“Existe muita incerteza.” A expressão é repetida incessantemente sobre a situação na Catalunha. “Incerteza”, uma palavra adequada, já que ninguém — autoridades catalãs e espanholas — passou por isto antes. Artigos legais nunca antes acionados, ameaças de detenções, fantasmas de eleições antecipadas a pairar no ar — tudo isto tem sido invocado nos últimos dias. Esta terça-feira, o chefe da Generalitat, Carles Puigdemont, aparecerá perante o parlamento catalão a fim de avançar com o processo independentista. O que acontecerá depois?
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Uma declaração descafeinada?
Tudo dependerá de quais forem as palavras exatas do chefe de governo catalão. Isto mesmo explicou ao Observador José Fernández-Albertos, politólogo espanhol doutorado em Harvard e atualmente investigador do Instituto de Políticas e Bens Públicos, em Madrid: “Dentro do governo catalão há, ao que parece, fortes debates sobre qual a melhor estratégia a seguir. É provável que haja uma declaração [de independência] ‘descafeinada’ — seja porque propõe um prazo até ser efetiva, seja pelo seu conteúdo –, mas também pode haver uma declaração formal como a prevista pela lei do referendo.”
Uma declaração descafeinada ou musculada? Essa é a primeira questão. Depois de vários membros do executivo catalão terem garantido que uma declaração de independência unilateral está para breve, outros apontaram para caminhos diferentes. “Uma declaração simbólica”, foi a expressão usada por Marta Pascal, coordenadora-geral do PDeCAT (um dos principais partidos independentistas da coligação governamental, ao qual pertence o próprio Puigdemont), à BBC no domingo.
Também o eurodeputado do mesmo partido Ramón Tremosa avançou com outra possibilidade, ao trazer à conversa o exemplo da independência da Eslovénia, país que disse ter feito “uma coisa muito interessante” que poderia ser “uma opção” para Puigdemont: depois de declarar a independência, o país “suspendeu-a durante uns meses com o intuito de negociar um referendo acordado com Belgrado”, explicou Tremosa à rádio Onda Vasca. “Ao fim de seis meses de negociação, em que a outra parte nem sequer se sentou à mesa, começaram a chegar os reconhecimentos internacionais”, acrescentou o eurodeputado.
Por outro lado, Barcelona pode optar por carregar na cafeína. Essa é a convicção do professor catedrático de Direito na Universidade Autónoma de Barcelona, Rafael Arenas García: “Creio que o parlamento da Catalunha vai aprovar uma declaração unilateral de independência na terça-feira”, diz ao Observador o jurista, que é contra a separação da Catalunha, como explicou num artigo publicado no New York Times. “É provável que esta declaração venha acompanhada de tentativas de ocupação das ruas por parte dos grupos mais radicais do independentismo”, prevê. Poucas horas depois de o jurista falar com o Observador, a associação independentista Assemblea Nacional Catalana anunciava uma concentração para esta terça-feira às 17h (hora de Portugal), altura em que Puigdemont irá comparecer no parlamento catalão.
O contra-ataque com o artigo 155 (e não só)?
Se a declaração unilateral de independência for musculada, será provavelmente aplicado o famoso artigo 155 da Constituição. A porta foi aberta na manhã desta segunda-feira pela vice-presidente do Governo espanhol, Soraya Sáenz de Santamaría, que, embora admitindo que este é um artigo ainda “pouco estudado”, não deixou margem para dúvidas de que Madrid agirá perante uma declaração unilateral de independência. “Isso não vai ficar sem resposta”, garantiu.
O artigo 155 é vago, já que fala apenas em “adotar as medidas necessárias” para obrigar uma “Comunidade Autónoma que não cumpra as obrigações da Constituição” a fazê-lo e dá poderes ao Governo para que dê “instruções a todas as autoridades das Comunidades Autónomas”. É aquilo que Arenas García define como “uma lei aberta”. Como se aplica então na prática? “Penso que o 155 poderá ser usado para substituir o governo regional por pessoas nomeadas pelo Governo espanhol. Desta forma, seria possível controlar a administração autonómica e impedir que seja utilizada para a instauração de uma República Catalã”, responde o jurista.
Esta é uma solução inédita e demoraria alguns dias a ser posta em prática. Isto porque a sua aplicação tem de ser aprovada pelo Senado e necessita de cumprir alguns prazos, definidos no artigo 189 da câmara alta:
- Mariano Rajoy, como presidente do Governo, tem de tomar a iniciativa e enviar um requerimento a Puigdemont para que cumpra a Constituição;
- Não tendo resposta positiva, deverá então enviar um pedido por escrito ao Senado, onde explique de forma detalhada que medidas pretende aplicar ao cumprir o artigo 155. Este pedido “deverá ser cuidadosamente argumentado com base no Direito”, como explica o La Vanguardia;
- A Mesa do Senado enviará depois o pedido para a Comissão Geral das Comunidades Autónomas (ou criará outra comissão para o efeito). Esta comissão contactará o governo regional catalão para ouvir os seus argumentos. Depois enviará um parecer à câmara, que votará o pedido de aplicação do artigo 155.
