Há os que morrem cedo e os que vivem cedo. Algumas vidas, simplesmente, acontecem depressa de mais. Mas, ao contrário de outras figuras do cinema ou da música – entre as quais, alguns dos seus melhores amigos – Elizabeth Taylor não perdeu facilmente o jogo para a morte; ficou deste lado como figura póstuma a si mesma, a ser uma estrela e já não uma actriz e a tentar perceber que utilidade dar, enfim, a esse destino que lhe parecera traçado desde o princípio.
Há sempre umas cassetes perdidas e vem isto a propósito delas: as gravações de uma longa entrevista concedida por Liz ao jornalista Richard Meryman em 1964 (fixe este ano), tinha ela 32 anos e estava no auge da carreira, no topo do que pode ser uma actriz de cinema. As cassetes deram um documentário HBO de Nanette Burstein que agora estreia na Max: Elizabeth Taylor: The Lost Tapes (este domingo, dia 4), e nelas Liz fala de tudo o que, então, podia falar: da infância na tela, de ser uma adolescente a fazer de mulher madura, dos filmes, dos casamentos, dos divórcios, dos amigos, do público, das opções que se vai fazendo na vida.
Com recurso aos arquivos pessoais de alguns conhecidos, o depoimento de outros, muitos trechos de filmes a ilustrarem a vida real e a fita das cassetes a passar nas cabeças do leitor. Tudo já visto, mas tudo competente – ainda assim, longe de outros documentários do género, como o magnífico The Last Movie Stars, também da HBO, acerca de Joanne Woodward e Paul Newman. Falta-lhe um ângulo, uma perspetiva pessoal como a de Ethan Hawke naquele. Mais assinatura e menos escrúpulo enciclopédico.
Gata em celuloide quente
Para quem tem menos de 50 anos, Elizabeth Taylor era uma senhora de olhos violeta, muito arregalados para esconder as rugas, que passeava pelas galas de prémios e fotos das revistas o ar de velha estrela de outros tempos. Dela, as duas primeiras coisas que se diziam eram, quase sempre, que casara oito vezes, duas das quais com o mesmo marido, e que se tornara a atriz mais bem paga da História ao cobrar uma fortuna para aparecer nua em Cleópatra e, assim, causar um escândalo do tamanho das pirâmides. Não eram coordenadas que, propriamente, a recomendassem, mesmo aos olhos da moral ligeiramente mais refrescada de quem comentava estes assuntos trinta ou quarenta anos depois dos factos. Quem quisesse, teria de escavar para descobrir, ou esbarrar por acaso, na atriz. A figura que se tornava o centro magnético dos filmes. Que ganhava a cena com um movimento do olhar. A actriz para as mulheres atormentadas de grandes dramaturgos como Tennessee Williams ou Edward Albee, muito mais do que as figuras de poster criadas pelos argumentistas de serviço dos estúdios, nos anos ditos de “ouro” da fábrica de Hollywood.
[o trailer de “Elizabeth Taylor: The Lost Tapes”:]
Mas foi precisamente como rainha dessa era que Taylor se celebrizou, uma história que parecia destinada a acontecer desde o primeiro dia. Esqueçam os actores que andam anos em castings e a trocar de agente e a lavar loiça em restaurantes até conseguirem uma oportunidade; esqueçam também os outros, descobertos ao acaso, um dia, por um produtor quando vinham a descer a rua; Liz já nasceu do lado de lá da fita.
Filha de um negociante de arte e de uma actriz de teatro que tinham ido para Londres em 1929 abrir uma galeria, voltaram para os Estados Unidos dez anos depois, avisados por amigos influentes, aos primeiros sinais da Guerra. A pequena Liz cresceu, assim, nas ruas de Beverly Hills, a brincar com os filhos das pessoas que trabalhavam nos estúdios. Os seus grandes olhos discutivelmente azuis e as suas pestanas anormalmente longas e escuras fizeram o resto: aos 9 anos, já entrava em filmes; aos 11, tinha um contrato de longa duração com a MGM; aos 12, o primeiro papel principal. Acordar, maquilhar, pentear, mudar de figurino, responder por outro nome, num mundo de cenários bem iluminados e sonorizados eram para ela a coisa mais natural do mundo; como a própria diz a Meryman: “O cinema era, simplesmente, uma extensão do faz-de-conta.” Uma materialização das fantasias infantis. A realidade nunca existiu para Elizabeth Taylor; a vida devia ser uma coisa aborrecida, felizmente breve, que acontecia entre cada vez que se ouvia “corta” e, de novo, “ação”.
Aos 12 anos, já era uma estrela à escala nacional, mérito de National Velvet, curiosamente traduzido para português por A Nobreza Corre das Veias. Desta vez, não tinha contado só o facto de ser uma criança bonita, mas uma criança bonita que sabia andar a cavalo. Que importava que uma queda durante a rodagem lhe tivesse provocado danos na coluna que a afetariam para o resto da vida? A partir dali, mais queda, menos queda, seria sempre a subir. Fenómenos da complexa física das estrelas.
