Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Arranquemos com uma afirmação que muitos provavelmente considerarão um total desaforo: a Covid-19 promoveu a equidade no acesso a cuidados de saúde. E, para reforçar a insolência, acrescento que o fosso entre ricos e pobres nunca se esbateu tanto como no tratamento desta pandemia. E tudo por uma razão simples: a imperiosidade da doença sobrepôs-se ao vício da ideologia.
Mas, se houve mais equidade, não é porque a Covid-19 tenha afectado todos por igual. Pelo contrário, esta doença é tremendamente desigual. Sabemos que a Covid-19 afecta com maior incidência determinados grupos de risco, entre os quais os mais idosos. Sabemos também que pessoas com doenças crónicas, tais como diabetes, hipertensão, insuficiências respiratórias ou imunológicas, são especialmente vulneráveis. E, finalmente, sabemos que a letalidade causada pela Covid-19 é maior em homens do que em mulheres, em linha com a esperança média de vida, substancialmente menor no caso dos homens.
A Covid-19 foi geradora de profundas desigualdades também com os doentes não-Covid-19, que viram os seus diagnósticos cancelados, as suas consultas de especialidade adiadas e as cirurgias proteladas. As consequências para a saúde pública serão forçosamente elevadas. Nos primeiros meses de combate à Covid-19, de acordo com informações prestadas por especialistas, os diagnósticos oncológicos caíram 80%. O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares alertou ainda para o facto de 75% da actividade cirúrgica agendada entre o dia 15 de Março e 15 de Abril ter sido cancelada ou adiada. O mesmo sucedeu para 60% a 70% das consultas externas. Os dados estatísticos reportados no próprio Portal do SNS confirmam esta tendência e, a este respeito, são esclarecedores.
Também a Ordem dos Médicos sinalizou que doentes prioritários estavam a ser relegados para segundo plano. Ora, se uma cirurgia menor pode ser adiada por uns meses, um transplante ou uma cirurgia oncológica não pode, sob risco de deterioração da saúde do paciente. Isto mesmo está reflectido nos números de excesso de mortalidade, disponibilizados pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e pelo Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, que indicam uma subida no número de mortes por dia. A premência de salvar doentes Covid-19 fez com que muitos outros vissem os seus problemas agravados e, no limite, possam vir a morrer disso. Para além de desigual na forma como atacou a população, a Covid-19 parece matar também aqueles que dela não padecem.
Este fenómeno não é, aliás, exclusivo de Portugal. O Cancer Research UK, do Reino Unido, estima que cerca de 200 mil pessoas/ semana não estão a realizar os rastreios para diversos tipos de cancro. Serão cerca de 800 mil menos rastreios por mês. Também os exames de diagnóstico, especialmente de casos urgentes, caíram cerca de 75% nestes primeiros meses de combate à Covid-19. De forma similar, a terapêutica foi suspensa, diminuindo a sua eficácia à medida que o tempo passa. Como consequência, as taxas de prevalência oncológica irão forçosamente aumentar, assim como a mortalidade associada. Este efeito não será imediato, mas dilatado no tempo. O que não se fez hoje irá ser pago amanhã. E custará muitas vidas.
Desigualdade na doença, equidade no acesso
Nem tudo foi mau nestes primeiros meses a lidar com a Covid-19. Nomeadamente o facto de a desigualdade com os doentes não-Covid-19 contrastar com a equidade no tratamento à Covid-19. Este aparente paradoxo — uma doença tão desigual gerar uma resposta equitativa — resolve-se se pensarmos na forma como o sistema de saúde está organizado e faz a seriação dos pacientes: tratando de forma diferente, e não igual, o que é diferente. Aqueles que mais precisam, isto é, os que demonstram uma maior urgência clínica, são os primeiros a ser tratados. Assim o é em circunstâncias normais e assim o foi no caso desta pandemia.
Não obstante tudo isto, quando olhamos para as listas de espera para consultas de especialidade e cirurgias no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que em alguns casos chegam aos quatros anos de espera, não podemos senão concluir que esta equidade no acesso aos cuidados de saúde é capa de anais de bioética, mas nota de rodapé no SNS.
