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A portrait painting of writer fyodor dostoyevsky by vasily perov, 1872.
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Fiódor Dostoiévski nasceu em Moscovo, a 11 de novembro de 1821. Morreu em S. Petersburgo, a 9 de fevereiro de 1881

Universal Images Group via Getty

Fiódor Dostoiévski nasceu em Moscovo, a 11 de novembro de 1821. Morreu em S. Petersburgo, a 9 de fevereiro de 1881

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Dostoiévski: há 200 anos a atormentar-nos a consciência

O espírito convulso, a toada febril, os lugares psicológicos que não queremos, as pulsões mórbidas dos nossos sentimentos, tudo isso dota Dostoiévski, que faria 200 anos, de um inegável fascínio.

Muitos leitores encontraram em Fiódor Dostoiévski, escritor russo cujo 200.º aniversário se assinalou a 11 de novembro, um dos seus primeiros fascínios literários. A literatura carrega uma imensidão de génios de estilo e personalidade diferentes; no entanto, há um pequeno grupo — Oscar Wilde, Poe, Kafka, o próprio Dostoiévski — que parecem dotados de um génio mais óbvio e imediato. Enquanto as subtilezas de Henry James ou a arquitetura balzaquiana exigem um olhar mais ponderado e um espírito capaz de reconhecer a grandeza psicológica sem grandes proclamações, Wilde ou Dostoiévski têm um brilho flagrante, uma personalidade tão vincada e uma exuberância genial que tornam as suas obras imediatamente reconhecíveis como geniais.

Se em Wilde o humor sardónico em muito contribuirá para este reconhecimento, em Dostoiévski não é exatamente o estilo que atrai o leitor. A consciência convulsa, a toada febril, o alargamento do espírito para os lugares psicológicos que não queremos frequentar, a implacável demonstração das pulsões mórbidas dos nossos sentimentos, tudo isso dota Dostoiévski de um inegável fascínio.

A forma como os seus assuntos são desenvolvidos numa espécie de obsessão psicológica, a impossibilidade de escaparmos do trágico por paisagens ou diálogos que intervalem o caos tornam a obra de Dostoiévski imediatamente grandiosa. Não com a grandeza dos frescos e das visões panorâmicos, mas com uma grandeza vertical, monolítica: a grandeza dos abismos e dos caminhos por onde não podemos escapar.

A consciência convulsa, a toada febril, o alargamento do espírito para os lugares psicológicos que não queremos frequentar, a implacável demonstração das pulsões mórbidas dos nossos sentimentos, tudo isso dota Dostoiévski de um inegável fascínio.

Em Dostoiévski não há uma distracão, uma trégua: tudo fala inequivocamente à consciência, uma consciência que é alargada não só pela dimensão da culpa ou do remorso, mas pela novidade dos desejos. A vontade de matar, de ferir, de enganar, interpelam-nos porque Dostoiévski as narra de tal modo que não parecemos assistir à deflagração do mal: nós somos os sujeitos daquelas consciências alheadas do mundo exterior, atormentadas por si próprias.

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Duvido que algum leitor de Dostoiévski não tenha já passeado pelas noites de Inverno com aquela sensação de que a febre nos está a aguçar a sensibilidade e de pertencemos a uma outra espécie, à espécie dos Raskolnikovs, que o nosso verdadeiro estádio é o da doença.

Esta excitação primeira dos sentidos, o fascínio da leitura virgem de Dostoiévski, porém, tende a esvanecer quando nos embrenhamos na literatura. Aquele primeiro embate parece-nos exagerado, a pulsão para o crime digna de romances de cordel e de pasquins sensacionalistas, a febre alastra pelos mais datados romances psicológicos (como aqueles que o nosso pobre Gaspar Simões tentou), as trapalhadas estilísticas e romanescas, como aquelas que encontramos no confuso enredo de O Idiota, contrastam com o brilhantismo sereno de Flaubert ou Tolstói e até o moralismo parece um pouco ingénuo.

