Em reuniões prolongadas em mesas de café, e de forma completamente espontânea, um grupo de amigos residente no bairro dos Guindais, na zona da Sé do Porto, criou uma coletividade. A fundação oficial do Guindalense Futebol Clube está registada em março de 1976, mas Rui Barros, atual presidente do clube, garante que as vitrinas da sede guardam troféus de torneios de futebol datados de 1971. Ainda assim, o responsável não deixa de festejar este aniversário redondo, pois foi há precisamente 45 anos que o clube ganhou um nome e uma morada própria.
O número 43 das Escadas dos Guindais, deixado pelo associação de rancho folclórico “Rosas da Sé”, foi adquirido “a muito custo” pelo grupo de fundadores para instalar o Guindalense, clube onde, entre os anos 70 e 80, reinavam modalidades como o futebol, o atletismo, a natação, o mini basquete ou a pesca, mas também sessões de teatro e dança. “Competíamos a nível local e nacional, chegamos a ser federados em futsal em 1991”, recorda ao Observador o presidente Rui Barros.
Natural de Vila Nova de Gaia, Rui Barros nasceu um ano depois do clube, chegou pela primeira vez ao Guindalense com 16 anos, durante uma rusga de S. João, e há 17 que segura o leme da coletividade. “Foi amor à primeira vista. Comecei a vir cá, começaram a ter confiança em mim, pediam-me para despejar o lixo, colaborar nas mesas e até cheguei a treinar uma equipa de futsal.”
Depois dos tempos áureos, em que o Guindalense defrontou o Futebol Clube do Porto e marcou pontos no atletismo, o clube foi perdendo apoios, patrocínios e jogadores, levando mesmo à suspensão de todas as modalidades desportivas a partir de 2001. “Muitos pais preferiam levar as crianças para o FC Porto ou para o Boavista e depois estamos numa zona da cidade que tem o sangue à flor da pele. Se uma decisão fosse tomada e houvesse alguém do público que dissesse alguma coisa ao árbitro ou à mesa, as multas eram muito elevadas e isso prejudicáva-nos”, justifica o presidente.
Foi também em 2001 que o Porto se sagrou Capital Europeia da Cultura e foi reabilitado o Funicular dos Guindais, obra concluída em 2004 e que roubou parte do espaço da sede e da esplanada do Guindalense. Nessa época, Rui Barros era presidente da Assembleia Geral do clube e recorda o impasse. “Propuseram-nos sair daqui e até sugeriram-nos ficar noutras instalações, mas dissemos que o clube devia permanecer onde nasceu. Fizemos um acordo com a construtora e ocupámos um outro espaço na mesma rua temporariamente só para terminarem as obras.”
“Não somos um bar, somos uma coletividade”
Com a suspensão das modalidades desportivas, o clube dedicou-se inteiramente às atividades culturais e sociais, como as rusgas de S. João, as serenatas dos estudantes universitários ou os típicos bailaricos portuenses pela noite dentro. Os problemas com a vizinhança “são águas passadas”, garante o presidente, que já chegou a entrar numa batalha jurídica para registar uma marca do clube.
“Há uns 10 anos estivemos quase a ficar sem a serenata ao Douro porque os estudantes da Universidade Lusófona lembraram-se de propor que a serenata saísse dos Guindais e fosse transferida para a Ribeira. Nesse momento achei que devia registar a marca “Serenata ao Douro”, mas uma estudante teve exatamente a mesma ideia que eu. Entrei numa batalha jurídica que ficou cara ao clube, mas vencemos. A partir deste ano, a imagem da nossa bandeira também é uma marca nacional”, conta.
Preservar aquilo que é do clube e da cidade é uma das prioridades para o presidente, que mostra com orgulho as fotografias, as taças, os troféus e até o merchandising da sede. Com uma vista privilegiada sobre o Douro e a Serra do Pilar, a esplanada da coletividade, que inclui matrecos e uma mesa de bilhar, tornou-se cada vez mais apetecível e acabou por conquistar mesmo o público internacional com o boom do turismo na cidade. “Tivemos a necessidade de abrir o clube à comunidade, não o fechando apenas a esta zona. Se não o tivéssemos feito, estávamos tramados e hoje teria que meter a chave na porta.”
Rui Barros garante que nunca sentiu a tentação de fechar o clube apenas aos 100 sócios, cuja cota é de 12 euros anuais, defende que a identidade do Guindalense não foi colocada em causa com o turismo e admite não gostar de ser apelidado como um café ou um bar. “Se fechasse um miradouro como este à cidade seria criminoso. É o carinho por quem vem de fora e esse poder agregador que me fez apaixonar pelo clube. Não gosto que o tratem como café porque, apesar de termos café, cerveja e uma esplanada para conviver, não é esse o nosso negócio. No dia em que assim for, o Guindalense Futebol Clube passará a ser o Café dos Guindais. Muitos querem tornar-se sócios para terem desconto no bar, podíamos ter dois mil sócios, mas não é essa a nossa essência.”