É no acesso, ou na falta dele, que há muito se geram as maiores iniquidades no nosso sistema de saúde. Quem é funcionário público tem direito à ADSE, pelo que pode recorrer ao sector privado ou social para trespassar filas do SNS. Trabalhadores com direito a seguro de saúde estão em situação análoga, com maior ou menor cobertura comparativamente à ADSE, mas o mesmo acesso a cuidados no sector privado e social. Já quem tem dinheiro pode escusar-se a ter um seguro de saúde e recorrer directamente aos profissionais. E quem é mais pobre? Esse lá terá de ir para a fila. Resta-lhe o deleite, tantas vezes apregoado, mas sobretudo pregado, de saber que temos “o melhor SNS do mundo”, pese embora estar a meses, quando não anos, de distância de obter a sua consulta. Valha-lhe isso, na falta de uma vaga.
Em condições normais é exactamente isto que acontece: enquanto uns, geralmente os mais vulneráveis, se amontoam em filas de espera, quem tem meios encontra maneira de resolver o seu problema. Em causa não está a qualidade dos tratamentos prestados, que é indiscutivelmente de excelência, ou o mérito dos profissionais de saúde do SNS, que é inexcedível. Em causa está o tempo de espera para obter os tratamentos. Mesmo em casos urgentes, o tempo de espera pode ascender a meses. Enquanto assim for, nunca existirá equidade ou sequer um verdadeiro acesso universal aos cuidados de saúde em Portugal.
Curiosamente, a emergência de uma pandemia como a Covid-19 esbateu um pouco este fosso entre ricos e pobres no acesso aos cuidados de saúde. E não foi porque tenhamos repentinamente reforçado o SNS com recursos, a ponto de ser capaz de responder a todas as necessidades, o que aliás é outra ilusão. Não, o SNS não conta com mais hospitais nem com mais centros de saúde desde que a pandemia começou. A equidade aumentou porque a ideologia ficou relegada para segundo plano. Quando o tema é salvar vidas, faz toda a diferença.
E pluribus unum
Repare-se: a resposta à Covid-19, ao contrário do que geralmente acontece, envolveu a colaboração de todos – sector público, sector privado e social. Por uma vez, tornou-se relativamente indiferente quem prestava o serviço, desde que o prestasse nos termos e ao preço contratualizado. Isto foi especialmente notório nas colheitas de testes e nas análises laboratoriais, que foram imediatamente contratualizadas a vários operadores, públicos e privados, capazes de as fazer. Em tempo recorde, foram montados centros móveis de recolhas. Também as farmacêuticas, farmácias comunitárias ou empresas de dispositivos médicos se mostraram à altura do desafio, reagindo prontamente às prementes necessidades. Por uma vez, conseguimos trabalhar juntos num fito comum: o de servir os portugueses sem nos perdermos em arrazoados ideológicos. Deixou de ser público ou privado – foi público e privado. E foi serviço público.
Não significa isto que mais não pudesse ter sido feito, e provavelmente teria de o ser se a emergência assim o exigisse e o número de casos ultrapassasse a capacidade instalada do SNS. Colocar os pacientes Covid-19 numa fila de espera durante meses não seria nunca opção, pelo que o governo seria obrigado a delegar, e o sector privado e social seriam chamados a ajudar. Muitos prontificaram-se, aliás, a fazê-lo, esvaziando a necessidade de accionar mecanismos legais (como requisições civis).
Ora, o que tudo isto mostrou é que as listas de espera não são, então, uma inevitabilidade. Ou seja, provou que as desigualdades do acesso à saúde em Portugal têm solução. Da mesma forma que foi possível contratualizar com o sector privado e social um conjunto de serviços a serem prestados, também é possível deixarmos de pensar apenas no SNS para começarmos a pensar no sistema de saúde como um todo. A dicotomia público ou privado não tem qualquer razão de ser, especialmente quando está em causa a vida de pessoas.
É justamente isto que a maior parte dos países europeus faz: independentemente de quem financia, os cuidados médicos são prestados pelos sectores público, privado ou social, e cabe a cada cidadão escolher onde se quer dirigir. É muito mais do que liberdade de escolha: é liberdade de não ficar sujeito a anos de espera por uma cirurgia. Sobretudo para os mais pobres e vulneráveis será uma bênção, pois todos os outros encontram forma, mas sobretudo dinheiro, para se remediarem. E, forçosamente, será também uma forma de aliviar a enorme pressão que o SNS enfrenta e que deteriora os cuidados de saúde que presta.