Dona Liz e seus sete maridos
“Dei o meu primeiro beijo na vida real uma semana antes do meu primeiro beijo no cinema. E o do cinema foi melhor.” Talvez nenhuma outra passagem desta conversa resuma melhor a história de Liz Taylor. Aos 18 anos, já fazia papel de mulher crescida, madura, contracenando com homens com idade para serem pais dela. Ao contrário de Judy Garland, Shirley Temple ou outras crianças-estrela do seu tempo, dava-se em Liz o estranho caso de nunca ter parecido realmente uma criança, como se essa backstory tivesse ficado de fora do filme da vida dela. Naquele mesmo ano, casava pela primeira vez, com o herdeiro do império dos hotéis Hilton. Uma união que duraria oito intermináveis meses e que começaria a desenhar a imagem muito pouco consensual que teria para sempre na opinião pública.
Elizabeth Taylor foi a grande estrela de Hollywood dos anos 50. Começa com O Pai da Noiva, ao lado de Spencer Tracy, vai para Um Lugar ao Sol, de George Stevens, continua com Ivanhoe e chega, finalmente, aos grandes papéis com o épico O Gigante, o mítico último filme de James Dean, amigo com quem Liz esteve ainda naquele mesmo derradeiro dia de vida e que ninguém podia adivinhar, naquele mesmo Porsche fatal, naquele mesmo zénite de vidas que não podiam saber que tinham sido desenhadas de outra maneira, cortadas a pique. Jimmy já tinha filmado as suas cenas, mas Taylor ainda teve de gravar alguns contracampos falando para um amigo que já não estava lá, apoiada por outro a quem nunca faltaria: Rock Hudson.
Tinha muitos amigos homossexuais, diz alguém, a dado passo, em The Lost Tapes, talvez por se sentir segura perto deles. Hudson e Montgomery Clift seriam os mais célebres, dois galãs cuja verdadeira orientação sexual teria destruído as carreiras se fossem conhecidas à época e um segredo de que Liz foi sempre a mais fiel depositária.
Em contraste, a vida amorosa dela não podia seguir mais pública. Já tinha casado uma segunda vez, com Michael Wilding, 20 anos mais velho, e uma terceira, com o produtor Mike Todd, de acordo com alguns, “o grande amor” da vida dela. Mas Todd, uma celebridade ele próprio e carismático esbanjador de presentes para a esposa, geralmente em forma de jóia, morreria apenas um ano depois, num trágico acidente de avião, a caminho de uma entrega de prémios. Desfeita, dizem que a dor que Liz então levou para dentro de Maggie Pollitt a elevou a outro patamar, a ela, à contracena com Paul Newman e a toda a Gata em Telhado de Zinco Quente.
Um ano depois, casa com o cantor Eddie Fisher e destrói, definitivamente, qualquer hipótese de compaixão junto do público… É que Eddie era nem mais nem menos do que o melhor amigo do falecido Todd e ele próprio metade de outro casal muito querido da América, o que formava com a actriz Debbie Reynolds. Ou seja, de uma penada, Liz deitava pela janela o luto por Todd, a amizade de Debbie e a simpatia da nação para com o momento supostamente difícil que vivia. E, no entanto, na cabeça dela, tudo isto fazia um estranho, mesmo que amoral, sentido: estar com Eddie era a melhor forma que lhe restava de estar perto de Todd. Recordá-lo era a única coisa que os unia – como os anos demonstrariam.
Rainha do Egito e alguns impérios mais
E, no entanto, quando as luzes se acendiam, as câmaras confirmavam que continuava no topo das suas capacidades: o assombroso Bruscamente no Verão Passado traz-lhe a segunda colaboração com Tennessee Williams, a primeira com o realizador Joseph L. Mankiewicz e a terceira nomeação ao Óscar. Comprovava que, muito mais do que o brilho, Taylor conseguia ser a escuridão – como talvez nenhuma outra atriz principal do seu tempo. A sua Catherine Holly, cercada entre as questões de Montgomery Clift e as respostas de Katharine Hepburn, valer-lhe-iam o primeiro Globo de Ouro, mas o Óscar só chegaria um ano depois, pela fútil call girl de Butterfly 8 / O Número do Amor, um papel que a própria desprezava. “Deram-me um Óscar pela minha traqueotomia”, conta em The Lost Tapes.
Sim, porque, entretanto, começara já a em si mesma histórica, épica, desmesurada rodagem de Cleópatra. 79 cenários, mais de 26 mil figurinos, anos de rodagem, dinheiro e mais dinheiro investido numa super-produção que, às tantas, teve de ser interrompida por causa do internamento da protagonista acometida de uma grave pneumonia (os mais cruéis diriam que talvez tenha sido o verdadeiro preço a pagar pela cena da nudez). Quando Taylor recuperou, já depois de uma delicada intervenção cirúrgica, tinha sido preciso trocar de realizador, de local de rodagem e até de César: Cleópatra seria agora filmada não nos estúdios de Inglaterra, mas na própria cidade eterna, Roma, dirigida de novo por Mankiewicz e contracenando com… Richard Burton.
