. A influência dessa relação para a aceleração da crise pandémica no mundo suscita muitas interrogações, para as quais não existem ainda respostas seguras.

A OMS representa um dos eixos da referida governação global e dos que mais saiu reforçado nas últimas duas décadas de globalização política. Não se resume a uma mera organização orientada para a cooperação ou troca de informações. A OMS pode aprovar, por maioria dos membros da sua assembleia geral, regras verdadeiramente vinculativas para os Estados. De facto, desde 2005 que a OMS, por influência norte-americana, aprovou os chamados Regulamentos Sanitários Internacionais, estabelecendo um quadro de normas vinculativas para o combate a situações de risco, epidemia e pandemia. Nunca se fora tão longe na definição de regras internacionais em matéria de saúde pública. A este respeito, em caso de crise pandémica, a OMS assumiu a competência para dirigir recomendações aos Estados, com o objetivo de permitir uma atuação concertada dos países afetados por calamidades públicas.

Para alguns comentadores políticos e jurídicos, a atuação da OMS no combate à pandemia suscita um conjunto de questões que necessitam ser esclarecidas. Terá a OMS sido demasiado benevolente com a política chinesa? E terá a OMS reagido tardiamente à aceleração da pandemia em Itália ou Espanha?

Ora, na atual crise, dentro dos poderes que lhe foram conferidos, a OMS optou por um registo de intervenção deliberadamente light e cauteloso. A OMS não preconizou oficialmente que os Estados adotassem lockdowns ou quarentenas forçadas, deixando aos Estados, com a escalada de infetados e suspeitos, a decisão de fechar as suas economias e suspender a mobilidade de pessoas. Isto ao mesmo tempo que o regime chinês é hoje acusado de ter violado os Regulamentos Sanitários Internacionais ante a passividade da própria OMS e o desconhecimento da restante comunidade internacional.

Na verdade, a 25 de fevereiro, a OMS ainda hesitava sobre se a situação justificava a declaração de pandemia. A 11 de março, elogiando os esforços de Itália, Irão, Coreia do Sul e China nas medidas de combate ao vírus, a OMS declarava finalmente o estado de pandemia. No início de abril, a OMS continuava a não recomendar o uso generalizado de máscaras, influenciando, por exemplo, a nossa Direção-Geral de Saúde (DGS), num evidente contraste com a posição hoje oficialmente assumida pelo Governo, que determinou o uso obrigatório de máscaras. Para alguns comentadores políticos e jurídicos, a atuação da OMS no combate à pandemia suscita um conjunto de questões que necessitam ser esclarecidas. Terá a OMS sido demasiado benevolente com a política chinesa? E terá a OMS reagido tardiamente à aceleração da pandemia em Itália ou Espanha?

O facto de as redes de poder global não terem estabelecido uma relação coerente com os Estados mais atingidos pela pandemia confirma o ponto crítico de que a globalização política pode ser vista como um elemento de desigualdade entre os Estados e as nações. Por que razão deverão Espanha e Itália confiar novamente num poder global que, dir-se-á, se mostrou impotente e, pior do que isso, colaborante com a demora de informação sobre a propagação do vírus? E o que dirão os cidadãos desses Estados se se confirmar que as “hierarquias” de outros lugares do mundo foram mais eficazes no combate ao vírus?

A competição normativa e o futuro da governação global

Esse pode ser o efeito deletério da nova desigualdade produzida pela globalização política. Nesta nova desigualdade, estamos precisamente a atravessar um choque competitivo entre todas as regras e soluções que têm sido experimentadas no combate à pandemia: as recomendações da OMS, as recomendações da Europa, os Estados que impuseram lockdowns, os Estados que não impuseram lockdowns, os Estados que seguiram as recomendações da OMS, os Estados que não seguiram as recomendações da OMS, os Estados autoritários, os Estados liberais, os Estados abertos, os Estados opacos, os Estados que usaram tecnologias de deteção da doença, os Estados que rejeitaram tecnologias de deteção da doença.

A competição entre estes diferentes regimes define a medida da nossa vulnerabilidade. Porque é que os resultados do combate ao vírus são melhores nuns lugares do que noutros? Porque é que a pandemia tem sido aparentemente tão aleatória nos seus efeitos e impactos? O que resultou e o que falhou? Suponho que nos próximos tempos teremos mais informação para estas dúvidas. Entretanto, é possível que seja este um momento em que, como se dizia numa famosa série de televisão, “ninguém ganha; um dos lados perde apenas mais lentamente”.

Este ensaio foi publicado originalmente na revista de aniversário do Observador, que está à venda nas bancas e online.

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