E foi justamente isto que a ministra da Saúde assinalou recentemente a respeito de todos os cuidados de saúde que ficaram por prestar por causa da pandemia: o SNS, sozinho, será incapaz de recuperar a actividade suspensa, e será necessário recorrer ao sector privado para o fazer. Esta decisão contrasta com algumas políticas de saúde recentes, como a não renovação de algumas PPP, ou com a carga ideológica com que foi feita a discussão da nova Lei de Bases da Saúde, que mereceu até reparos de dois ex-ministros, Maria de Belém e Adalberto Campos Fernandes. Esta decisão não foi tomada certamente ao som de “A Internacional”, confirmando-se, portanto, que a Covid-19 colocou a ideologia numa gaveta.
Já existem mecanismos montados que podem ser usados, como o recurso ao SIGIC, criado pelo ex-ministro da Saúde Luís Filipe Pereira, que garante a emissão de vales-cirurgia para os agendamentos que ultrapassem os tempos máximos de resposta garantidos. A iniciativa pode, e deve, ser alargada, permitindo que também as consultas de especialidade possam ser realizadas, mediante prescrição do médico de família, numa clínica, num hospital ou numa misericórdia. Onde for mais célere e sobretudo no local que melhor representar o superior interesse daquela pessoa que por vezes passa incógnita no meio da quezília política: o paciente.
Importa referir também que, ao contrário do que muitos apregoam, não se trata de subsidiar os privados. Bem pelo contrário: o Estado pode contratualizar os serviços a um preço igual ao custo público comparável, ou seja, a quanto lhe custa prestar aquele serviço nos seus próprios hospitais. Pode até contratualizar a um valor inferior, como fez no caso das parcerias público-privadas, sendo que a diferença é um prémio de eficiência. Esta potencial poupança significaria que mais cuidados de saúde poderiam, no limite, ser prestados. Menos filas de espera, mais consultas e mais cirurgias. Menos ideologia. Mais saúde.
Uma vacina para o SNS
Onde provavelmente eu e a ministra da Saúde divergiremos é no que fazer no pós-Covid-19. Se a solução adoptada no contexto da pandemia permitiu aumentar a equidade no acesso aos cuidados de saúde, não posso senão questionar o motivo para não a manter. Se esta solução serviu os portugueses, diminuiu assimetrias e aumentou a equidade, mostrando o potencial do seu alargamento a mais serviços na saúde, por que não a implementar de forma permanente no SNS? A pergunta é retórica, porque desconfiamos da resposta: serenada a emergência, voltarão os despiques ideológicos. A pressão dos partidos da extrema-esquerda voltará a subir e o governo tenderá a claudicar perante tacticismos políticos, muitos também internos, onde se encontram alguns ferozes opositores da iniciativa privada.
Mas a questão que importa responder é se, exceptuando o preconceito ideológico, há algum motivo válido, sério, racional, para que esta solução não se possa manter. As filas de espera já existiam antes e nada mudou para que não continuem a existir. Que motivos há para que aqueles que receberam agendamentos de consultas ou cirurgias para 2021 ou 2022 não possam ser reencaminhados para serviços privados ou sociais que possam garantir as marcações ainda este ano? Estes não são os ricos nem os que têm alternativa. São justamente os outros, para quem isto faria toda a diferença. Aqueles que mais beneficiariam de mais equidade.
Estas perguntas são sobretudo relevantes quando lembramos, como fizemos no início, que os diagnósticos oncológicos caíram 80% durante a pandemia. Estas decisões terão impacto não agora, mas daqui a dois anos, quando, esperamos, a Covid-19 for pouco mais do que um capítulo de livros de epidemiologia e virologia. Seja como for, é justamente nesses momentos que o mais importante é garantir que todos os portugueses, independentemente da sua condição financeira, da sua idade, da sua religião, cor de pele ou género, têm acesso universal a cuidados de saúde a tempo e horas.
O combate à Covid-19 mata, mas também mostrou como salvar mais vidas. E isso só será possível de alcançar quando formos capazes de dar significado à expressão, tantas vezes banalizada, de “colocarmos o paciente no centro”. Se queremos mesmo colocar o paciente no centro, talvez seja avisado começar por colocá-lo dentro do sistema de saúde, seja ele público, privado ou social.
Este ensaio foi publicado originalmente na revista de aniversário do Observador, que está à venda nas bancas e online.