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©Erich Hartmann / Magnum

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Dona de casa desesperada? Cem anos de Shirley Jackson

Nome singular da literatura americana, Shirley Jackson nasceu a 14 de Dezembro de 1916. Miguel Freitas da Costa recorda uma escrita "à sombra não da possibilidade do Mal, mas da sua probabilidade".

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As últimas palavras que a escritora americana Shirley Jackson escreveu no seu diário foram, no estilo “Gertrude Stein” de partes desse diário: “I am the captain of my fate. Laughter is possible laughter is possible laughter is possible” (Sou capitã do meu destino. O riso é possível o riso é possível o riso é possível.) Para Zoë Heller, que as cita no artigo “The Haunted Mind of Shirley Jackson”, são palavras que indicam “uma mulher que tenta heroicamente converter-se ao otimismo”. A sua vida foi breve e não muito feliz. Quando morreu, seis meses depois de ter escrito aquelas palavras, ainda não fizera 49 anos. Saía de dois anos de profunda depressão – depois de uma curta existência em que deu largas à sua tendência para engordar e deu conta dos seus recados de mãe de família (um marido judeu de hábitos mouriscos, que a “enganava” descarada e humilhantemente, quatro filhos, uma casa às ordens de amigos e conhecidos) e de escritora produtiva e bem-sucedida, com a ajuda de muitos tranquilizantes, anfetaminas e muito álcool. Ia na página 75 de um romance mais soalheiro e bem-disposto do que os contos e romances que fizeram em grande parte a sua reputação e notoriedade e a invulgar persistência do seu êxito junto do público leitor anglo-saxónico.

O nome de Shirley Jackson é normalmente pronunciado no mesmo fôlego que o nome do seu conto “The Lottery”. É, já se sabe, um dos contos mais antologiados de sempre. Publicado pela primeira vez na revista The New Yorker, em 1948, suscitou uma inusitada reacção dos leitores e tornou-se, no circunscrito mundo da revista e do ambiente literário da época, quase uma lenda. Foi o título desse conto magistral e inesquecível que foi escolhido para encabeçar a primeira colectânea de histórias curtas da autora, vindas a lume inicialmente em variadíssimas publicações, incluindo a famosa revista de Nova Iorque onde colaborava desde 1943. A Avon Books publicou em 1949 uma primeira edição da antologia em livro de bolso. Em 2000, o livro teve uma edição na prestigiosa colecção “Modern Library” da Random House.

shirley jackson the lottery

“The Lottery” numa edição recente da Penguin

“A lotaria” é geralmente reconhecido, com justiça, como uma obra-prima do género “horror”, em que há tendência a acantonar a autora, um género em que se integram sobretudo e de forma mais convencional os seus romances “góticos”. O horror neste conto não é preciso ir buscá-lo aos confins mais exóticos onde o encontrou o Kurtz de Conrad e Francis Coppola (“o horror, o horror”) ou com recurso a intervenções paranormais ou sobrenaturais, mas encontra-se no seio da mais plácida banalidade.

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Para lá da Lotaria

Mas Shirley Jackson era também capaz de “estudos” de uma grande acuidade psicológica, com uma utilização notável dos seus dotes de observação dos pequenos gestos ou pormenores reveladores – e, talvez mais inesperadamente, de um constante sentido do humor, até do tipo mais amável que manifestou nos textos sobre a sua vida doméstica e familiar que foram coligidos em Life Among the Savages (1953) e Raising Demons (1957); um humor em geral sardónico, embora em muitos casos bem-disposto, de que são um bom exemplo as primeiras linhas de We Have Always Lived in the Castle, destacadas no obituário publicado à época no The New York Times:

My name is Mary Katherine Blackwood. I am 18 years old, and I live with my sister Constance. I have often thought that with any luck at all I could have been born a werewolf, because the two middle fingers on both my hands are the same length but I have had to be content with what I had. I dislike washing myself, and dogs, and noise. I like my sister Constance, and Richard Plantagenet, and Amanita phalloides, the death-cup mushroom. Everyone else in my family is dead.

[“Chamo-me Mary Catherine Blackwood. Tenho 18 anos e vivo com a minha irmã Constance. Muitas vezes tenho pensado que com um mínimo de sorte podia ter nascido lobisomem, porque os dois dedos do meio de ambas as minhas mãos são do mesmo comprimento mas tive de contentar-me com o que tinha. Detesto lavar-me e detesto cães e barulho. Gosto da minha irmã Constance e de Ricardo Plantageneta e do Amanita Phaloides, o cogumelo venenoso. Todo resto da minha família já morreu.”] (Foram envenenados, não vou dizer por quem. As circunstâncias do jantar fatal e a referência aos cogumelos sugerem irresistivelmente que a autora se inspirou aqui, confessadamente, no ponto de partida de Le roman d‘un tricheur, de Sacha Guitry, de 1935, um escritor que também merece ser relido.)

Shirley Jackson continuou a reinar depois de morta. Rádio, televisão, teatro e cinema têm-se interessados marginalmente mas constantemente pela sua obra. No cinema, o caso mais conhecido, embora menor, foi o filme "The Haunting" ("A casa assombrada", 1963, de Robert Wise).

