Percebo a emoção com a vinda do Papa, apesar de não a partilhar. Consigo ver que é histórico um tetra campeonato para o Benfica. Mas caramba, aquilo que vamos contar aos netos é que nos lembramos de quando ganhámos a Eurovisão, e de cabazada, com 143 pontos de avanço. Nós, que passámos anos à míngua dos pontos de misericórdia da vizinha Espanha. Nunca tinha acontecido, não me admira que nunca mais volte a acontecer. Foi uma tempestade perfeita, que parece agora uma jogada de xadrez altamente estudada mas que tem muito de obra orgânica do acaso. É melhor assim, dá uma história mais bonita para a posteridade.
A noite de hoje retomou (vamos ver durante quanto tempo) a chama da já há muito frígida relação dos portugueses com a Eurovisão. Longe vai o tempo em que obrigava a Leninha no recreio da primária a aprender a letra do “Conquistador” dos Da Vinci (ela hoje faz parte da banda punk Anarchicks, penso que em clara rebeldia face a esses momentos). Mas não faço parte do grupo de pessoas que pode afirmar que não via a Eurovisão há anos. Despendo muito do meu tempo a ver bizarrias televisivas (até um canal sul-coreano marcha), por isso picar o evento é um hábito desprendido mas quase anual — o suficiente para vos poder garantir, por exemplo, que no ano passado a cenografia era muito melhor e que já estava careca de saber que a Austrália fazia parte. E quem acha que aquilo está esquisito, decididamente não lhe presta atenção há umas boas duas décadas. Desde os monstrinhos filandeses Lordi que tanto atormentaram Eládio Clímaco ao austríaco Conchita Wurst que tanto atormentou quem tem asco a sexualidades não binárias, tem acontecido de tudo.
A cerimónia arrancou com o mítico separador com o Hino da Alegria, um rebuçado Floco de Neve auditivo por tanto lembrar a infância. Seguiu-se outra constante: o vídeo de apresentação do país anfitrião, tão bimbo que parece aqueles fundos de karaoke mas mais bem filmado. Daí fomos para uma forçada passagem de modelos com os intérpretes numa chuva de confetti digitais e depois a caminharem por um corredor de fãs (ao menos que fosse aquele corredor de carolos da escolinha, sempre dava algum frisson). Salvador Sobral apresenta-se constrangido. Percebo, eu estou num sofá a 3350 quilómetros de distância e também estou.
O lema é o de uma “Europa unida”, numa altura em que o Velho Continente está claramente fragmentado. Os apresentadores e comentadores de serviço estão tão sedentos que o tal lema funcione que veem essa unidade em tudo. “Olha, uma bandeira de arco-íris”; “olha, uma pessoa a cantar na sua língua nativa”; “olha, uma pessoa de barba”; “olha, duas pessoas com um casaco parecido”.
Das 26 músicas presentes, uma quantidade assinalável tem como cantor alguém que vem do The Voice do seu país. E ainda dizem que aquela malta não tem futuro à sua frente. Cá estão elas
Israel: IMRI, “I Feel Alive”
Uma vez numa noite particularmente complicada fui parar a uma discoteca em Cruz de Pau. Se não tivesse sido algures em 2003, poderia jurar que esta música tinha passado. A música não tem grande história, é pop dançável que mete os tímpanos a comer pastilha elástica, mas fascinou-me que o cantor rapasse os pelos dos braços só e exactamente até à zona do cotovelo.
Polónia: Kasia Mos, “Flashlight”
Há um senhor com um violino a tentar trazer dignidade a um tema no qual a cantora não faria virar uma cadeira no The Voice, mas faz-me a mim revirar no sofá com algum desconforto. Bom, vou aproveitar para ir cozer massa para o jantar.
Bielorússia: Naviband, “Story Of My Life”
Uma espécie de White Stripes chungas, que ao menos trouxeram festa e esse instrumento em via de extinção do mundo festivaleiro que é a viola-tipo-acampamento-de-escuteiros. Ah, e mostraram que as lanchas deviam ser mais vezes usadas como adereço de palco.
