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Ele pode tudo, ele é Kendrick Lamar

O rapper é o nome maior do último dia de Super Bock Super Rock, este sábado. Vasco Mendonça explica-nos o que distingue o americano dos comuns mortais.

Quando a Yale University Press — editora da universidade homónima — publicou The Anthology of Rap (2011), um compêndio dos melhores versos escritos nas décadas anteriores, Kendrick Lamar ainda era um nome desconhecido de muitos dos ouvintes que esgotarão o último dia do SBSR’16 [que acontece em Lisboa, no Parque das Nações], mas o rapper de Compton já se desunhava com uma mão cheia de mixtapes para mostrar ao que vinha: honrar as suas origens directamente de Compton, através de grandes versos e fazer parte desse cânone restrito de rappers tecnicamente dotados que se recusam a deixar o cérebro desistir. Se lhe perguntarem, ele poderia dizer apenas que quer ser gangster (já lá volto). Não um gangster, que isso pode dar prisão; apenas e só gangster.

É verdade que, neste frenesim cultural de redes sociais, influenciadores e freshman da XXL — revista norte-americana que anualmente consagra na sua capa os melhores jovens rappers norte-americanos — o período formativo de um rapper aparenta ser de semanas ou dias, o que nos tem permitido abrir a boca de espanto com acontecimentos como o recentemente descoberto A-F-R-O, mas também ajuda a explicar a quantidade de lixo repetitivo e formulaico que caracteriza muito do rap actual. A edição Freshman XXL de 2011, em que Kendrick aparece no centro da imagem, incluía nomes como Yelawolf, Cyhi The Prince, Fred the Godson e Lil Twist, entre outros, rappers promissores cujo talento de dimensão variável se foi diluindo em versos irrelevantes, beats menores, major labels com outros planos e colaborações de qualidade duvidosa, vulgo más companhias.

Getty Images for 2016 Essence Festival

Nem Yelawolf, o protegido de Eminem, sobreviveu à selecção natural. Nessa capa, dois nomes sobressaem à luz do que aconteceu depois: Meek Mill, um amigo de Rick Ross com acesso a alguns beats imaculados cujo primeiro verso naquele que é, ainda assim o seu melhor disco (Dreams Worth More Than Money, 2015) diz “Uh, Lord knows I’m filthy rich”. Já agora, os primeiros versos de Kendrick no seu melhor disco também não parecem incríveis: “I met her at this house party on El Segundo and Central / She had the credentials of strippers in Atlanta”. Mas de repente um gajo grama um beat que me faria usar expressões como soul com o prefixo “nu”, algo que evito; a seguir vai ao Rap Genius para acompanhar o que o fulano está a dizer, e em menos de nada percebe não só está ali uma grande malha como ainda temos direito a um tipo interessado em contar histórias.

[ouça aqui “Sherane a.k.a. Master Splinter’s Daughter]

https://www.youtube.com/watch?v=KOBs96SS0Os

Para Kendrick, como para a maioria que veio antes e depois dele, houve que fazer pela vida no circuito das mixtapes, o que no caso de Lamar significou editar vários álbuns a brincar antes de os editar a sério. É ele quem confirma que as suas mixtapes não são conjuntos de restos, uma boa ética de trabalho para quem cedo aspirou à grandeza. Só à quinta tentativa o mundo começou a fixar o seu nome. Ainda não conquistara a tabela da Billboard, mas já dominava os tops piratas do MegaUpload e do Zshare. Overly Dedicated, em que escolheu as boas companhias de Jhene Aiko, Schoolboy Q, Ab-Soul ou Murs, apresentou beats impecavelmente escolhidos para o que ele podia pagar e um talento que estava para o rap de Compton e do resto do planeta como Renato Sanches para o treino de captação que o levou da Musgueira para o Benfica: 15 minutos de audição bastariam para topar que estava ali um gajo com vontade de levar tudo à frente.

Não gastei um longo parágrafo nisto para encher chouriços, mas sim para vos dizer que esta mixtape continua a ser um dos registos mais consistentes de Kendrick e talvez a melhor introdução à sua discografia, que merece ser ouvida por ordem cronológica. Um aviso, porém: não decorem estas letras, ele está-se nas tintas para esta sua fase. Feitos maiores aguardavam-no. Já agora, invés de vos dizer quais são as melhores malhas, vou enumerar as minhas favoritas: em “H.O.C.”: “Look, nowadays everybody think they’re big chiefers / Just cause they heard that new tape from Wiz Khalifa” — Kendrick faz uma distinção que já naquela altura era necessária entre ele e Wiz Khalifa, um dos rappers mais azeiteiros dos últimos anos: em “P&P 1.5”: “I’m going through a phase in life / but pussy and Patrón make me feel alright” — fala-nos de duas técnicas ancestrais para combater o stress; e em “Cut You Off (To Grow Closer)”: “I’m tryna surround myself with people that inspire me / Or at least inquire similar desires / To do what it T-A-K-E just to reach the T-O-P” — fala-nos da sua vontade de aprender com os grandes. De boas companhias, portanto.

