O tempo que passou é curto e as equipas clínicas não estão prontas para celebrar. Apesar da prudência, tanto em Lisboa como no Porto os resultados são, para já, promissores entre os doentes de fibrose quística que estão a tomar o Kaftrio, o medicamento inovador que Constança Braddell — a jovem de 24 anos que morreu no domingo — tornou conhecido após o seu apelo nas redes sociais para que fosse disponibilizado com urgência. Se entre os doentes é conhecido como o comprimido milagroso, para os médicos ainda faltam dados sólidos para considerá-lo uma aposta ganha da ciência.
Uma das histórias que tem sido pautada pela sucesso é a de uma paciente do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, que congrega o Santa Maria e o Pulido Valente. Desde que começou a tomar o comprimido cor de laranja, teve melhorias significativas, sem historial de novos internamentos.
“Sem dar pormenores sobre nenhum caso em particular, podemos exemplificar com a situação de uma doente com um quadro base mais grave, que não teve qualquer internamento por agudização pulmonar desde que iniciou o Kaftrio (19 Março)”, revela ao Observador fonte oficial do Lisboa Norte. Em 2020, tinha tido seis internamentos por agudização.
Os doentes, esclarece o centro hospitalar, têm referido sentir uma franca melhoria da qualidade de vida, algo que os médicos também observam — ganho de peso e respiração menos pesada. “Os doentes a fazer Kaftrio tiveram de uma forma generalizada melhoria do quadro respiratório e do estado nutricional, observando-se em alguns doentes aumento ponderal muito significativo”, detalha o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte na sua resposta ao Observador.
Dos 27 doentes autorizados pelo Infarmed a tomar o Kaftrio, quase um terço está no Santa Maria. Para além desses 8 pacientes, naquele centro hospitalar há ainda 16 doentes com fibrose quística a usar outros moduladores, o Orkambi e o Symkev (de um total de 46 no país) . “Após 3/4 meses de terapêutica todos os doentes vão ser estudados com avaliação completa da situação clínica e de efeitos adversos”, garante o Lisboa Norte.
No Porto, o Centro Hospitalar de São João já submeteu sete pedidos de medicação com Kaftrio ao Infarmed, aguardando a avaliação dos quatro mais recentes. Nesta fase, todos os olhos da equipa estão sobre os doentes que já fazem a medicação inovadora.
Até à data não se registaram efeitos adversos graves em nenhum dos doentes. Apesar disso, em resposta ao Observador, fonte oficial do São João argumenta que a equipa clínica pensa ser necessário mais tempo para avaliar a eficácia do tratamento.
“Todos os doentes em que o Kaftrio foi aprovado no Hospital de São João são seguidos de forma muito rigorosa, por forma a monitorizar a eficácia e segurança desta medicação inovadora”, acrescenta o centro hospitalar.
Contactados pelo Observador, o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra e o Centro Hospitalar do Porto escusaram-se a dar informação sobre a evolução do estado clínico dos doentes a quem administraram este medicamento. Já a resposta do Centro Hospitalar Lisboa Central não foi recebida até à publicação deste texto. Cada um dos centros fez, pelo menos, dois pedidos de uso do Kaftrio.
Em três meses, praticamente duplicaram os pedidos feitos pelos centros hospitalares para usar o medicamento inovador para a fibrose quística. Até ao final de julho, o Kaftrio deverá ficar completamente disponível no mercado nacional, já que, como o Observador noticiou, o Infarmed e a farmacêutica Vertex estão prestes a chegar a acordo.
Assim que o contrato ficar fechado, fica selado o acordo que estabelece o preço base do medicamento em Portugal, embora a farmacêutica que produz o Kaftrio (Trikafta nos Estados Unidos) possa estabelecer, depois disso, acordos comerciais diferentes de hospital para hospital.
Constança melhorou, mas não resistiu à doença
Constança Braddell, de 24 anos, sofria de fibrose quística e, através das redes sociais, queixou-se de não ter acesso ao Kaftrio. Mais tarde, o seu pedido para utilização excecional de medicamentos (AUE) foi autorizado pelo Infarmed 24 horas depois de ter sido submetido pela equipa que a seguia no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Em maio, em entrevista à SIC, Constança falava da sua experiência após ter tomado o comprimido pela primeira vez a 12 de março, apelidando-o de milagroso. “Estou muitíssimo melhor, não tem comparação. Ainda tenho aqui o meu amigo, mas que espero poder deixar de usar”, contou, apontando para a mochila onde transportava o oxigénio.
