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"Distopia". Durante 13 anos Tiago Afonso filmou o Porto que desapareceu quando os bairros ficaram vazios

Esteve no DocLisboa, esteve no Porto/Post/Doc, está agora na HBO Max. Um documentário de Tiago Afonso, para mostrar as pessoas forçadas a mudar e o que mudou nas pessoas (e na cidade).

No início de “Distopia”, documentário que já está disponível na HBO Max, o realizador Tiago Afonso dá coordenadas sobre o significado de gentrificação e processos de mudança social nas cidades. O realizador demorou treze anos a terminar o filme, entre 2007 e 2020 filmou o que se ia passando em algumas zonas do Porto, no Bacelo, no Bairro do Aleixo e na Feira da Vandoma. A dado momento, nesta conversa, diz ao Observador que “na altura dava para ver os estragos, agora dá para ver as consequências.”

Quando se pensa em gentrificação, o hábito é o de concentrar atenções nas consequências. Talvez pelo medo de que elas cheguem até nós, das mais diversas formas. Em “Distopia” filma-se o estrago, a mudança pela demolição, expulsão, realojamento ou criação de novas localizações. Há um transtorno constante ao longo dos 60 minutos do filme: é um retrato de um passado mas, de certa forma, sente-se permanentemente como um presente. “Distopia” ganhou o prémio HBO Portugal para Melhor filme da Competição Portuguesa no DocLisboa 2021, bem como o Cinema Falado Award no Porto/Post/Doc 2021.

[o trailer de “Distopia”:]

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O que o levou a chamar ao filme “Distopia”?
Comecei a filmar em 2007, acabei em 2020, nunca foi feito este plano. As coisas foram acontecendo. Quando comecei a filmar estes dois contextos, comecei com uma atitude de urgência, filmar, fazer montagens rápidas e mostrar o mais rapidamente possível. Nunca seriam objetos acabados, mas obras panfletárias. Os temas não me deixaram finalizar o filme: não dá para fazer um filme sobre este tema em três meses. Porque passam esses três meses e anunciam que vão deitar uma torre abaixo e vamo-nos deixando ficar e fazendo outros trabalhos.

Pelo que percebo, não era para ser só um filme.
Não. A ideia de juntar a comunidade cigana com o Bairro do Aleixo foi uma ideia que surgiu tardiamente.

A comunidade cigana vivia onde?
No Bacelo. Era um sítio importante de “limpar”. Comecei por fazer um filme sobre o drama das comunidades e depois quis que fosse sobre a questão geral.

O que o levou a filmar esta situação? Em 2007 começou a filmar um problema diferente daquele que passou a existir com o passar do tempo.
Começou com uma guerra aberta com o Rui Rio. Apesar de não gostar de me inserir em nenhum campo sociológico, faço parte da comunidade das pessoas ligadas à cultura na cidade do Porto. Eu e pessoas ligadas a mim fomos prejudicadas com a autarquia do Rui Rio. As companhias com quem eu trabalhava deixaram de poder trabalhar. O Teatro Rivoli, que era aberto a mostrar filmes e muitas outras coisas, mudou o seu rumo durante vários anos. Fiz parte do grupo de pessoas que ocupou o Teatro Rivoli, em 2006. Depois aquilo foi entregue ao La Feria, ele criou muitos danos, tanto a nível material como humanos: pessoas que trabalhavam há trinta anos, foram despedidas… Por um lado, tinha a ver com isso, por outro, a minha câmara [de filmar] é militante, eu sempre fui militante, apesar de não militar em nenhum partido. Colaborei com vários partidos e associações e todo o tipo de pessoas não alinhadas, naquilo que eu chamo fazer política: para mim, fazer política acontece quando um puto tem um pão para o lanche da escola, o colega não tem nenhum, ele parte ao meio e dá metade. No Bacelo, que é como se chama a rua — e como se chamava aquele acampamento de ciganos –, aconteceu mais uma de muitas situações em que a câmara cometeu uma data de atropelamentos. Após filmar o Bacelo, filmei o Mercado do Bolhão: durante um ano tentaram vender aquilo a uma empresa holandesa, o promotor português da empresa até foi preso. Dá para ver o nível de aldrabice que aquilo era.

"A urgência de ter cinco dias para tirar os ciganos todos do acampamento é uma forma de impor a vontade do poder. O urgente nem dá tempo para reclamar, nem para providências cautelares"

Como aborda essas situações?
Muitas vezes vou com a ferramenta da formação, ou seja, vou dar formação. Depois, lá é que pode surgir ou não um objeto. Para a Capital da Cultura de Guimarães, em 2012, dei um workshop de um mês numa prisão, de delitos menores, masculinos, e surgiu um filme. Entre processo de formação e o que íamos filmando com eles, foram surgindo coisas.