Monument to Fyodor Dostoevsky unveiled in Kaliningrad on his 200th birthday Monument to Fyodor Dostoevsky unveiled in Kaliningrad on his 200th birthday Monument to Fyodor Dostoevsky unveiled in Kaliningrad on his 200th birthday Monument to Fyodor Dostoevsky unveiled in Kaliningrad on his 200th birthday

Na cidade russa de Kaliningrad, foi inaugurada uma estátua do escritor para celebrar os 200 anos do seu nascimento, a 11 de novembro

Vitaly Nevar/TASS

Não é invulgar assistirmos ao juízo cético de grandes críticos em relação a Dostoiévski: Nabokov, por exemplo, não lhe perdoa o histerismo e a gama limitada de recursos técnicos. O sentimentalismo mórbido ultra-romântico, a substituição dos acontecimentos pelos relatos dialogados desses acontecimentos, e a obsessiva desatenção pelo que o rodeia poderiam fazer de Dostoiévski mais um génio aparente do que um verdadeiro gigante literário.

É vulgar, até, que Dostoievski provoque em leitores mais experimentados um sentimento de irritação: não apenas indiferença, como seria próprio dos escritores medíocres, mas a irritação que provocam os falsários e os charlatães, aqueles que pervertem o próprio sentido da literatura.

Ora, de facto, se entendermos a literatura de um ponto de vista formal, se olharmos para a moral das personagens dostoievskianas como fruto de doutrinas independentes, o seu romance tem tanto de ingénuo, como de plástico e de amador. No entanto, o que é mais interessante em Dostoiévski é a forma como ele se apropria destes elementos desordenados para criar uma literatura mais profunda. Debaixo do espalhafato que tanto pode deslumbrar como tocar as fronteiras do kitsch, há um monstro subterrâneo que anima verdadeiramente a obra de Dostoiévski.

Em Dostoiévski não há uma distracão, uma trégua: tudo fala inequivocamente à consciência, uma consciência que é alargada não só pela dimensão da culpa ou do remorso, mas pela novidade dos desejos.

Steiner, no seu Tolstói ou Dostoiévski, procurou resolver as insuficiências romanescas com recurso a uma genealogia particular para a obra de Dostoiévski. Se Tolstói renovava o épico, Dostoiévski herdava na sua obra a estrutura da tragédia. A semelhança dos temas dostoievskianos com os temas trágicos clássicos é mais ou menos evidente. A tragédia clássica tem como grande argumento dramático a imprevisibilidade do mundo e o modo como o destino se abate sobre os homens. Para acentuar a gravidade do problema, os grandes heróis trágicos são, de facto, heróis: homens virtuosos, bravos, que não merecem a sorte que lhes calha. Em Dostoiévski, só o príncipe Myshkin de O Idiota é verdadeiramente heroico, já não num sentido helénico, mas num sentido cristão. Ele é o homem bom, o novo Cristo, mas não pode ser separado do seu duplo, Rogozhin, e nem ele é imune aos problemas trágicos.

No entanto, as outras grandes personagens de Dostoiévski, mesmo que não sejam heroicas, são verdadeiramente trágicas. Raskolnikov, no Crime e Castigo, leva a tragédia a um ponto curioso: não o do acontecimento que se abate sobre ele, mas do facto de o inimigo, o exterior que comporta o elemento trágico, morar nele próprio. Se em Édipo há um destino que está fora dele e o leva a matar o pai, em Raskolnikov o caso é mais curioso porque o estranho é a sua própria consciência. A ideia de que o homem que escolheu matar, como um heroico Napoleão, não é depois capaz de controlar os efeitos da consciência, transporta a tragédia para outro nível: não é só a discrepância entre as intenções e os efeitos que torna os enredos de Dostoiévski entre o delirante e o trágico: é a consciência de que nós somos o nosso próprio trágico, de que a consciência não nos obedece e faz de nós estranhos a nós próprios.

É deste princípio que nasce também o remorso de Ivan Karamazov, de Os Irmãos Karamazov. Aí, a morte vem, num estilo mais clássico, de fora dos irmãos, do bastardo Smerdyakov; no entanto, depressa o remorso é transportado para Ivan, o irmão racionalista que fica como autor moral do crime e que não consegue, contra o seu próprio edifício filosófico, controlar o peso da consciência.

