Não é assunto. É extemporâneo. Não há conversas sobre isso. Não faz sentido colocar a questão. Pensa-se depois. Pergunte-se a quem se perguntar no Bloco de Esquerda, mesmo entre dirigentes de sensibilidades diferentes, a resposta é a mesma: sete anos depois de ter assumido a liderança do Bloco de Esquerda — nove, se se juntarem os dois anos de coordenação ao lado de João Semedo, durante o período da “liderança bicéfala” — ninguém quer discutir a sucessão de Catarina Martins. Mas há um risco evidente: se a garantia é que a coordenadora fica pelo menos neste ciclo político — o que significa que o timing da sucessão no Bloco até poderia acompanhar o timing da sucessão no PS –, para já não existe um nome óbvio para assumir uma liderança futura. E isso é um desafio por resolver no Bloco.
Com um factor que complica essas contas: o embate presidencial veio retirar a Marisa Matias aquele que seria um dos seus principais argumentos numa hipotética corrida à liderança. A popularidade da eurodeputada tinha ficado provada nas eleições presidenciais de 2016, quando obteve 10% e se tornou a mulher mais votada de sempre; com a repetição da aposta, em janeiro deste ano, Marisa só chegou aos 3,95%, ficou atrás de ambos os candidatos da esquerda e nem a onda de solidariedade das redes sociais contra André Ventura a ajudou. O capital que tinha conquistado nas urnas pode ter ficado, assim, em risco.
No Bloco, que tem uma convenção nacional marcada para este fim de semana (de 22 a 23 de maio, em Matosinhos), quando a pergunta é sobre a liderança, a resposta é o silêncio. Ou melhor: há silêncio sobre alternativas de futuro, embora se sublinhe que existe uma geração jovem preparada. E acumulam-se respostas sobre as razões para Catarina seguir inquestionável. Pelo menos, neste ciclo político. Liderou na geringonça, lidera no pós-geringonça; resta saber se, terminado o ciclo de António Costa, a renovação também chegará ao Bloco.
Derrota nas presidenciais? Catarina não foi candidata
Os últimos tempos até podem ter representado um desafio real para Catarina Martins e a sua direção: afinal, esta convenção acontece depois de o partido ter, pela primeira vez, votado contra um Orçamento do Estado apresentado por António Costa, de ter sido rotulado como um “desertor” pelo PS e de, poucos meses depois, ter enfrentado o primeiro sério desaire eleitoral em anos, com o fraco resultado de Marisa Matias nas presidenciais de janeiro.
Acontece que, dentro do partido, o entendimento é o contrário: o que correu bem foi em boa parte graças a Catarina Martins, que vários bloquistas descrevem como um dos ativos políticos mais preciosos que o partido tem. Quanto ao que correu mal, os dedos apontam noutra direção. “A Catarina Martins não foi candidata às presidenciais…”, recorda um dirigente. Subtexto: a derrota até pode ter sido de toda a direção, que assumiu o resultado como fraco e aquém dos objetivos. Mas nada tem a ver com a figura da coordenadora.
A isto soma-se a convicção de que o desaire presidencial não se explica com a estratégia escolhida pelo partido em relação ao Orçamento e ao PS. De resto, houve esse cuidado em gerir os danos anunciados: poucos dias depois da noite eleitoral, os dirigentes bloquistas já passavam a mensagem de que as sondagens à boca das urnas sobre legislativas davam ao Bloco um resultado superior ao de Marisa Matias e em linha com o que era esperado antes da descolagem do PS. Ou seja, se a eleição fosse legislativa e portanto tivesse Catarina Martins como cara principal na corrida o resultado seria diferente, acredita o Bloco.
Geração bem preparada, mas falta dimensão nacional
As discussões sobre os nomes que poderiam suceder a Catarina não existem “nem em público nem em privado”, garante um dirigente bloquista. Mas isto não significa que os mesmos dirigentes deixem de mostrar satisfação com o facto de o partido contar com uma geração jovem — Mariana Mortágua, Pedro Filipe Soares, Jorge Costa, Joana Mortágua, José Soeiro, Moisés Ferreira, Fabian Figueiredo… — que está distribuída por cargos de direção e toma a dianteira na bancada parlamentar. Mesmo que não haja um nome em concreto a ser preparado para o futuro, há uma bolsa de nomes bem preparados para assumir (mais) responsabilidades; o problema é que poucos têm dimensão nacional.
