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Em Portugal, a morte de Lancelote Rodrigues, no dia 17 de junho de 2013, aos 89 anos, quase passou despercebida, não fosse o que escreveu a agência Lusa, em Macau, e que acabaria por ser reproduzido aqui e ali. Era mais uma notícia entre tantas. No Reino Unido, no entanto, a atenção foi mais demorada. O jornal The Times dedicou um obituário ao “padre católico em Macau que passou 50 anos a ajudar refugiados a escapar aos conflitos e à perseguição na China, no Vietname e em Timor-Leste”. Também a revista The Economist destacou o “padre dos refugiados de Macau”. No obituário que fechou a edição da prestigiada publicação do final de junho de 2013, lá está a fotografia de Lancelote Rodrigues, ainda jovem, rodeado por aqueles a quem dedicou a vida e onde se sentia em casa, num dos muitos campos de refugiados que se foram improvisando em Macau ao longo de décadas, e onde ele sempre marcou presença – sorridente, de braços abertos, ou a pegar numa viola para cantar com quem o quisesse acompanhar.
Foi o último sobrevivente de uma longa geração de padres que ajudaram a definir a faceta acolhedora e solidária de Macau, como declarou a revista “Oriente Ocidente”, do Instituto Internacional de Macau, que, em 2008, lhe dedicou uma festa de homenagem onde se ouviram uma peça coral sacra inspirada em versões de Bulhão Pato, composta pelo padre Lancelote, e a canção popular “Tia Anica de Loulé”.
Um oásis de paz
Fundada como entreposto comercial, em 1557, Macau desde logo exibiu uma vocação de terra franca, aberta. Por ali circulavam viajantes e mercadorias de todo o mundo e de toda a sorte. Numa das muitas declinações da sua paradoxal natureza de ambiguidades, nesta praça de comércio estabelecida nos limites de dois impérios vai revelar-se uma característica imaterial de cidade tolerante, particularmente saliente em tempos de escassez e miséria. E foram muitos. Em todas essas crises, porém, a cidade da qual se disse que podia ter as ruas pavimentadas a ouro (tanto era o metal precioso que por lá passava), quando tudo parecia faltar, mostrava feitio generoso e magnânimo. Foi assim com os cristãos japoneses perseguidos, em meados do século XVII, e, logo a seguir, com os muitos chineses que fugiram ao derrube da dinastia Ming e à instalação, na corte, em Pequim, dos manchus Qing. Nos séculos seguintes, Macau não trairia a identidade de caridoso porto de abrigo.
A receber todos os que fugiam de revoluções, guerras, fome e miséria estiveram, invariavelmente, os homens de batina. A par dos pioneiros mercadores, os missionários são as outras primordiais e contínuas personagens marcantes da história de Macau, ajudando a definir os nítidos contornos da “Cidade do Nome de Deus”, berço do cristianismo no Extremo-Oriente.
No livro “A China e os Chins”, de 1888, o diplomata Henrique Carlos Ribeiro Lisboa, um dos primeiros brasileiros a visitar oficialmente o Império do Meio (e autor da primeira obra sobre a China na literatura brasileira), descreve como não eram, apenas, “os janotas e as elegantes de Macáo que lhe dão um cunho especial entre as cidades da China”. Avultavam outras figuras e silhuetas na cidade, movimentando-se nas “ruas escabrosas, com suas escadinhas que lembram as velhas calçadas lisbonenses”. Por entre “as suas casas de construcção irregular, ornadas de balcões de madeira verde, estylo arabe, ou de janellas engradadas”, destacavam-se “as numerosas igrejas e os conventos empoeirados, residências de padres que circulam gravemente, como quem tem consciência da sua influência, vestindo amplas batinas e deitando a bênção sobre os transeuntes; o continuo repique dos sinos e o retumbar dos tambores da guarnição”, tudo o que dava a Macau “uma physionomia que contrasta com a das outras cidades, onde predomina o espírito prático dos inglezes e em que a actividade comercial absorve todas as outras manifestações da vida”.
O conservadorismo natural dos padres, bem como o seu moralismo, conciliaram-se com uma cidade que ficou bastas vezes à margem: do progresso e da modernidade, sim, mas também de conflitos e cataclismos que assolaram países e regiões vizinhas, acabando por poupar a pequena e pacata Macau, já quase insignificante, mas que não ficava esquecida, no entanto, por quem procurava refúgio. O século XX vai ser pródigo em exemplos; Lancelote Rodrigues foi testemunha em primeira mão.
