“Criei o meu próprio negócio sozinho e agora estão a querer tirar-nos o tapete”. O desabafo de João Bolou Vieira, fundador e presidente do Homing Group, chega num momento em que ainda não se conhece a versão final do diploma que o Governo vai apresentar para o alojamento local. A intenção inicial, pelo menos a ter em conta o documento que esteve em consulta pública até final da semana passada e que vai esta quinta-feira a Conselho de Ministros, é a de pôr fim a novos licenciamentos para este tipo de atividade exceto no espaço rural, além de assumir que a 31 de dezembro de 2030 todas as licenças existentes vão ser revistas. E, se autorizadas, terão de ser renovadas a cada cinco anos.
Mas há mais na proposta. Esta dá poder às assembleias de condóminos para pôr fim a um alojamento local em determinado prédio, se aprovada por metade da permilagem do edifício. “Para efeitos do cancelamento imediato do registo, a assembleia de condóminos dá conhecimento da sua deliberação ao presidente da Câmara Municipal territorialmente competente”, determinando o cancelamento do registo “a imediata cessação da exploração do estabelecimento”. A letra de lei proposta facilita a decisão por parte dos condomínios, ao contrário do que acontece atualmente. Uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que fixou jurisprudência, determinou essa possibilidade mas o processo tem de chegar a tribunal. Já antes, e desde 2018, existia um mecanismo que permite aos condomínios solicitar o cancelamento com base em queixas de ruído. Mas como foi noticiado em abril do ano passado pelo Jornal de Negócios chegaram às autarquias “umas poucas dezenas de casos”.
Mas, para João Bolou Vieira, esta possibilidade de deixar que metade dos condóminos decidam o futuro do alojamento local num determinado prédio é discricionário. “Podem acabar com o alojamento local só porque sim”, sem justificação. E o gestor garante que já começou a receber cartas para cancelar alojamentos, sem que haja fundamentação ainda para o efeito. João Bolou Vieira diz estar há 10 anos no negócio e garante que a maior parte dos apartamentos são pequenos, ou seja, alojam poucas pessoas, para argumentar que não é o alojamento local a fonte de ruídos e de festas que perturbem o bem estar dos restantes habitantes.
Num recente relatório revelado pela Câmara Municipal de Lisboa diz-se também que “apenas uma em cada 10 queixas supostamente relacionadas com alojamento local se verifica estar efetivamente relacionada com a atividade: após fiscalização no local, verifica-se que as queixas por ruído, lixo ou obras ilegais, recebidas pela CML e encaminhadas para o Gabinete de Urbanismo Comercial e Alojamento Local (GUCAL-CML), resultam de outra atividade instalada na fração, tipicamente arrendamento habitacional”.
Contribuição extraordinária é sobre o valor do imóvel e não sobre os rendimentos
Houve ainda no diploma proposto pelo Governo mais uma surpresa. O alojamento local vai ter de pagar uma contribuição extraordinária (CEAL) caso se localize em zona de pressão urbanística (além de os rendimentos serem taxados nos respetivos impostos sobre rendimentos). “A taxa aplicável à base tributável é de 35 %”, que incide sobre a área dos imóveis, tendo em consideração o coeficiente económico do alojamento local e o coeficiente de pressão urbanística.
“Estes coeficientes assentam em valores de referência e em médias publicadas anualmente, em função da localização do imóvel e área do mesmo (ao invés de dependerem do rendimento efetivamente obtido no âmbito do Alojamento Local)”, realça, numa nota explicativa, a sociedade de advogados Rogério Fernandes Ferreira & Associados. Ou seja, mesmo que desse alojamento local não se extraia qualquer rendimento a contribuição terá de ser paga, já que incide sobre o imóvel.
Esta sociedade de advogados alerta que, “tal como sucede com a maioria das contribuições sobre outros sectores económicos específicos, às quais geralmente são apontadas críticas relacionadas com o desrespeito pela reserva de lei ou da igualdade, ou de outras regras legais, financeiras e orçamentais que lhes pode ser assacada, a CEAL não irá fugir, tudo indica, a alguns desses vícios”.
Desde logo, não existe uma definição temporal para a sua aplicação na proposta de lei. Mas a Rogério Fernandes Ferreira & Associados fala, também, de eventuais problemas constitucionais, “nomeadamente quanto à existência de rendimentos presumidos, ao princípio da capacidade contributiva e quanto à existência de dois impostos sobre o rendimento pessoal, o que a Constituição não admite”. Com interrogação constitucional é ainda apontada a eventual retroatividade da lei ou a eventual violação do princípio de confiança pelo facto de “os coeficientes indicados para o cálculo desta CEAL por referência ao ano de 2023, e a ser liquidada em 2024, seguirem médias e critérios por referência ao ano de 2019, ou seja, um ano pré-pandemia e que pouco ou nada reflete o atual estado do mercado habitacional”.