Dostoevsky House Museum opens after restoration in Moscow Dostoevsky House Museum opens after restoration in Moscow Dostoevsky House Museum opens after restoration in Moscow Dostoevsky House Museum opens after restoration in Moscow

A casa-museu onde Dostoiévski viveu em São Petersburgo foi reaberta esta semana após ter sido alvo de obras de restauro para celebrar os 200 anos do nascimento do escritor

Gavriil Grigorov/TASS

A consciência como a mais pesada e avassaladora das tragédias é, assim, um dos grandes temas de Dostoiévski e é aquilo que o põe na linha dos grandes moralistas, de Platão e Agostinho, passando por Pascal e Kierkegaard. A noção do poder da consciência como um poder estranho, capaz de superar, na linguagem de Kierkegaard, os pontos de vista estético e ético (Dimitri e Ivan, nas personagens de Os Irmãos Karamazov), é a mais subtil das intuições de Dostoiévski. É verdade que a discrepância entre os propósitos e as consequências ocupa grande parte dos enredos e está no centro, quer de Crime e Castigo, quer de O Idiota; no entanto, estes livros só resultam como mais do que compêndios morais porque a relação das personagens com a consciência não é pacífica.

A diferença entre os resultados e as intenções é estuada em toda a tradição estóica, em Boécio e na posterior literatura moral Cristã; no entanto, é estudada com um sentido de prevalência: não nos deve atormentar o mundo e aquilo que nos provoca, porque a consciência carrega aquilo que verdadeiramente somos e que se pode superiorizar ao que nos aparece.

Em Dostoiévski, porém, a consciência aparece como um estranho, em que não estamos inteiramente confortáveis. Podemos discordar da interpretação de Freud, a respeito do grande representante do papel da consciência nos irmãos Karamazov, Aliócha; para Freud, a presença de Aliósha no mosteiro é apenas um refúgio do pai. Não uma verdadeira vocação, mas uma peculiar forma do princípio de prazer, que levaria Aliósha a fugir do mundo. Por muito que não o vejamos com as lentes psicanalíticas, o desconforto de Alexei com a submissão à consciência e ao princípio religioso vai sendo cada vez mais evidente. Ora, isto leva à compreensão de outro ponto que, esse sim, é antevisto com grande argúcia por Freud. A compreensão do mundo de Dostoiévski como um mundo de jogo ganhar particular significado a partir desta estranheza da consciência.

A consciência como a mais pesada e avassaladora das tragédias é, assim, um dos grandes temas de Dostoiévski e é aquilo que o põe na linha dos grandes moralistas, de Platão e Agostinho, passando por Pascal e Kierkegaard.

Há, nas grandes personagens de Dostoiévski, uma pulsão contra a consciência, contra a ideia moral de bem, que é própria do quadro mental do jogador. A pulsão para a derrota, para o sofrimento, são alguns dos atrativos inconfessáveis do jogo, que ganham um significado especial em Dostoiévski. Lutar contra o destino, em Crime e Castigo e nos Irmãos Karamazov, não é apenas lutar contra o mundo; é lutar contra a consciência, contra o bem, como se o prazer viesse da derrota contra aquilo que nos domina.

Poucos escritores como Dostoiévski motivaram ensaios sobre a sua obra tão interessantes como a sua obra. De Freud a Heidegger (este com uma das mais belas análises sobre as categorias existenciais a partir de Os Irmãos Karamazov), há uma espécie de noção de que a obra de Dostoiévski tem um vigor incompleto, de que nem tudo ficou por dizer, que pede reflexão. Serão raros os casos de uma literatura tão clara, de propósitos tão definidos, e ao mesmo tempo tão incompleta e tão cheia de hipóteses de análise. As suas obras não têm aquele encanto, que tantas vezes se encontra na literatura, das descrições exatas da vida como ela é, aquela transcrição de ideias ou sentimentos confusos em que encontramos aquilo que pensávamos sem saber; no entanto, a sua galeria de pobres, bêbedos, cínicos, infelizes e inocentes, a sua panóplia de formas de remorso, culpa e consciência atormentada, mostram-nos a sombra das nossas vidas, como uma lembrança daquilo em que se podem tornar. De como um académico pode tornar-se autor moral e involuntário de um parricídio, de como a pulsão religiosa pode levar ao crime ou de como o heroísmo pode sucumbir perante uma prostituta.

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