O resto, dirão, é História. Liz despiu-se, o filme foi um sucesso de bilheteira, que ainda assim deixaria a 20th Century-Fox em risco de falência; e o amor entre Cleópatra e Marco António, depois da saltar da vida real para o cinema, fazia agora o percurso inverso. Liz fazia mais um casamento e desfazia dois: tornava Burton o quinto marido da sua vida, Eddie Fisher o mais revoltado dos exs e a opinião pública um campo de batalha em que até o jornal do Vaticano tomou parte, chocado com a sua presença nas proximidades e aconselhando a que as autoridades americanas lhe retirassem a guarda dos filhos. Estávamos no dito ano de 1964, aquele em que concedeu a entrevista que dá origem a The Lost Tapes. Tinha… 32 anos.
Era uma vez uma estrela
O que é que se faz depois disto? Quando se vai no quinto casamento e é a estrela de cinema, homem ou mulher, mais bem paga até então, cobrando um milhão de dólares e 10% das receitas do filme? Começa-se a descer. Tem a ver com a lei da gravidade, ou com justiça divina, ou uma lei qualquer da termodinâmica. Forças superiores.
Ainda haveria Quem Tem Medo de Virginia Woolf? e o segundo Óscar, mas, depois de 11 filmes e 11 anos juntos, divididos por dois casamentos, um de dez e outro uma fugaz tentativa de reconciliação de um, “Liz & Dick”, “o casal do século”, separava-se, definitivamente. Ao sétimo casamento, agora com o senador John Warner, Liz fazia o que, em tempos, parecera impossível: trocar Los Angeles por Washington e uma vida debaixo dos holofotes por outra à sombra do marido. E era: seis anos depois, também essa relação terminava, mas estávamos já em 1982, Taylor tinha 50 anos e nem ela, nem o mundo, nem muito menos Hollywood, eram os mesmos.
Um dia, lá atrás, George Stevens dissera-lhe que não era uma atriz, mas apenas uma estrela; o Washington Post escreveu que já era famosa simplesmente por ser famosa (uma tendência que, entretanto, e para mal dos nossos pecados, não parararia de se disseminar até aos nossos dias); o próprio Richard Burton repetiria em inúmeras entrevistas como, até Cleópatra, achava que Elizabeth Taylor era “apenas” isso: uma estrela de cinema, e não uma atriz. E que, mesmo no set, a gravar as cenas diante dela, lhe parecia não estar a fazer nada, e de como só depois, ao ver a imagem captada pela câmara, percebera como estava a fazer tudo, com os olhos, sempre os olhos, a história dentro dela a que talvez nunca ninguém tenha chegado.
As causas depois das consequências
Liz ainda viveria muitos anos, até 2011, quando o coração a retirou definitivamente de cena, com 79 anos. Ainda frequentou muitas clínicas de reabilitação, muitas páginas de revista, algumas séries de televisão (talvez o leitor ainda se lembre de a ver em Norte e Sul) e até os palcos do teatro, quando fundou uma companhia, como se ainda precisasse de provar a alguém que era mesmo atriz – e das raras. Casou uma oitava vez, então com Larry Fortensky, um operário da construção civil que levou ao altar no rancho de Neverland, do amigo Michael Jackson – dificilmente, haveria lugar mais parecido com os cenários onde crescera. Também esse casamento não duraria, mas Fortensky permaneceu como um dos seus amigos mais próximos até ao fim da vida e, de resto, um dos maiores beneficiários do seu testamento.
Mas foi a outros amigos, como Rock Hudson, apanhados pela epidemia da sida., que Liz mais dedicaria as últimas décadas de vida, criando e financiando a Fundação Americana para a Investigação da Sida e a Fundação Elizabeth Taylor para a sida, angariando fundos para a pesquisa e tratamento da doença e liderando uma guerra contra aqueles que, na era Reagan, entendiam estar perante apenas um problema de gays, que os gays deviam resolver. Tinha encontrado enfim, diz-nos The Lost Tapes, um sentido para a sua fama. Que é como quem diz, a sua vida.
Elizabeth Taylor foi a última diva dos anos de ouro dos estúdios, quando todas as aparições dentro e fora da tela eram cuidadosamente preparadas e controladas por estes, e a primeira estrela do tempo das celebridades, com a vida pessoal continuamente exposta e discutida em praça pública. Cada um se interessará pela que quiser, mas, por aqui, basta-nos Gata em Telhado de Zinco Quente, Bruscamente no Verão Passado e Quem Tem Medo de Virgina Woolf?. O resto é melhor com pipocas.