Os estudantes recusam carne de porco servida na cantina? Duplique-se a dose de batatas fritas, sentencia Nicolas Sarkozy. Quanto custa uma napolitana (pain au chocolat)? Uns dez, 15 cêntimos, tropeça Jean-François Copé. Estes foram dois dos momentos que causaram mais frenesim mediático na campanha das eleições primárias do centro e da direita, cuja primeira volta decorre no domingo, dia 20. E que, através de dois alimentos pouco saudáveis, ilustram a tentação populista perante a islamização da sociedade, num caso, e, no outro, o alheamento da classe política à realidade do dia a dia.
A importância desta eleição ultrapassa em muito a grelha de fast-food das redes sociais, nas quais os dois casos citados estiveram a carbonizar. Com a popularidade de François Hollande a bater recordes negativos (apenas 18% de opiniões favoráveis) e a candidatura do homem que o “traiu com método”, o ex-ministro da Economia Emmanuel Macron, a ocupar espaço no centro, o centro-direita leva vantagem.
Salvo alguma surpresa, de uma magnitude quase comparável à da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, será a candidatura da direita à segunda volta das presidenciais — agendada para maio — a fazer face à extrema-direita encarnada por Marine Le Pen.
À imagem de 2002, o candidato vitorioso das primárias poderá fazer as vezes de Jacques Chirac contra Le Pen, só que agora digladiando-se com a filha de Jean-Marie. Chirac obteve no segundo turno mais de 80% dos votos. Um resultado difícil de repetir. Marine demonstra mais tacto político do que o pai, ao evitar declarações ostensivamente xenófobas e anti-semitas. E, ao fim de 15 anos, o mapa político alterou-se, com a ascensão dos nacionalismos um pouco por toda a Europa, e, em paralelo, com a ameaça do islamismo. O sismo Trump foi a última movimentação das placas tectónicas a elevar ainda mais o púlpito da Frente Nacional.
Salvo alguma surpresa, de uma magnitude quase comparável à da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, será a candidatura da direita à segunda volta das presidenciais gaulesas — agendada para maio — a fazer face à extrema-direita encarnada por Marine Le Pen.
Às inéditas primárias há sete concorrentes, após várias desistências e reprovações ditadas pela autoridade eleitoral criada ad hoc. Os franceses podem votar em mais de 10 mil locais, em troca de dois euros (para financiar a operação democrática) e comprometendo-se “com os valores republicanos da direita e do centro”. Na prática, estas regras permitem o voto a qualquer cidadão maior de idade, o que introduz um elemento de enorme incerteza.
À esquerda prefere-se Juppé a Sarkozy; na extrema-direita, o oposto. Juppé recolhe também as preferências de católicos e muçulmanos — a crer nas redes sociais e em fóruns, os últimos podem mobilizar-se a favor de alguém que tem um discurso que não os confronta. Ao Libération, o professor de ciências políticas Rémi Lefebvre, da Universidade de Lille, estima que 10% dos votantes serão de esquerda.
Brice Teinturier, director-geral da empresa de estudos de mercados Ipsos France, prefere destacar o papel dos votantes do centro e da direita: “Como a eleição se joga no seio da mesma família política, a fluidez eleitoral é máxima. Com efeito, os eleitores não têm o sentimento de ‘trair’ ao trocar de Juppé para Fillon ou para Sarkozy”, escreve no Le Monde.
A sondagem mais abrangente é divulgada por esse diário. Alain Juppé (36%), Nicolas Sarkozy (29%) e François Fillon (22%) disputam as duas vagas para o segundo round, enquanto Bruno Le Maire, Nathalie Kosciusko-Morizet, Jean-François Copé e Jean-Frédéric Poisson marcam terreno, à espreita de uma oportunidade no futuro Governo, nas legislativas que se seguirão às presidenciais.
Os dados dão conta de um avanço significativo de François Fillon (10% num mês). O terceiro e último debate televisivo a sete, que decorreu na quinta-feira à noite, posterior à sondagem, pode ter sido determinante para as aspirações dos homens que lideraram os destinos de França entre 2007 e 2012. Num inquérito realizado para a BFMTV logo a seguir ao programa televisivo, Fillon foi considerado o mais convicente (33%), contra 18% de Sarkozy; noutro, para o Le Point, Fillon foi ultrapassado por Juppé, mas obteve 25%, quase o dobro do marido de Carla Bruni (13%).
Sarkozy foi um protagonista pela negativa. Ao ser confrontado com as mais recentes acusações (o empresário Ziad Takieddine afirmou ter entregue cinco milhões de euros em malas oriundas de Muammar Kadhafi para a campanha presidencial de 2007), o homem que desencadeou a operação militar que derrubou a ditadura líbia mostrou-se indignado, num momento de particular tensão: “Não tem vergonha de dar eco a uma pessoa que esteve presa, que é um mentiroso?”.
No dia seguinte, Juppé, o candidato que reúne as preferências dos anti-Sarkozy, saiu a terreiro a defender o adversário, tendo considerado “um pouco escandaloso” que se façam acusações desta gravidade sem provas.
Juppé sabe o que é estar estar em baixo. Já foi condenado por conflito de interesses e foi alvo de protestos em alturas de grande impopularidade. Hoje é o favorito a ganhar as primárias. Enquanto primeiro-ministro, em 1997, Alain Juppé foi o saco de pancada virtual de grevistas quando tentou impor reformas na Segurança Social e no regime das pensões. Hoje, após três passagens fugazes pelo Governo durante a presidência de Sarkozy, o maire de Bordéus vale-se de um “perfil tranquilizador”, de “homem de Estado”, e de “filho espiritual de Jacques Chirac, que é muito apreciado pelos franceses”, como comenta ao Observador a chefe de redação do Lab d’Europe 1, Aurélie Marcireau.