O Governo pretende, ainda, avançar com benefícios fiscais para os casos em que os proprietários de alojamento local transfiram as casas para arrendamento habitacional. “Não vai resolver nada dos problemas da habitação”, atira João Bolou Vieira, para quem a falta de imóveis para arrendamento a custos acessíveis não é culpa do alojamento local. No estudo realizado por Lisboa conclui-se que o centro histórico tem rácios muito elevados de alojamento local, mas também perdas muito significativas de população. E concluiu-se que cerca de 8% dos Alojamentos Familiares Clássicos em Lisboa poderão estar afetos a alojamento local. “As freguesias com maior número de alojamentos familiares clássicos afetos a alojamento local são Santa Maria Maior (67%), Misericórdia (50%) e Santo António (24%) em contraste com as freguesias de Santa Clara, Carnide, Benfica, Marvila e Lumiar, em que o AL tem uma expressão ínfima no contexto dos Alojamentos Familiares Clássicos”, lê-se no estudo.
João Bolou Vieira não mostra dúvidas de que o Mais Habitação é um pacote de medidas que afetam o alojamento local e que criam instabilidade. Mas vai mais longe nas críticas. “Vai arrasar o Algarve que vive do turismo e onde o alojamento local tem peso relevante”. Muitas das pessoas aproveitam o alojamento local para rentabilizar casas de férias, ou seja, utilizam as habitações e quando não estão colocam-nas disponíveis ao turismo. O mesmo gestor realça, por outro lado, que estas regras — que no seu entender visam acabar com o alojamento local — podem também levar a que o mercado paralelo volte a crescer. Segundo o portal de dados abertos do Instituto do Turismo existem cercas de 42 mil registos no distrito de Faro de alojamentos locais. De acordo com a mesma base de dados, o distrito de Lisboa conta com mais de 26,6 mil alojamentos locais (sendo 20 mil no concelho de Lisboa), e o distrito do Porto com mais de 13,4 mil (cerca de 10 mil no concelho).
No estudo divulgado pela Câmara de Lisboa, o número de títulos de alojamento local (AL) detidos por pessoa singular (no concelho) “totaliza cerca de 49% do total. Se a estes se somar as pessoas coletivas que detêm apenas um (5%) e entre 2 e 3 (8%), pode concluir-se que cerca de 62% das licenças serão tituladas por particulares ou pessoas coletivas com menos de 3 AL”. Além disso, diz o estudo, “as entidades titulares de um número muito elevado de registos (>50) tenderão a tratar-se de entidades gestoras, e não proprietários individuais. Frequentemente, o pedido de licença de AL é feito por uma entidade gestora. Estas entidades são constantemente arrendatárias ou contratadas pelos proprietários para fazer a gestão do AL, mas não são proprietárias do mesmo. Pelo que o número muito elevado de AL titulado em nome de uma entidade não deverá ser confundido com um grande proprietário de AL. Destaca-se que, salvo para os registos feitos por pessoa singular, não é ainda possível diferenciar, pela mera consulta do registo, se o titular do registo é uma entidade gestora ou, também, efetivamente proprietário da fração titulada para AL”.
A empresa de João Bolou Vieira é precisamente uma gestora de alojamentos locais, que são entregues pelos proprietários para gerirem o negócio. São cerca de 400 propriedades sob gestão. O empresário explica ao Observador que todos os serviços que são necessários para gerir um apartamento que tem um turista são internalizados. Conta já com cerca de 100 trabalhadores em Lisboa, Porto, Algarve e Madeira. O perfil dos proprietários das “suas” habitações são emigrantes que vêm a Portugal de férias ou estrangeiros que investiram em algum tipo de imóvel. No máximo têm três imóveis. João Bolou Vieira recusa, por isso, que a realidade do setor seja a de “fundos especuladores. Não é essa a realidade”.
Quem tem alojamento local?
A Câmara de Lisboa já tinha concluído que 62% das licenças são tituladas por particulares ou pessoas coletivas com menos de três alojamentos locais. O Observador pediu à Informa DB o retrato, no registo comercial, do universo de empresas que têm como CAE (Classificação Portuguesa de Atividades Económicas) principal o número 55201 — alojamento mobilado para turistas. No final de 2021, últimos dados existentes, esta atividade tinha 4.226 empresas, com um total de 8.324 trabalhadores.