Um dos nomes que teriam mais hipóteses de constituir uma alternativa — pela posição de destaque no partido, a dimensão mediática e a notoriedade que foi conquistando — é o de Mariana Mortágua, que domina as questões orçamentais e da banca no partido e que assume um lugar destacado no Parlamento. Mas isso dependeria sempre da vontade da deputada e dirigente — e não é certo que Mariana Mortágua alimente essas ambições.
O momento para discutir uma possível sucessão está por definir. “As dinâmicas são imprevisíveis”, aponta um dirigente bloquista. Até ver a coordenadora do partido aguentou a gestão de um ciclo político delicado, o da geringonça, que arrancou em 2015, e está agora a gerir a etapa seguinte, já depois da rutura com o PS. Enquanto Costa for primeiro-ministro — especialmente de um Governo minoritário, situação que o BE quer assegurar que se mantém –, não há pressa em pensar no futuro.
Os bons resultados que os bloquistas apontam a Catarina Martns verificam-se fora do partido — há quem aponte para os rankings de popularidade dos líderes políticos junto do eleitorado, por exemplo — e dentro, com um critério principal: como aponta um dirigente, a líder “tem sabido ser a porta-voz de diversas sensibilidades”. E isto é um fator crucial para perceber a continuidade de Catarina, que dirige o partido com uma moção assinada precisamente por pessoas de várias sensibilidades, incluindo, à cabeça, dois daqueles que poderiam ser os seus possíveis sucessores: Pedro Filipe Soares e Marisa Matias.
O embate de 2014 e a paz entre principais fações
Num momento em que a liderança parece consensual, é fácil esquecer que Catarina Martins chegou ao cargo depois de um par de anos tumultuosos na vida interna do Bloco de Esquerda e até de um empate técnico com a candidatura de Pedro Filipe Soares que ameaçou tornar o partido ingovernável.
Em 2012, quando Francisco Louçã anunciou a saída da coordenação e do Parlamento, argumentando com a tal necessidade de renovação do partido –, Catarina Martins assegurou essa renovação geracional juntou-se a João Semedo para construir uma liderança bicéfala eficaz.
Mas a previsão falhou: ainda a sofrer com o trauma do chumbo do PEC IV, com a bancada parlamentar a encolher dramaticamente após as legislativas de 2011, e com um partido dividido e marcado por sucessivas saídas de dirigentes de peso, sucederam-se as críticas à solução de liderança. Essas críticas acabariam por materializar-se numa candidatura alternativa de Pedro Filipe Soares, em representação da tendência Esquerda Alternativa (que vem, em parte, da UDP), na convenção de 2014.
Foi essa convenção que acabou por resultar num empate técnico entre as duas alternativas e foi então que, depois de uma semana tensa de negociações, João Semedo decidiu deixar a coordenação e abrir espaço a Catarina Martins para que esta pudesse encarregar-se da liderança a solo. Para trás ficava um ciclo de derrotas (incluindo nas eleições europeias desse ano); o futuro construía-se com base num pacto para unir o partido, com uma votação expressiva — 93% — a favor da nova direção, que acabou por juntar as duas fações concorrentes.
No ano seguinte, a líder recolheria elogios com a prestação na campanha legislativa de 2015, usando os debates contra os adversários para mostrar as correções feitas ao nível do visual e da voz, assim como a preparação cuidada sobre cada tema. Nessas eleições, o “fator Catarina” ficava consolidado e a tendência de Pedro Filipe passava a mostrar-se em sintonia com a liderança de Catarina Martins, enterrando o machado de guerra e passando a elaborar moções conjuntas às convenções do partido (tal como acontece este ano).
Críticos ganharam lugares mas recusam “pessoalizar”
Até agora, com resultados que entre várias sensibilidades, incluindo as que desafiavam Catarina Martins em 2014, são considerados positivos, os dirigentes que falaram com o Observador apontam o facto de mesmo as moções críticas da direção atual não apresentarem uma alternativa clara de liderança.
Esse será um dos desafios internos com que a direção terá de lidar, agora que a moção E, promovida pelo movimento crítico Convergência, arrecadou 18,6% dos votos para eleger delegados à convenção, reclamando um espaço maior (um espaço formal, uma vez que na última reunião magna do partido não se apresentou a votos) e colocando exigências à direção. Ao Observador, o ex-deputado Pedro Soares, que assina a moção, recusa “pessoalizar” as divergências e dirige as suas críticas a toda a direção, desafiando os dirigentes atuais a “debater a linha política do partido”, mais do que os nomes que a representam. Por agora, e mesmo sabendo que o ciclo político pós-geringonça será de gestão difícil, Catarina segue inquestionável.