“Quando tomei o comprimido senti logo muito mais energia”, contou, acrescentando que também teve bastante mais apetite e conseguiu recuperar quase metade do peso perdido no último internamento hospitalar. As dores também melhoraram: “Já tenho muito menos tosse. Antes acordava todas as noites com vários ataques por noite. Tinha muitas dores de cabeça e nos pulmões. Agora praticamente não tenho tosse.”
Este domingo, Constança Braddell acabaria por morrer, quatro meses depois de ter feito o tratamento pela primeira vez e após ter estado internada nos cuidados intensivos em estado muito grave nas últimas três semanas. O agravamento do estado de saúde deveu-se a um pneumotórax.
O que pode explicar o agravamento súbito do estado de saúde de um doente com fibrose quística?
Kaftrio. Reino Unido foi o primeiro a chegar a acordo
Em Portugal, o comprimido deve ficar disponível dentro de poucos dias, deixando de ser necessária a mediação do Infarmed para o comprimido entrar no país. Para já, só pode ser usado através de uma autorização de utilização excecional de medicamentos (AUE). Isto significa que, ao invés de o comprarem diretamente ao laboratório, os hospitais devem dirigir-se ao Infarmed com o pedido para usá-lo num doente concreto, mantendo o seu nome anónimo.
Se estiverem cumpridas as condições de acesso no Programa de Acesso Precoce (PAP) do Kaftrio, o Infarmed dá autorização para a compra do medicamento. Até à data, todos os tratamentos efetuados em Portugal foram a custo zero. O preço final com que será comercializado dificilmente será público, já que estes contratos têm cláusulas de confidencialidade que proíbem as partes de divulgar os valores acordados.
Na Europa, República Checa e Áustria estão entre os mais recentes países a fechar acordo com o laboratório e a garantir que, neste mês de julho, o medicamento para a fibrose quística da Vertex vai ser comparticipado pelo Estado. Em França, o anúncio do acordo foi feito, no final de junho, pelo ministro da Saúde, Olivier Véran e, desde 6 de julho, o reembolso do medicamento é de 100%.
Em Espanha, ainda não há solução à vista. Depois do anúncio francês, a Fundação Espanhola de Fibrose Quística tem aumentado a pressão sobre o Ministério da Saúde para financiar com urgência o Kaftrio, citando os exemplos de outros estados europeus onde o processo de financiamento está mais avançado ou mesmo finalizado.
Constança Braddell, a “guerreira” que sofria de fibrose quística, morre aos 24 anos
Em Itália, o acordo foi fechado pouco dias antes do francês, a 25 de junho. Em Malta, a 7 de julho, foi o próprio primeiro-ministro, Robert Abela, quem anunciou ter selado o negócio com a Vertex.
No Reino Unido, o acordo estava pronto mesmo antes da autorização oficial da Agência Europeia do Medicamento. Assim que o ‘ok’ da EMA chegou, em agosto de 2020, o Kaftrio ficou disponível através dos Serviços Nacionais de Saúde (NHS) de Inglaterra, do País de Gales, da Irlanda do Norte e da Escócia. Na Irlanda, o acordo foi selado em Outubro de 2020.
Nos Estados Unidos, onde o medicamento é comercializado com o nome de Trikafta, a aprovação da FDA (Food and Drug Administration) aconteceu a 21 de outubro de 2019. No entanto, desde junho desde ano que a aprovação do medicamento — que tal como na Europa visava apenas maiores de 12 anos — foi estendida a crianças a partir dos 6 anos.
As estimativas apontam para que a fibrose quística afete mais de 80.000 pessoas em todo o mundo. Em Portugal, haverá cerca de 400 pessoas com esta doença rara, que não tem cura e que reduz esperança média de vida dos doentes para os 40 anos.
O Kaftrio não cura a fibrose quística, mas melhora as condições de vida do doente, podendo aumentar a sua sobrevida. No entanto, também há riscos associados ao próprio medicamento e, apesar de se ter mostrado seguro e bem tolerado nos ensaios clínicos, pode ter efeitos adversos graves em algumas pessoas.