As vítimas do comunismo e os “católicos de arroz”
Lancelote Miguel Rodrigues nasceu em Malaca nas vésperas de Natal, no dia 21 de dezembro de 1923. Era um dos 13 filhos de pai português e mãe malaia-holandesa. Completou a instrução primária na cidade da Malásia que os portugueses conquistaram em 1511 e onde primeiro estabeleceram contacto com chineses.
Com apenas 12 anos, Lancelote foi enviado para Macau, onde ingressou no Seminário de São José. Aí, leva a cabo os estudos eclesiásticos e aprende também português, já que a sua língua materna era o inglês, seguida do malaio (mais tarde, vai tornar-se fluente, também, em francês e chinês).
O seu trabalho junto dos refugiados começa ainda antes de ser ordenado padre. Em 1948, quando se tornava claro que os comunistas liderados por Mao Tsé-tung iam conquistar o poder, começam a chegar a Macau vagas de refugiados portugueses de Xangai, cidade que estava a ficar deserta de estrangeiros, receosos do futuro novo regime na China.
Uma vez que estes refugiados apenas falavam inglês, o bispo de Macau da altura, o jesuíta João de Deus Ramalho, atribuiu a missão de acolhê-los a Lancelote Rodrigues, o único que, entre os religiosos de então, dominava a língua. O bispo, recordaria Lancelote muito mais tarde, em declarações ao Correio da Manhã, “não acreditava” na sua “vocação”. Mas a dedicação foi total. Como a exígua Macau não abundava em espaços desocupados, os refugiados de Xangai vão ser instalados no Canídromo, tendo Lancelote Rodrigues ido viver também para o asilo inventado, conta a revista “Oriente Ocidente”. No ano seguinte, o bispo de Macau ordenou-o padre. Tinha 22 anos.
Nesse ano de 1949, a 1 de outubro, Mao proclamou, na Praça de Tiananmen, em Pequim, a República Popular da China. O Kuomintang (Partido Nacionalista), apoiado pelos Estados Unidos, tinha perdido a batalha final e as suas tropas bateram em retirada para o sul da China, onde ficavam os dois territórios chineses ocupados por estrangeiros, Macau e Hong Kong. Todavia, o pragmatismo iria falar mais alto que a ideologia. Se fossem “libertados”, a China comunista fechava as duas janelas abertas para o mundo, e o isolamento implicaria custos incomportáveis. A marcha das tropas vermelhas para sul, portanto, haveria de parar às portas de Macau e Hong Kong. Mas isso não travou milhares de civis.
Com a aproximação do Exército de Libertação Popular, os nacionalistas e todos aqueles que se sentiam ameaçados refugiam-se em Macau (muitos ambicionavam chegar a Hong Kong, que tinha uma política menos “aberta”). Logo no início de novembro de 1949, apenas um mês depois da implantação do novo regime, com os comunistas a ocuparem a ilha da Lapa, do outro lado (já no continente chinês) do Porto Interior de Macau, são muitos os que procuram o território português como abrigo.
“Macau ficou a abarrotar de gente”, recorda outro dos padres célebres da história moderna de Macau, Manuel Teixeira, antigo professor de Lancelote no Seminário de São José. Ouvido na série documental “Macau Entre Dois Mundos”, produzida para a RTP, em 1999, o padre Teixeira conta que o apoio era feito consoante nacionalidades: o governo de Macau sustentava os portugueses, o cônsul britânico, os ingleses, “e assim por diante”; quanto aos chineses, “ninguém os sustentava”.
A pobreza era imensa, relata o padre Lancelote, também ouvido no mesmo programa, pelo que se tornou imperativo “fazer tudo o que fosse possível para atenuar essas penas”. Nasceram assim os “católicos de arroz”, chineses que se convertiam para comer uma tigela de arroz. “Havia batismos de 300 chineses, 600 chineses. De uma vez! Todos queriam ser católicos para ter arroz”, conta Manuel Teixeira.