[“Cut You Off (To Grow Closer)”]

Assim foi. Kendrick teve o melhor padrinho que alguém em Compton poderia desejar: Dr. Dre. É olhar para tudo o que aconteceu depois. A partir daí foi sempre a rasgar pano. Em 2011 colabora em Detox, o eternamente aguardado disco de Dr. Dre. Edita um novo álbum-mixtape, Section.80, e começa a aparecer nos radares de toda a gente com o single “Hiiiiipower” (é possível que não tenha colocado aqui o número correcto de is). Tudo isto é uma espécie de prenúncio para o verdadeiro bass drop da sua carreira: o incrível good kid, m.A.A.d city. Estas letras podem decorar à vontade. Não só conhecerão melhor a personagem como poderão tentar acompanhá-lo numa boa dúzia de malhas retiradas deste disco. Desafio-vos a colocar as palavras exactamente nos mesmos sítios que ele. É isto que distingue um rapper dos comuns mortais: não que este tenha inventado a roda no que toca a métrica, mas a habilidade de colocar as palavras e as sílabas certas exactamente nos sítios onde deveriam estar mas nós não sabíamos, e ainda conseguir contar uma história no entretanto. É pouco, querem ver? Neste caso não tenho favoritas, mas a maioria dos que vão assistir ao concerto do homem sabem quais são e, se as setlists não me traírem, podem contar com meia dúzia delas no concerto de sábado.

O que mais ninguém consegue

Este good kid, m.A.A.d city foi o disco que me fez ir vê-lo ao MetLife Stadium em 2013, no Summer Jam da Hot 97. Abençoada noite. Passaram por lá alguns rappers que têm feito avançar o género, ou pelo menos o respeitam — Joey Badass, ASAP Rocky, Action Bronson, 2 Chainz, entre outros — e ainda tive direito a uma actuação dos Xutos e Pontapés do hip-hop, ou seja, os Wu Tang Clan. Kendrick era o cabeça de cartaz. Foi de longe o melhor da noite e comigo concordariam todos os que, mesmo não tendo lá estado, viram o seu primeiro concerto em Portugal, no NOS Primavera Sound em 2014.

good-kid-1

“good kid, m.A.A.d city”, o disco de 2012

Kendrick consegue uma coisa que, na minha muito humilde opinião, é o calcanhar de Aquiles de muitos rappers: fazer as suas malhas crescerem ainda mais ao vivo, tornando um concerto de rap muito mais do que um desfile daquilo que toda a gente esperava ouvir – no Summer Jam houve várias malhas tocadas entre concertos com maior adesão dos que os concertos em si. Mas dizia, acerca de Kendrick: foi este todo maior do que a soma das partes, e também a sua vontade de se expor mais — à restante música que poderia contagiar os registos de estúdio, à escrita mais opaca mas nem por isso menos interessante, mobilizadora ou alegremente convivial com os beats, e a algumas colaborações que o catapultaram para o mainstream, Taylor Swift à cabeça — que o colocou no epicentro de contextos tão díspares como:

  • as ruas onde nascem, morrem e combatem os representados pelo movimento #blacklivesmatter (Alright, de To Pimp a Butterfly, tornou-se um dos hinos não-oficiais do movimento)
  • a maior cerimónia de prémios da indústria musical norte-americana (com uma cabazada de Grammies a propósito de To Pimp a Butterfly)
    uma peça op-ed no New York Times dedicada a si (não é para todos, muito menos quando é escrita pelo influente autor e jornalista afro-americano Ta-Nehisi Coates)
  • os auscultadores de milhões de pessoas em horário de expediente (é ir ver ao spotify) e muitas daquelas pessoas que usam os telemóveis na rua como se fossem colunas
  • mas também a pista de dança, e consequentemente um festival de verão no Parque das Nações

Isto de escrever sobre música não é bem o meu métier. Mas descobri o rap há 15 anos e e há já algum tempo que os meus favoritos assumem uma aura de super-heróis do verbo ritmado: há os que conseguem fazer malabarismo polissilábico — MF Doom, Eminem, Blackalicious; há os que conseguem transformar o rap numa canção — J5; há os que nos introduzem a todo um glossário – Big L; há os que nos expoem a beats que nunca mais nos largarão na vida: DJ Shadow, Dre, Premier; há os que me parecem literalmente nascidos num universo de super-heróis e te mandam um chapadão logo a abrir — Wu Tang; os que te fazem sentir lá na rua: NWA, Mobb Deep; e finalmente os que são maiores que a vida — Biggie, Nas, Tupac. Nunca disse isto num jornal, portanto vou aproveitar a minha primeira e última oportunidade: a todos eles devo mais fusíveis ligados no meu cérebro do que os próprios alguma vez imaginarão. Há ainda uns quantos rappers que, quando aparecem, restauram a fé no género musical e conseguem converter milhões.

to pimp a butterfly

“To Pimp a Butterfly”, álbum de 2015

Kendrick é um dos rappers, senão o rapper, que melhor representa esta esperança na actualidade, com uma ética de trabalho e o espírito gangster que ele atribuiu aos NWA quando, na sua induction ao Rock and Roll Hall of Fame, disse que “gangster é criar uma editora icónica (Aftermath), ser uma estrela de cinema, ou ter um dos maiores grupos de música do mundo”. Em suma, alterar a realidade que conhecemos. Justamente o que o levou a criticar o movimento #blacklivesmatter, por este olhar demasiado para fora e talvez de menos para si, para o que podia fazer por forma a alterar as condições da sua origem económica e procurar cravar uma trajectória social ascendente que não dependa exclusivamente dos outros. A discussão tem pano para mangas, mas lá isso ele tem feito. Feitas as contas, o homem que nos BET Wards de 2015 actuou em cima de um carro da polícia, não perdeu nem um pouco de credibilidade enquanto activista social por causa disso.

Enfim. Isto já vai longo. Para o consumidor final, tudo isto poderá surgir de duas formas: como uma narrativa culturalmente muito relevante que estes parágrafos procuram glosar, ou, na sua forma ainda mais sincera e despojada de qualquer tipo de subtextos ou mensagens simbólicas (a que eu continuo, ainda assim, a preferir): através de uma sucessão absolutamente imparável de grandes malhas — malhões, se quisermos. E queremos todos. “We gon’ be (quite) alright”.

Vasco Mendonça é publicitário e co-CEO da associação recreativa Um Azar do Kralj

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