Bold statement, eu sei. Se vi todas as séries que estrearam este ano? Nem pouco mais ou menos. Mas vi muitas e boas. E tantas outras que considerei ótimas, boazinhas, medianas, irrelevantes e péssimas. Mas apesar da minha auto-diagnosticada compulsão por televisão, não há horas do dia que chegue para consumir tudo o que está a ser produzido atualmente, entre canais públicos, privados, cabo, plataformas de streaming e o conteúdo d’Os Primos. Que é hilariante, já agora. Mas, Rui e Iúri, fazer lives de três horas pode ou não dar cabo da minha inexistente rotina de sono. Dito isto, continuem.
Segundo a Apple Tv+, Disclaimer, baseado no Renée Knight, “conta a história da famosa jornalista Catherine Ravenscroft, conhecida por expor crimes e transgressões alheias. Ao receber um romance de autor desconhecido, ela fica horrorizada ao perceber que se tornou protagonista de uma história que revela seus segredos mais obscuros”. Ou seja, Catherine é um poço de virtudes públicas. Um belo dia, chega-lhe um livro a casa que descreve os seus supostos pecados privados do passado, com potencial para destruir a sua carreira, o seu casamento e a relação (já de si frágil) com o filho Nicholas.
Há um momento logo no primeiro episódio em que o marido Robert afirma, sem apelo nem agravo, que não há nada que ela lhe possa contar que destrua o seu amor. Mas ela sabe, e todos sabemos, que isso não é verdade. Um pequeno ato pode estalar a fina porcelana que é uma relação e fazer com que alguém se desencante e embacie aquelas lentes cor-de-rosa de quem está apaixonado. E Catherine sabe que o que é descrito naquelas páginas tem a força de um bulldozer e pode terraplanar a vida que ela construiu nos últimos 20 anos.
[o trailer de “Disclaimer”:]
Não querendo desvendar demasiado, a série vai saltando entre três linhas temporais: o momento relatado no livro, o momento que lhe sucedeu e o presente, o que nos vai nos vai empurrando entre um e o outro lado e mexendo com as nossas convicções. As alegações contra Catherine retratam-na como adúltera, uma mãe negligente e alguém que provocou de alguma forma a morte de um jovem. O pai desse jovem consumido pelo luto e pela sede de vingança vai causar-vos empatia, diria eu com alguma segurança.
Mas o desespero da personagem de Blanchett, que vê o mundo colapsar-se à sua frente, também vos vai tocar. A não ser que vocês sejam seres impolutos e isentos de falhas e nesse caso, parabéns para vocês. Só espero que, um dia destes, ninguém vá escarafunchar o vosso disco rígido, o vosso histórico de mensagens ou a vossa conta de Twitter e vocês se vejam forçados a mudar de ideias. Também Catherine parece estar rodeada de seres etéreos e sem esqueletos no armário, porque a forma como as pessoas que lhe se são próximas não só lhe viram as costas, como engrossam a trincheira do seu rival, é absolutamente espantosa.
E perguntam vocês “Então e no meio de tantas opções, decidiste ver Disclaimer, a melhor série do ano, porquê?” Sim, vou repetir esta alegação ao longo do texto, implantá-la no vosso subconsciente de forma sub-reptícia, de maneira a que passe de uma opinião a uma verdade irrefutável. Eventualmente, vocês espalharão a palavra como se de um dogma se tratasse e eu alcanço o meu objetivo. A estratégia está-vos a soar familiar? Oh, well… Como diz a tagline da série “Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não é uma coincidência”.
Mas voltemos à questão essencial: porque é que decidi ver Disclaimer? Decidi no exato segundo em que vi Cate Blanchett no “cartaz”. Ela está na tela, vale a pena. Até a estopada do Tár, que tem duas horas e 38 intermináveis minutos, eu vi até ao fim. Blanchett é um sonho de atriz, como volta a demonstrar com esta Catherine. Podia fazer de Air Fryer que ia ser convincente e a câmara tem uma relação de quase devoção com ela. Além disso, fora do ecrã, não se coíbe de dar umas trivelas na boca do patiarcado de quando em vez.