Entre os refugiados, havia professores universitários que se dedicavam à agricultura para se sustentarem e até antigas altas patentes do exército nacionalista, como um ex-general de Chiang Kai-shek que puxava riquexós (triciclos de passageiros) pelas ruas de Macau, que só voltaram à sua proverbial pacatez em 1951. O sossego foi, todavia, temporário.
O grande salto para Macau
Entre 1949 e 1959, calcula-se que Macau tenha recebido, pelo menos, 50 mil refugiados chineses que quiseram deixar para trás as imposições comunistas e a fome. Partiam a nado, em embarcações de toda a espécie, a pé, saltando muros, desafiando o arame farpado e os tiros dos militares chineses. Alguns desembarcavam em plena Avenida da República, onde chegavam a ser recebidos pelas associações dos naturais da terra de onde eram oriundos
Na década de 1960, os relatórios da PIDE continuaram a dar conta dessa realidade, explicando que “todos” eram “unânimes em declarar que o demasiado trabalho que lhes era imposto, a opressão e a falta de alimento eram o motivo da sua fuga. Eram quase todos provenientes dos distritos vizinhos de Macau. As vagas variavam consoante a situação, mas não apenas a política. A PIDE admitia que, “por motivo de intempéries registadas nos últimos anos no Continente Chinês, a escassez de alimentos, em especial de óleos vegetais, fez-se sentir na China, o que pode vir a traduzir-se num aumento do número de refugiados de Macau”. Em 1961, calculava-se que 40% da população de Macau era composta por refugiados, lê-se num relatório. A maior parte, observavam as autoridades portuguesas, vivia à custa de outros.
Nos “relatórios periódicos de contra-informação de Macau” elaborados pelo Comando Militar do território, e que serviam de base às informações da polícia política, foi sendo reportada ao longo das década de 1950 a chegada dos refugiados. Nem todos se dispunham a partilhar os motivos que os tinham levado a Macau, como os mais jovens, que tinham nascido já sob o regime comunista e se mostravam “aturdidos” e “desconfiados”. Mais faladoras eram as “mulheres velhas”, que desaprovavam abertamente o sistema de comunas, com todas as suas “nunca vistas” dureza e escravidão.
A partir de 1957, vésperas do “Grande Salto em Frente” — a desastrosa campanha lançada por Mao Tsé-tung, que previa uma radical reorganização da produção agrária, através de métodos intensivos, com o objetivo de acelerar o processo de industrialização do país —, Macau vai voltar a receber novas e sucessivas ondas de chineses.
Numa cidade de 170 mil habitantes (em 1963, esse número vai crescer para cerca de 280 mil), calculava-se que chegassem, mensalmente, 800 refugiados. Muitos eram “bocas inúteis” – velhos, estropiados, doentes, cegos, todos os que a China comunista não considerava produtivos.
As autoridades militares de Macau enviavam para Lisboa informações de que “os comunistas chineses planeavam expulsar os cegos, provavelmente com a intenção de os mandarem para Macau”. Segundo as fontes que citavam, “as autoridades comunistas” estavam a intensificar “a campanha de libertação da província de Kwangtung [Guangdong] de pessoas que não trabalham”. Nos últimos meses de 1959, contavam-se em Macau mais de 260 cegos sem lugar na “China progressiva”, tendo-se tornado, a maior parte, mendigos. “O único refúgio para estes destituídos são as instituições de caridade e a hospitalidade do povo de Macau.”
Ainda em 1959, as autoridades portuguesas recebem um alerta do Órgão Informativo do Partido Kuomintang, que continuava a operar em Hong Kong, sobre “agentes comunistas em Macau disfarçados de cegos, mendigos e vadios, que sob a capa do disfarce exercem as suas atividades junto de todas as entidades”. Pretendiam, desse modo, “infiltrar-se nas instituições de caridade ou outras mantidas pela Missão Católica, oferecendo-se ao serviço das mesmas”.
“Agente da CIA, eu?”
A desconfiança comunista relativamente à Igreja era mútua e sem dissimulações. Durante este período, foram protagonistas de um combate que também em Macau teve os seus capítulos, quando sopraram os fortes ventos da Revolução Cultural, em 1966, 67 e 68.
Nessa altura, o padre Lancelote foi acusado de estar ao serviço da CIA, os serviços de informações secretos dos Estados Unidos, que os jornais chineses de Macau mais próximos dos comunistas diziam funcionar no Centro Católico da diocese da cidade.