Tendo em conta que o Partido Popular (PP) de Rajoy dispõe de maioria absoluta no Senado (149 membros em 266), todo este procedimento poderá não passar de uma formalidade. Contudo, Rajoy já explicou que quer ter o apoio do PSOE para tomar uma medida desta magnitude e o seu líder, Pedro Sánchez, foi mesmo forçado a pronunciar-se sobre o 155 e a dar o seu apoio. “Da mesma forma que estendemos a mão para dialogar, também apoiaremos a resposta do Estado de direito perante a quebra unilateral da convivência entre espanhóis”, acabou por dizer o líder socialista esta segunda-feira. “Uma declaração unilateral de independência não tem lugar em nenhum Estado social de direito”, declarou, reafirmando que esse processo “viola” a Constituição. “O importante é o que dirá amanhã o presidente da Generalitat”, rematou Sánchez, colocando a pressão de novo sobre Puigdemont.
É por isso cada vez mais claro que o artigo 155 poderá mesmo ser a solução escolhida por Madrid. Embora nunca tenha sido aplicado — e tenha sido usado como ameaça apenas uma vez, em 1989, por Felipe González contra as Canárias — para alguns constitucionalistas é a medida “mais acertada” nesta situação. Isso mesmo diz ao Observador o professor de Direito Constitucional Miguel Presno Linera. “As autoridades do Estado assumiriam o exercício de competências que agora é exercido pelos poderes públicos catalães, de acordo com a autonomia concedida pela Constituição”, resume. “Na prática, poderia gerar problemas se os funcionários públicos catalães se negassem a seguir as indicações das autoridades estatais. Mas nesse caso estariam a incorrer em infrações administrativas e/ou penais muito sérias.”
Mas nem só do artigo 155 pode vir a ser feita a reação de Madrid a uma declaração de independência. Pode igualmente ser declarada a Situação de Interesse para a Segurança Nacional, como explica Arenas García: “Isso poderia implicar a nomeação de uma autoridade funcional que assumisse a coordenação da polícia regional com outras polícias, a fim de adotar as medidas necessárias para garantir a segurança.”
Esta medida, prevista na lei de Segurança Nacional, pode ser aplicada quando uma crise “requer uma coordenação reforçada das autoridades” devido à “gravidade dos seus efeitos e dimensão”. Ao El País, fontes do Governo relembraram que o mecanismo “foi desenhado para situações (catástrofes ou atentados) nos quais as diferentes autoridades estão disponíveis para se deixarem coordenar, mas não é claro como tal funcionaria num cenário de conflito”.
Pode igualmente ser declarado o Estado de Exceção ou até o Estado de Sítio, acionando o artigo 116, embora nunca tais medidas tenham sido aplicadas em toda a História da democracia em Espanha. “As medidas a adotar implicam a suspensão temporária de direitos como a liberdade individual, a inviolabilidade de domicílio e a privacidade das comunicações, a liberdade de expressão e informação, o direito à reunião, o direito à greve…”, explica Presno Linera. “Não creio que seja aconselhável, nem em termos constitucionais, nem em termos políticos.”
Detenções e, depois, eleições?
Chegará a situação a esse ponto? Mais uma vez, será preciso ouvir o que Puigdemont tem a dizer na terça-feira para saber. No entanto, o que foi feito até agora pode já ser suficiente para deixar os líderes catalães em problemas, como explicou Arenas García. “Puigdemont e os membros do seu governo já têm abertos procedimentos penais por desobediência, prevaricação e gestão danosa. Uma declaração de independência poderia aumentar o número de acusações. E não é de descartar a possibilidade de se abrirem também investigações por delitos mais graves como o de rebelião, que implica uma pena de prisão séria. Podem ser chamados a prestar declarações ou, eventualmente, ser detidos.”
O PP foi um dos vários partidos que na manhã desta segunda-feira condenou os gritos de “Puigdemont para a prisão” que se ouviram na manifestação a favor da unidade de Espanha do passado domingo. No entanto, Pablo Casado, vice-secretário da comunicação do partido, deixou no ar uma ameaça, dizendo que “Carles Puigdemont tem de dialogar é com o seu advogado”. “Vamos impedir a independência, tomar-se-ão as medidas que forem necessárias e irá fazer-se tudo o que for preciso tendo em conta todos os instrumentos da Constituição e do Código Penal”, disse Casado à saída da reunião executiva do partido na manhã desta segunda-feira.
“Que não se repita a História porque acabam como o Companys!”, disse ainda. A ameaça referia-se a Lluís Companys, presidente da Generalitat que tentou proclamar uma república catalã em 1934 e acabou detido, julgado por rebelião e condenado.
Detenção de Puigdemont, restrições às liberdades fundamentais, governo catalão decapitado e substituído. Todas estas são hipóteses reais, mas podem mesmo não passar de meras possibilidades. Muitos falam em eleições antecipadas na Catalunha — o líder do Ciudadanos, Albert Rivera, tem dito isso mesmo, pedindo a Madrid que as imponha –, sejam elas decretadas pelo Governo central após a aplicação do artigo 155, sejam antecipadas pela própria Generalitat. “Tem-se especulado sobre a possibilidade de ser o próprio Puigdemont a convocar eleições autonómicas”, explica Arenas García. “Ou seja, faria a declaração de independência e imediatamente a seguir convocava eleições que formalmente seriam autonómicas, mas que na prática seriam eleições constituintes da República Catalã.”
Essa seria uma via mais aguerrida — mas as eleições também podem surgir numa forma mais suave: “Para evitar a aplicação do artigo 155, o presidente da Catalunha ou o parlamento podem dar um prazo de tempo específico antes da declaração de independência para ganhar tempo e, depois, convocar eleições esperando um bom resultado”, sugere o constitucionalista Presno Linera. “O problema é que neste momento é muito difícil fazer o prognóstico dessa situação.” Ou seja, mais uma vez, tudo redundaria em incerteza.