A Informa DB esclarece que “o universo de empresas abrange apenas as que têm como CAE principal ‘alojamento mobilado para turistas’, mas existem empresas de diferentes naturezas (e portanto com outros CAE), como plataformas de gestão de reservas de alojamentos ou empreendimentos destinados ao turismo, etc”.
Mas esse universo de 4.226 empresas registou, no ano fiscal de 2021, um volume de negócios de 426 milhões de euros, mas com um prejuízo de 15 milhões de euros. Além disso tinham um ativo total avaliado em 2,1 mil milhões de euros, para capitais próprios de perto de 598 milhões de euros.
Face a 2020, o ano mais forte da pandemia, 73% destas empresas conseguiram ver o volume de negócios crescer, enquanto 20% decresceu. Mas a Informa DB, da análise feita a pedido do Observador, conclui que o volume de negócios em 2021 ainda estava abaixo do registado em 2019. “Apesar de 73% das empresas subirem a faturação em 2021, esta atividade ainda está com a faturação inferior aos valores pré-pandémicos (-30%)”.
Na comparação entre 2021 e 2020 em termos de número de empregados concluiu-se que 70% manteve o quadro de pessoal, enquanto ficou nos 15% as que registaram aumentos e também foi de 15% as que diminuíram.
Neste momento em que os agentes deste setor clamam que as novas regras — que deverão ser aprovadas em conselho de ministros esta quinta-feira — vão pôr fim à atividade também a Airbnb, a plataforma de reservas veio em defesa de quem está no setor, apelando “aos responsáveis políticos portugueses para se alinharem com a União Europeia (UE) e permitirem que as famílias locais beneficiem do turismo”.
Em comunicado, a Airbnb mostra “preocupação”, já que considera que “as medidas [propostas no Mais Habitação] entram em conflito com as regras da UE atualmente em desenvolvimento, correndo o risco de prejudicar as famílias locais que partilham as suas casas com o objetivo de suportar os custos de vida crescentes”.
Segundo a plataforma, “os típicos anfitriões portugueses, em média, alugam uma casa, e quase metade diz que o rendimento adicional os ajuda a pagar as despesas com a habitação e a fazer face ao aumento do custo de vida”. A Airbnb diz mesmo que, em 2021, o anfitrião típico em Portugal ganhava cerca de 4.900 euros por ano. E, em Portugal, a grande maioria (mais de oito em cada 10) dos anfitriões na Airbnb alugam uma única casa ou um quarto.
Já cerca de um terço dos anfitriões declara que uma das razões para estarem no alojamento local é “ganhar dinheiro para compensar o aumento dos preços” e quase 40% “afirma ter utilizado dinheiro ganho com o alojamento para cobrir necessidades básicas, tais como a alimentação”. Por outro lado, ainda segundo a Airbnb, 34% dos anfitriões “dizem que o dinheiro que ganham através da plataforma os ajuda a continuar a viver nas suas casas e 54% dos anfitriões indicaram que utilizam o dinheiro para realizar melhoramentos ou renovações nas suas casas”.
Um outro dado relacionado com o alojamento local diz respeito ao turismo. Segundo dados do INE, em 2022 foram registados 26,5 milhões de hóspedes, tendo 4,1 milhões ficado em alojamentos locais, ou seja, 16%. Já em termos de dormidas, das 69,5 milhões quase 10 milhões foi registada em alojamento local. Nos dados da Câmara de Lisboa, a coleta total de taxa municipal de dormidas, de 2016 a junho de 2022, foi de cerca 118 milhões de euros, repartindo-se por cerca de 66 milhões (56%) por intermédio de estabelecimentos turísticos e perto de 52 milhões referentes a dormidas em alojamento local (44%).
Depois da consulta pública, a versão final da proposta para a habitação será conhecida esta quinta-feira. Será, depois, discutida, em algumas partes, no Parlamento. O Presidente da República já ameaçou poder usar a sua ferramenta de veto. E o Governo já admitiu que pode haver mudanças na versão final. O alojamento local diz estar sob ameaça e bebeu essa ameaça também nas palavras do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Nuno Félix, que em entrevista à SIC realçou que se pretende converter o alojamento local em arrendamento habitacional. “Não queremos que os centros [da cidade] se transformem em Walt Disneys e que concidadãos possam viver no centro das cidades. Não está em causa acabar com o turismo”, disse. João Bolou Vieira não esconde que o setor do alojamento local não tem muita força de lobby. O setor da hotelaria, diz, tem mais. “Perdi a esperança na consulta pública”, desabafa ao Observador, para traçar o desfecho caso as medidas sejam implementadas: “vai atirar milhares e milhares de pessoas para a miséria e não vamos resolver problema nenhum”.