À Revista Macau, em 1993, o padre Lancelote admitia que, desde 1949, com a chegada dos refugiados de Xangai, conseguiu “apoios financeiros substanciais, sobretudo americanos”. Calculava mesmo que, entre 1952 e 1967, tivesse angariado apoios “no valor de 90 milhões de dólares”. Não sem custos: “Claro, no calor da Revolução Cultural, alguns revolucionários mais fervorosos lembraram-se de que eu era amigo dos americanos — o que, de resto, era verdade e eu nunca neguei — e desataram a chamar-me agente da CIA. Fácil, portanto. A coisa esteve feia, mas passou — e eu cá estou”.
De facto, os conturbados tempos da “Grande Revolução Cultural Proletária”, com os seus inclementes ataques contra o “tigre de papel” imperialista, que também se viraram contra a Igreja, em Macau, não vão, no entanto, fazer soçobrar os esforços para acolher os que fugiam ao comunismo – não apenas chinês.
Quase no final da década de 1970, alcança a costa de Macau o primeiro barco que tinha partido do Vietname com 23 pessoas que fugiam à Guerra da América, como o conflito ficou conhecido no país asiático. Entre novembro de 1977, data da primeira leva destes “boat-people”, e 1991, o padre Lancelote foi responsável pelo acolhimento e realojamento de 8.664 refugiados vietnamitas. Com a sua ajuda e contactos, também com elementos da CIA, com quem dizia que se “dava bem, tomava umas bebidas e falava”, milhares de vietnamitas começaram uma vida nova nos Estados Unidos, no Canadá, Austrália ou Nova Zelândia, entre outros países, mas não Portugal, que só mostrou disponibilidade para receber 15 refugiados. “Em parte”, explicava Lancelote Rodrigues, “devido ao processo de descolonização de 1974/75”.
Pouco depois de os últimos 155 residentes do campo de refugiados vietnamitas de Ká-Hó, em Coloane, terem visto garantido alojamento no exterior, o padre Lancelote, súbdito britânico por nascimento (tinha dupla nacionalidade), recebeu, em 20 de junho de 1992, a insígnia de membro da Ordem do Império Britânico, atribuída pela Rainha Isabel II. “Todos trabalharam comigo e para mim e eu é que levo a medalha”, comentou, sorridente, sobre a condecoração entregue pelo então cônsul-geral de Inglaterra em Macau, Stephen Day. “Sozinho não teria conseguido realizar o meu trabalho, que só se tornou possível pela colaboração das autoridades e de muitas pessoas de Macau”.
Só três anos depois, em 1995, Lancelote Rodrigues vai receber a medalha de Grande Oficial da Ordem Infante D. Henrique, concedida pelo então Presidente Mário Soares.
A década de 1990 e a transição da administração de Macau para a China não terminariam sem uma última vaga de refugiados, desta feita, cerca de 400 timorenses que escapavam à violenta ocupação indonésia. Os últimos 80 refugiados de Macau deixaram o território em novembro de 1999 rumo a Portugal. Faltavam poucos dias para que fosse arriada, na colónia portuguesa, a bandeira das quinas. Missão cumprida.
Para quem conheceu Lancelote Rodrigues, é fácil imaginá-lo a pegar no copo de Johnny Walker Black Label, que religiosamente preferia, acendendo depois um cigarro, vício (ou prazer, diria) que não perdeu, nem depois de ter sido apanhado pelos jesuítas a fumar no seminário – de castigo, colocaram-lhe a secretária, sozinha, no meio de um corredor de 80 metros.
O padre Lancelote sabia como gostaria de ser recordado, confessou ao Correio da Manhã, em 2009: “Como um homem alegre, um bonacheirão que gostava dos pobres e de uísque”. Para que não restassem dúvidas, acrescentou: “Recebi uma medalha das mãos da Rainha de Inglaterra, onde me chamam Sir Lancelote. Mas Sir Lancelote é o da Távola Redonda. Eu sou o Lancelote da garrafa redonda.”
Podia ser, também, um agente pouco secreto, como confidenciava à Revista Macau: “Algumas pessoas chamam-me, não o agente 007, que já não tenho idade para fazer as coisas que ele faz, mas antes o 00 Cross. Justo, justo. É isso: eu sou o 00 Cross.”