Por muito que o marido dela, o crítico e académico Stanley Edgar Hyman, tenha insistido em que as “visões sombrias” que são frequentes na sua obra eram “símbolos do mundo angustiante do campo de concentração e da Bomba” (e se bem que um conto como “The Intoxicated” – o primeiro dos antologiados em The Lottery e um dos melhores – além da conhecida familiaridade da autora com o polémico L’Univers Concentrationnaire (1946) de David Rousset, possam parecer abonar esta tese), toda a indefinida insatisfação e frustração da generalidade dos protagonistas da sua ficção e a nostalgia quase sempre presente na sua obra de um almejado e já impossível tempo melhor dão razão aos críticos que vêem na sua obra a expressão das “fantasias pessoais, até neuróticas” que Hyman queria de certa maneira excluir. O inferno somos nós.

Shirley Jackson continuou a reinar depois de morta. Rádio, televisão, teatro e cinema têm-se interessados marginalmente mas constantemente pela sua obra. No cinema, o caso mais conhecido, embora menor, foi o filme “The Haunting” (“A casa assombrada”, 1963, de Robert Wise), adaptação de The Haunting of Hill House, refeito sem grande sucesso em 1999 (“A mansão”, Jan de Bont).

[o trailer de “A Casa Assombrada”]

The Bird’s Nest, outro dos cinco romances que publicou em vida, também foi adaptado ao cinema em 1957 (“Lizzie”, Hugo Haas) e “A lotaria” teve mais do que uma versão cinematográfica, em especial uma elogiada produção da Enciclopédia Britânica, curta-metragem digna mas laboriosa e de um didatismo um tanto hirto, dirigida por Larry Yust. No teatro, foram representadas, ao que parece sem grande êxito, adaptações de We Have Always Lived in the Castle, uma das quais foi posta em cena em 1966 por Garson Kanin, escritor, argumentista, homem de teatro, uma figura hoje pouco falada mas muito relevante no cinema americano dos anos 30. Em 2010 subiu à cena uma versão musical desse livro. Joanne Woodward dirigiu em 1982 para a televisão uma encenação de “Come Along with Me”, adaptação do seu romance inacabado. Está prevista a estreia em 2017 de uma produção cinematográfica de, mais uma vez, We Have Always Lived in the Castle. Neste ano do centenário do seu nascimento foi publicada uma nova biografia sua: Shirley Jackson: A Rather Haunted Life de Ruth Franklin.

Shirley Jackson - A Rather Haunted Life de Ruth Franklin

A biografia da autoria de Ruth Franklin

Shirley, de costa a costa

Shirley Jackson nasceu numa família burguesa e abastada de São Francisco, a 14 de Dezembro de 1916. Morreu, em 1965, do outro lado dos Estados Unidos, em North Bennington, uma terriola do Estado de Vermont, a meio caminho entre Nova Iorque e o Canadá, onde passou quase toda a sua vida adulta. Continuam a ser reeditados todos os seus livros publicados – e publicados mais alguns. Entre nós, no entanto, só está traduzido, salvo erro ou omissão, We Always Lived in the Castle, de 1962, o seu último romance – Sempre vivemos no castelo, Cavalo de Ferro, 2010 – publicado pouco antes da submersão da autora no “negrume visível” que a acompanhou quase até – ou até – morrer: há quem pense que a síncope cardíaca oficial tenha sido de facto uma sobredose voluntária de calmantes.

Em 1996, no octogésimo aniversário do seu nascimento, dois dos seus filhos organizaram um volume de contos da mãe nunca antologiados ou inéditos, uma colectânea de duvidoso critério na opinião muito negativa que então lhe dedicou uma ilustre admiradora da autora, a escritora Joyce Carol Oates. Just an Ordinary Day era, segundo ela, uma “mistela desconcertante” de meia dúzia de bons contos e muitos outras peças que não estavam à mesma altura, “uma lotaria sem ganhadores”. “Poderia ter ficado melhor servida – continuava – … com um volume de obras “novas e seleccionadas”, que reimprimisse a obra mais importante de toda a sua carreira e fosse prefaciada por uma substancial introdução biográfica e crítica.”

Shirley Jackson não tem sido comparada só com Henry James. Outros nomes insignes da literatura têm vindo à pena dos seus críticos. Já agora, The Intoxicated, não envergonharia o J. D. Salinger das "Nine Stories".

Esse trabalho foi ela quem se abalançou a tentar fazê-lo, uma quinzena de anos mais tarde, no volume que dedicou a Shirley Jackson da Library of America: Shirley Jackson: Novels and Stories (2010). Organizada e prefaciada por Oates, essa colectânea inclui na íntegra a antologia de contos The Lottery, os romances The Haunting of Hill House e We Have Always Lived in the Castle, além de “outros contos e esboços”. Outro dos seus admiradores, Stephen King, escreveu no seu livro sobre literatura e cinema de terror, Danse Macabre, que “(The Haunting of Hill House) e The Turn of the Screw de [Henry] James são os dois únicos grandes romances do sobrenatural dos últimos cem anos”. Shirley Jackson não tem sido comparada só com Henry James. Outros nomes insignes da literatura têm vindo à pena dos seus críticos. Já agora, The Intoxicated, não envergonharia o J. D. Salinger das Nine Stories.

Um dos contos nunca publicados em livro que Carol Oates incluiu na sua primeira antologia da Library of America é “The possiblity of evil.” Mas toda a obra de Shirley foi escrita à sombra não da possibilidade do Mal – mas da sua angustiosa probabilidade.

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