Aústria: Nathan Trent, “Running On Air”
Isto passa na Rádio Comercial, não passa? Como não? Uma canção sobre resiliência repleta de lugares comuns que eu se calhar vou um dia adorar se me tornar numa divorciada mal resolvida a precisar de canções que me digam que sou linda e vou vencer.
Arménia: Artsvik, “Fly With Me”
Mistura entre pop com um lado mais tradicional – pronto, é lá a Lúcia Moniz deles, mas com um enorme carrapito que me aleija nas raízes capilares só de ver. É pelo menos a primeira a não soar a mais do mesmo.
Holanda: OG3NE, “Lights And Shadows”
Trigémeas, cada uma com a sua cor de cabelo, algo que me parece claramente talhado para as fantasias sexuais masculinas. Soa a Destiny’s Child com Sugababes – e, vá, não posso negar que tenho ambas no iPod. Falta-lhe um refrão orelhudo para eu cantarolar envergonhada. Acabam num pranto, o que me faz pensar que se calhar sou uma besta por estar a gozar com esta gente. Felizmente, é sentimento de culpa que me passa depressa.
Moldávia: Sunstoke Project, “Hey Mamma”
Dizem que é sobre uma despedida de solteiro, esse tema tão injustamente negligenciado pela pop. Não percebo porque estão eles tão ralados com as mães em vésperas de casar, mas suponho que Freud explica. Se passar numa despedida numa altura em que há mais tequila que sangue nas veias, estou certa que cumprirá o seu propósito. Talvez haja desacatos, como em Torremolinos.
Hungria: Joci Pápai, “Origo”
Um concorrente de etnia cigana que não poderia entrar num restaurante em Odivelas – e não sei como é que na Hungria de Orban entra seja onde for. Cantada na língua original, mistura tradição com hip hop e violinos. Uma salganhada que até resulta.
Itália: Francesco Gabbani , “Occidentali’s Karma”
OK, admito logo à partida: eu gosto desta música. Tem sentido de humor e referências contemporâneas – e gosto da imagem mental dos ocidentais armados em falsos zen precisarem de “Budas em fila indiana” (como diz a óptima letra). Francesco é um showman experienciado e não daqueles falsamente instantâneos e não precisava do macaco a distrair. O tema é uma referência ao Macaco Nu de Desmond Morris, livro de 1967 que descreve o ser humano como o animal que é. Volto a lembrar o Macaco Nu quando mais à frente no show um senhor invade o palco e mostra o rabo em directo.
Dinamarca: Anja, “Where I Am”
Passaram os três minutos do tema e eu não escrevi nada, o que não pode ser bom sinal. A cantora tem um vozeirão, mas tudo o resto é um gigante “meh”. É como se dessem à Mariah Carrey uma receita de bolo de iogurte para cantar.
Portugal, Salvador Sobral: “Amar Pelos Dois”
Para começar, eu pessoalmente adoro o que o Salvador está a fazer pela normalização dos perpectuamente despenteados do mundo (nos quais eu me incluo). É difícil ser objectivo, mas é bonita a simplicidade do único tipo até agora sozinho em palco, ali no meio do público. Quem diria que o truque para a Eurovisão era ser tão normal que se dá a volta e se parece a bizarria no meio das labaredas de lantejoulas?
Azerbaijão: Dihaj, “Skeletons”
Tem um cenário entre o grupo de teatro universitário e o restaurante hipster. A intérprete tem o ar zangado dos adolescentes que ouviam Tokio Hotel a caminho da aula de padel. Afaga um cavalo, o que para mim que cresci na Mem Martins dos anos 80 só pode ser uma referência a heroína. Tudo isto me distrai da música, que parece um lado B da Lorde.
Croácia: Jacques Houdek, “My Friend”
Começa com um discurso tipo Martin Luther King de pacotilha wannabe – e eu gosto pouco de músicas que me tentam doutrinar à força. Depois, o vocalista está em dueto com ele próprio, naquilo que parece mais um truque para distrair amigos em jantares e menos uma música. O resultado final parece Mika com Pavarotti. Ele está claramente a divertir-se mais a cantar isto do que qualquer um de nós está a ouvir. Uma das três piores músicas deste festival.