Descubra as diferenças
Os três favoritos, que coincidiram entre 1993 e 1995 no Governo de Édouard Balladur (sob a presidência de François Mitterrand) não apresentam programas muito distintos — aliás, como os restantes candidatos. As diferenças residem mais nos números: se Sarkozy, por exemplo, defende o corte do número de deputados e senadores em 30%, Juppé esgrime com 50%. Aqui e ali, uma ideia menos ortodoxa, como a despenalização da cannabis ou a supressão do cargo de primeiro-ministro defendida por Nathalie Kosciusko-Morizet; outra mais conservadora, como a salvaguarda das raízes cristãs na Constituição, defendida por Jean-Frédéric Poisson (o único candidato de outro partido que não Os Republicanos, do Partido Democrata Cristão).
A unanimidade encontra-se na agenda que a Frente Nacional tem imposto nos últimos anos. Todos querem endurecer as leis no que concerne à imigração, às fronteiras e à segurança.
Fillon distingue-se ao defender menos meio milhão de funcionários públicos em cinco anos, por desejar reescrever a lei sobre o casamento para todos (impedindo a adoção por casais do mesmo sexo), mas também em Vencer o totalitarismo islâmico, como o título de um livro que escreveu. Aqui, o homem que desempenhou o cargo de primeiro-ministro durante o mandato de Sarkozy no Eliseu defende o combate à radicalização dos salafistas dentro das fronteiras, mas sobretudo a necessidade de chegar a um acordo com a Rússia para derrotar o Estado Islâmico na Síria. Uma proposta antagónica à de Juppé, e com a qual pode marcar pontos, uma vez que o aproxima do futuro Presidente americano.
À direita da direita, Marine Le Pen desfruta o momento
No plano internacional, as estrelas conjugam-se: a vitória do Brexit no referendo britânico e a eleição de Donald Trump dão um novo alento ao velho discurso nacionalista. “Desejo que também em França o povo possa virar a mesa à volta da qual as elites têm dividido aquilo que deveria pertencer aos franceses”, disse Marine em entrevista à BBC.
Já noutra entrevista, ao jornal Présent, não fez a coisa por menos: se o fim do século XX ficou marcado pela queda do Muro de Berlim, “o século XXI nasceu com a grande oscilação de equilíbrios que resultam da eleição de Donald Trump”. Le Pen não perdeu a oportunidade para criticar o presidente francês, ao dizer que o norte-americano tem o seu número de telefone, “ao contrário de Hollande”.
A líder da extrema-direita francesa coincide também no elogio à Rússia de Vladimir Putin, cuja política de “protecionismo racional” tem como fim “defender os interesses do seu país e da sua identidade”
Identificada com o discurso do milionário nova-iorquino contra os imigrantes e os acordos de comércio livre, a líder da extrema-direita francesa coincide também no elogio à Rússia de Vladimir Putin, cuja política de “protecionismo racional” tem como fim “defender os interesses do seu país e da sua identidade”.
Dias depois, imaginou um futuro no qual toma as rédeas do Eliseu e se junta a Trump e Putin. “Isso será bom para a paz mundial”. Porquê? Porque, além de estabelecer boas relações com Moscovo, o alinhamento com a estratégia do Kremlin (e, aparentemente, de Trump) no que respeita à guerra na Síria seria decisivo para a resolução do conflito.
No plano doméstico, Marine Le Pen vê as sondagens estamparem-lhe o carimbo para a segunda volta das presidenciais. Seja qual for o cenário. Na pesquisa mais recente (e ampla, com base em mais de 12 mil pessoas que expressaram intenção de ir às urnas), divulgada pelo Le Monde, a candidata da Frente Nacional obtém 27% ou 29% dos votos na primeira volta, caso o oponente republicano seja Juppé ou Sarkozy, respectivamente.
É de ter em conta que as primárias dos socialistas ainda estão por realizar e ainda não se sabe se é François Hollande se Manuel Valls quem avança. O chefe de Estado continua a agonizar nas sondagens e, se as eleições fossem agora, ficaria atrás do candidato da extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon, bem como do jovem turco Emmanuel Macron. O actual primeiro-ministro não faria muito melhor, pelo que uma segunda volta entre Marine Le Pen e o vencedor das primárias de direita é o cenário mais provável.
É certo que, noutra avaliação de popularidade, o barómetro de ação política Ipsos/Le Point, Le Pen só olha de cima para Hollande: recolhe 25% de opiniões favoráveis contra 51% de Juppé, 43% de Fillon e 29% de Sarkozy. Mas estes números não tranquilizam o establishment. Antigos primeiros-ministros da direita, como Jean-Pierre Raffarin ou Dominique de Villepin, mostram inquietação. “Desde o Brexit que a linha da frente da razão já não existe. Hoje a madame Le Pen pode ganhar”, afirmou o primeiro, apoiante de Juppé. O segundo, que declarou abster-se nas primárias, também crê na hipótese da vitória da extrema-direita. Aos microfones da France Info, o antigo diplomata afirmou: “O medo e a raiva são os atores principais da democracia e a razão ao serviço das elites já não convence ninguém”.