Para o responsável, uma associação local pode e deve saber conciliar o negócio com o universo mais cultural e desportivo. “É importante mostrar o nosso espólio e trazer mais pessoas para o movimento associativo. Se as portas estiverem fechadas, ninguém conhecerá o clube. Claro que existem regras, mas não há risco de se perder a nossa veia associativa.”
É precisamente pelas portas não estarem fechadas e não ser cobrada uma entrada a quem visita as instalações do clube que o Guindalense já foi visitado por personalidades como Rui Moreira, autarca do Porto, António Costa, primeiro-ministro, Joe Dempsie, ator que interpreta a personagem de Gendry na série “A Guerra dos Tronos”, ou Co Adriaanse, o holandês que treinou o Futebol Clube do Porto entre 2005 e 2006. “Quando vivia no Porto, o treinador gostava de vir aqui ao fim do dia tomar um pingo com a esposa e ambos tornaram-se sócios do Guindalense. Muitos anos depois, eles visitaram o Porto, fizeram questão de vir aqui e ele emocionou-se quando lhe mostrei a fotografia que temos dele na nossa vitrina.”
Quando o músico Marante ajudou a salvar uma noite de S. João
Um dos pontos altos do calendário do Guindalense é a noite de S. João. Se antigamente a festa durava até às duas da manhã e a animação resumia-se à música gravada, hoje o Guindalense aposta num jantar volante, em concertos ao vivo e bares abertos até de manhã. Rui Barros, o presidente, diz gostar de festa rija e garante não descurar nenhum pormenor. “Gosto do espetáculo em si, tento ter cuidado com a luz e com o som. Antigamente fazíamos o jantar sentado e um ano antes já não tínhamos vagas, agora optamos por fazer a sardinhada típica volante, ajuda a rentabilizar o espaço, que nessa noite costuma ficar lotado.”
É nesta noite emblemática que o clube consegue faturar mais e é visitado tanto por locais, turistas ou presidentes da câmara, que fazem questão de brindar com um copo de sangria por ali. Da esplanada vê-se o fogo de artifício à meia noite em pleno e os moradores do bairro dos Guindais abrem literalmente a porta de casa para jantar em comunidade, num ambiente onde não podem faltar balões, martelos e manjericos.
Foi precisamente de uma noite de S. João que Rui Barros recorda um episódio que o deixou em pânico, mas acabou por ter um final feliz. “Houve um ano em que a festa do Guindalense teve direito a dois palcos e num deles, onde iam tocam os Diapasão, a luz faltou perto da meia noite. Fartei-me de ligar aos técnicos da câmara, mas claro que ninguém atendia. O Marante, um dos artistas que mais colabora connosco, disse-me: ‘Você não se preocupe, se não sairmos daqui às 2h, saímos às 4h, mas vamos tocar’. Ainda me ajudou a ver os quadros de eletricidade e lá conseguimos pôr tudo a funcionar. Eles realmente ficaram a tocar até às 4h.”
A esplanada do Guindalense é procurada em datas especiais na cidade, sendo também palco de iniciativas como gravações de programas, projetos independentes ou até mesmo de festivais como o FITEI – Festival Internacional de Teatro e Expressão Ibérica.
Voltar ao desporto e construir uma nova sede: os desafios que se seguem
Nos últimos anos, o presidente do Guindalense diz que a zona dos Guindais perdeu “90% da população”, entre mortes, construções de empreendimentos turísticos e casas abandonadas. Ainda assim, Rui Barros anseia que o turismo volte em força ao Porto. “Antigamente o centro da cidade parecia Bagdade depois de um tiroteio, as pessoas tinham medo de andar na rua. Antes não era bom viver na Sé, era perigoso, agora está na moda. Os que não queriam o turismo, agora estão a suplicar que acabe a pandemia para o turismo regressar. Penso que podemos ter as duas coisas.”
A pandemia de Covid-19 aguçou as ações sociais do clube, que chegou a distribuir viseiras e máscaras à população, e alterou alguns planos traçados da presidência, que pretendia regressar às competições desportivas em breve. “Temos o projeto de voltar ao futebol de 11 com uma equipa de séniores, é assim que o Guindalense se iniciou, mas a pandemia tramou-nos. É um objetivo, não queria largar o clube sem isso.”
Outro dos desafios é a reconstrução da sede, que apesar de manter a morada irá ter outras valências e se transformará numa fonte de rendimento. “A grande novidade será a construção de uma sala multiusos no piso 0, uma espécie de mini auditório capaz de receber os eventos do clube e alugueres para pessoas ou entidades exteriores.”Enquanto a permissão de abrir o espaço não chega, o clube está a aproveitar para fazer pequenas renovações na sede e para montar um novo bar no exterior, mas o que falta mesmo são as pessoas. “Tenho saudades de ver isto com alegria, com pessoas e com estudantes, isto era uma segunda casa para eles.”