Austrália: Isaiah, “Don´t Come Easy”
O pequeno Frodo (sim, eu sei que Nova Zelândia não é Austrália) traz uma daquelas músicas pop armadas em inspiradoras que abundam como verdete nas rádios mundiais. Não marca, mas também não mete o cérebro a fritar.
Grécia: Demy, “This Is Love”
Um tema que começa em balada e acaba em David Guetta. Enfim, há que tentar agradar a todos, há uma dívida para acabar de pagar.
Espanha: Manel Navarro, “Do It For Your Lover”
Um puto surfista que “foi descoberto nas redes sociais”, por isso não ter ido um racista anti-vacinas daqueles das caixas de comentários foi uma sorte. A música é meio espanhol, meio “como assim os espanhóis falam um inglês péssimo em que parece que escaldaram a língua com uma meia de leite”? Desafina como uma daquelas cabras que cantam Taylor Swift (uma “goat” mesmo, não estou a ser gratuita. Googlem). Não ficou com zero por um triz.
Noruega: Jowst, “Grab The Moment”
Se um dos Daft Punk e o Miguel Ângelo acabarem a actuar em casamentos, dará nisto. Enfim, um país que tem petróleo tem mais que fazer do que ralar-se em ganhar Eurovisões.
Reino Unido: Lucie Jones, “Never Give Up On You”
Sabem quando o vosso animal de estimação se distrai com qualquer coisa que brilha muito? Foi essa a táctica desta música. Acabou há dez segundos e já sou incapaz de a trautear, mas o palco estava mesmo lindo.
Chipre: Hovig, “Gravity”
Com direito a coreografia tipo aula de aeróbica que serviu para me lembrar que sou a pior aluna das minhas aulas de ginástica pré-parto. Pronto, já larguei o prato de massa e fui ver se ainda há rúcula no frigorífico. A música cumpre com a grande tendência deste ano: e se um raio laser transformasse todos os cantores de todos os países do planeta no Ed Sheeran? Eu veria esse filme de terror.Roménia: Ilinca e Alex Florea, “Yodel It!”
Roménia, Ilinca e Alex Florea, “Yodel It!”
A Roménia, país conhecido por se ter anexado à Áustria em… em… Esperem, fui à Wikipédia e nunca foi anexado. Esqueçam. Bom, então não percebo o hip hop tirolês. Foi para meter meio Facebook português a fazer piadas com o José Figueiras?
Alemanha: Levina, “Perfect Life”
A SIA quando em 2025 só conseguir arranjar concertos na Queima das Fitas e na Expofasic.
Ucrânia, O. Torvald, “Time”
Malta a fazer cornichos para a câmara só me lembra os Lordi, que o Senhor Do Obscurantismo Dos One Hit Wonders os tenha. Enfim, suponho que é patusco que ainda haja quem ache que os Papa Roach e os Blink 182 são o futuro da música.
Bélgica: Blanche, “City Lights”
Florence And The Machine, mas com a expressividade de um esfregão da loiça. Um sofrimento daquela moça em estar ali que parecia que Kiev era a Crimeia. A canção cabe numa categoria sabiamente inventada pelo meu marido: “parece uma música de anúncios a telemóveis”.
Suécia: Robin Bengtsson, “I Can´t Go On”
Passadeiras rolantes, num mix entre o “Virtual Insanity” do Jamiroquai e um videoclip dos Ok Go que eu se calhar até conseguia imitar. Os comentadores da RTP passaram o serão a chamar Justin Timberlake a tudo o que se assemelhe a pop que passaria na rádio, mas esta é efectivamente a única música que se vai enfrascar à grande nessa fonte.
Bulgária: Kristian Kostov, “Beautiful Mess”
Dizem-me durante a actuação que é uma das candidatas à vitória, mas os apitos e gritos que me chegam ao meu T2 perto do Marquês soam mais originais do que isto. Mesmo assim, morderam-nos os calcanhares até ao fim.
França: Alma, “Requiem”
Napoleão às voltas no túmulo com uma música que cede a ser 50 por cento em inglês. E é preocupante que quando abra o meu Facebook e o grande tema sejam as (excelsas) pernas da menina.