O que o leva a filmar nessa situações?
Por militância, por uma certa revolta, por perceber, uma pessoa que anda nesta vida tem contactos, falei com assistentes sociais, vereadores, e percebi muito rapidamente que a urgência de filmar no Bacelo, no Aleixo, no Rivoli, no Bolhão, a urgência é uma forma de eficácia. A urgência de ter cinco dias para tirar os ciganos todos do acampamento é uma forma de impor a vontade do poder. O urgente nem dá tempo para reclamar, nem para providências cautelares. Está feito e acabou. Foi uma revolta contra esse tipo de políticas do Rui Rio. Não obstante, uma pessoa achava que o pior para o Porto era o Rui Rio, mas com o Rui Moreira não melhorou. Só ficou mais camuflado. Com o Rui Rio, o comum era acabar tudo com polícia de choque; com o Rui Moreira é mais subtil. Era mais fácil usar uma câmara [de filmar] com o Rui Rio como forma de contrapoder.

O que justificou continuar a filmar e a registar a mudança no Porto e nestes bairros?
Considero-me um realizador. Ando a escrever um texto sobre a minha relação com o cinema amador e há várias perspetivas, se uma pessoa está ligada ao cinema amador ou profissional, mas acho que a principal é se estamos a falar da atividade principal ou não, independentemente de ser a atividade que dá remuneração certa ao fim do mês. E a minha principal atividade é ser realizador, penso como um realizador. Tenho imenso material que, para mim, poderiam ser filmes se tivessem um fim. Mas não têm, por isso não o são, são coisas que estão encostadas. O Bacelo precisava de um fim – se pensarmos nos anos em que foram filmadas as coisas –; o Aleixo pensava acabar a seguir à primeira implosão, depois a segunda… o filme foi tendo formas e foi sendo mostrado. Mostrei as primeiras vezes após a primeira implosão, depois a seguir à segunda, e [nessa altura] era só sobre o Aleixo. E depois há outro elemento que é menos preponderante no filme e há pessoas que acham que não tem qualquer relação, mas para mim é óbvio. Fui filmando a Feira da Vandoma e as pessoas perguntavam: o que é que uma coisa tem a ver com a outra? Havia qualquer coisa que me dizia que estávamos a falar do mesmo tipo de pessoa, estamos a falar de pessoas sem grande vez e sem grande voz, pessoas que se o poder local disser “vão para ali ou para ali ou ali”, podem gritar, não adianta nada, só têm é que ir. Filmei sem imaginar que já com o Rui Moreira iriam tirar a Feira da Vandoma das Fontaínhas e iriam colocá-la numa zona totalmente periférica da cidade, mudando todo o seu tecido comercial: as pessoas que vendiam não são as mesmas, as pessoas que compram não são as mesmas. Pareceu ser quase como uma metáfora do outros eventos, por ser menos grave. E essas coisas foram-me fazendo esperar, em 2015 ainda filmava a Vandoma nas Fontaínhas. O Aleixo fui filmando e filmando e parecia que não tinha aquele fechar… quando soube que as torres não iam ser implodidas mas destruídas até ficar tudo raso, fui esperando.

"Houve pessoas que, quando o filme saiu, me perguntavam: porquê agora, tantos anos depois? Ao que eu respondia: na altura dava para ver o estrago, agora dá para ver as consequências"

E porque parou?
Encontrei soluções na minha cabeça para terminar as histórias. Mas acima de tudo, já não suportava, estava a ficar louco… porque investi muito. Não é que tenha estado lá 365 dias por ano, 7 dia por semana, como é óbvio, e a forma como filmo acho que permite perceber que é um acompanhamento periódico… Mas estava desesperado para devolver a imagem das pessoas às pessoas, pôr cá fora. Houve pessoas que, quando o filme saiu, me perguntavam: porquê agora, tantos anos depois? Ao que eu respondia: na altura dava para ver o estrago, agora dá para ver as consequências. Poderia continuar a filmar. A cinco,dez minutos do Bairro do Aleixo está o Bairro da Pasteleira Nova. Todo o tráfico de droga, problemas de ordem social, foram transferidos para lá. Isso está a criar uma degradação no meio. Os ciganos foram divididos em dois bairros: os que foram para um bairro sem grandes problemas sociais estão todos mais ou menos instalados na sua vida; os que foram para um bairro cheio de problemas sociais – Bairro do Cerco –, entraram por caminhos… só me vem calão à cabeça, mas caminhos ilegais. Teria interesse continuar a filmar isso, porque é uma demonstração de que o meio forma as pessoas e as pessoas formam o meio, que é uma relação simbiótica, não se pode pegar nas pessoas e meter onde se quer. Mas eu precisava de acabar.

Há pouco falou na questão da formação. Os momentos em que coloca crianças à frente da câmara, isso tem a ver com essa formação de que fala?
Fizemos um filme de vinte minutos para um ATL, para as crianças e para os pais. Não era uma narrativa, não era ficção, eram pequenos dispositivos para eles se apresentarem uns aos outros. Havia duas câmaras, uma com a qual eles próprios filmavam os colega, e havia uma outra que filmava o processo todo por fora. Foi uma formação com vários objetivos. Por um lado, integrar-me melhor no Bairro do Aleixo; por outro, fazer uma coisa que adoro. Quando dou formação a estas crianças, não estou na expectativa de criar cineastas, mas de criar uma memória de uma perspetiva diferente do mundo, de olhar para o mundo, que talvez fique e possa influenciar, mais tarde, algo positivo. Faço isto há muitos anos e é das coisas que mais prazer me dá.

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