Juntemos a isto Alfonso Cuáron, que dá a ideia que escolhe os projetos que faz através do método Sorteio da Champions. Mete papelinhos com géneros numa tômbola, saca um e cá vai alho. E o método parece resultar: E a tua mãe também, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, Os Filhos do Homem, Gravity, Roma (que lhe valeu nada mais, nada menos que 4 Óscares). E a realização disto é um primor absoluto, a luz tem uma tal importância que devia estar creditada no elenco como protagonista, e ele Alfonso ainda é responsável pelo argumento. Chiça, dá para não esfregar assim o talento na cara do comum mortal?
Todos os atores, sem exceção, partem a louça. Atentem em Kevin Kline, senhoras e senhores. Outrora protagonista uma das minhas comédias favoritas, Amar-te-ei até te matar, faz o velhinho Stephen Brigstocke, que nos apetece muito abraçar quando veste o casaco de malha que era da mulher. Mas também causa medo, raiva, empatia, uma tristeza profunda e pontualmente faz-nos rir. Incrível. Curiosamente, Sasha Baron Cohen, alguém que também me fez rir e abrir a boca de escândalo pela primeira vez nos idos anos 90 com o Ali G, faz o marido Robert e entrega um papelão do camandro e talvez por isso me tenha provocado um camadão de nervos que acho que ainda me está aqui a fazer mossa na vesícula.
Completa-se o núcleo familiar central com Kodi Smit-McPhee, no papel do filho Nicholas, que já me tinha impressionado imenso no último filme de Jane Campion, O Poder do Cão, e que também me causou um princípio de uma úlcera, provavelmente fruto da minha condição de mãe. Sei que isto já vai longo, mas não posso deixar de nomear Lesley Mannville, que interpreta Nancy Brigstocke, e faz um retrato do que é o amor incondicional de mãe, para lá da vida. E que me estilhaçou o coração em mil pedaços, fruto da já referida condição de mãe.
Disclaimer tem 7 episódios, sendo que o primeiro se estreou no dia 10 de outubro e o último no dia 8 de novembro. À antiga, um episódio por semana. Mas o Nosso Senhor dos Bingers protegeu-me e permitiu que eu só tivesse tempo para degustar Disclaimer depois de todos os episódios terem sido lançados. E não consigo sequer imaginar os meus níveis de ansiedade, se assim não fosse. Só para terem uma noção: comecei a ver a série às onze e meia da manhã e terminei-a pelas onze da noite. E só não a devorei mais rápido, porque havia máquinas de roupa para fazer e refeições de família para apreciar e um Braga-Sporting para ver (Amorim, aquela coisa de não voltares ao lugar onde foste feliz não tem qualquer fundamento estatístico. Até já!).
Um pouco à semelhança de You Honour da Max, nos primeiros episódios estava a angustiar-me de tal forma, que só queria chegar ao fim rápido. Mas confesso que essa sensação a meio foi assoberbada por sentir que Disclaimer é uma série tão bem feita, tão bem escrita e interpretada, tão recheada de camadas e que dá tanto que pensar (e que escrever claramente, já passámos os 7000 caracteres) que ao episódio 4 já estava a dizer ao meu marido: “Tens que ver isto e eu vou rever contigo”.
Longe vão os tempos em que o audiovisual se dividia entre realizadores/atores de séries e realizadores/atores de cinema. Não sei se foi exatamente este o momento, mas recordo-me da ficha técnica da mini-série Angels in America ter causado uma relativa comoção, em 2003. Realizado por Mike Nichols, com Meryl Streep e Al Pacino no elenco. Como assim a maior no pequeno ecrã? Foi chantagem, foi dívida de jogo? Isso já não é assim. Dizer que Disclaimer é cinema como elogio, talvez seja não só redutor, como meio bafiento. É uma série, é incrível e acho que não preciso de a colocar na categoria do grande ecrã para a elogiar. Fala sobre culpa, sobre vingança, sobre amor. Sobre o quão falhos todos somos, mas o quão pouco hesitamos em apontar o dedo ao outro, mesmo que tenhamos acabado de lhe fazer um elogio, de lhe prometer lealdade ou de lhe jurar amor na saúde e na doença até que a morte que nos separe.
Dito isto, todos temos um chato na nossa vida que está sempre a dizer “O quê? Ainda não viste o Portas Fechadas, Cadeiras ao Sol? Tens mesmo que ver. Esquece. Nem fales mais comigo, enquanto não vires”. E a maior parte das vezes, o melhor mesmo é deixarem de falar a essa pessoa, porque não há paciência. Neste caso, peço que abram uma exceção. Não me deixem a falar sozinha. Vocês têm mesmo de ver isto.