Reportagem em Nova Iorque, nos EUA
Há quatro anos, John tinha 22 anos e veio até à Union Square para protestar contra Donald Trump. Agora, com 26 e com o então Presidente eleito a ser derrotado por Joe Biden, veio até ao mesmo sítio para beber champanhe.
“Esperei quatro anos por este momento”, diz, com a garrafa presa entre o corpo e o tronco. “É a maior catarse que já tive na vida.”
Há quatro anos, no dia seguinte à eleição de Donald Trump, uma manifestação espontânea e não-autorizada começou na Union Square e seguiu pela 5ª Avenida até parar em frente à Trump Tower. Nessa altura, o grito mais comum era “não é o meu Presidente!”.
Agora, a história foi bem diferente. Quando John chegou de metro a esta praça de Manhattan, conhecida pelo seu mercado ao ar livre e pelas livrarias e cafés em torno, foi direto ao supermercado Whole Foods e comprou uma garrafa de champanhe. Depois, foi ter com um grupo de amigos ao parque dentro da Union Square, onde se deixaram ficar. É domingo e começaram a beber eram 11h00 — isto depois de na véspera terem festejado à tarde e à noite após o anúncio de vitória de Joe Biden.
“Nalguma parte do mundo serão 5 da tarde, não é assim?”, responde John.
John está com Sarah, Kim e Paul. Cada um pede para ser identificado apenas pelo primeiro nome e para que não os fotografemos. Em troca, estão dispostos a contar o que foram os últimos quatro anos para cada um deles. Millennials por definição, nasceram entre 1989 e 1994, todos de fora de Nova Iorque. Dos quatro, três vêm de famílias politicamente conservadoras — algumas das quais não gostariam de ouvir as coisas que os seus filhos têm para dizer.
Quatro anos traumáticos
Dificilmente se encontra uma cidade tão politicamente liberal quanto Nova Iorque em todos os EUA. Em Manhattan, o principal borough daquela cidade, Donald Trump teve apenas 14,5% dos votos apesar de ali ter feito a sua vida. Do outro lado, Joe Biden contou com 84,5% dos votos. É certo que, pelas contas do The New York Times, apenas 60% dos votos de Manhattan estão contados — mas estes são dados que pouco diferem dos 86,6% de Hillary Clinton e os 9,7% de Donald Trump há quatro anos.
A sondagem à boca da urna destas eleições da ABC News aponta para uma vitória clara de Joe Biden entre o segmento dos mais jovens, isto é, dos 18 aos 29 anos. Entre estes eleitores, Joe Biden teve 62% dos votos e Donald Trump ficou-se pelos 35%. Em Nova Iorque, esse número terá de ser obrigatoriamente mais alto. E, por isso, a frustração durante quatro anos de Donald foi mais alta do que alguma vez esperavam.
Quando respondem sobre aquilo que foi, para cada um deles, o pior momento durante a administração de Donald Trump, passam a pente fino os últimos quatro anos e desfiam episódios, uns atrás dos outros.
Sarah, 28 anos, aponta para a nomeação do juiz Brett Kavanaugh para Supremo Tribunal, cujo processo de confirmação foi marcado por uma antiga colega de faculdade que o acusou de a ter violado. “Eu sou uma sobrevivente de violência sexual e aquilo tudo mexeu comigo”, conta. Para John, não houve momento mais baixo do que quando Donald Trump disse que havia “pessoas muito boas dos dois lados” de uma manifestação de extrema-direita e na contra-manifestação que se juntou em reação. Kim, 31 anos, que se assume como religiosa, diz que o pior foi ver Donald Trump em frente à Igreja de São João em Washington D.C. a segurar uma Bíblia de pernas para o ar, tudo depois de dispersar manifestantes com gás-pimenta para conseguir essa fotografia. Paul, 29 anos, recorda-se quando Donald Trump disse a um conjunto de quatro congressistas da ala mais à esquerda do Partido Democrata para irem para “os seus países cheios de crime”.
Quando acabam este exercício à memória de cada um, todos parecem exaustos. “Uau, este quatro anos foram mesmo maus”, diz John, sem tirar a garrafa debaixo do braço.
Mais à frente, refletem sobre outro tema: como é que Donald Trump afetou a vida deles?
Pela demora da resposta, entende-se que este não é um exercício tão simples. “Felizmente vivemos em Nova Iorque, temos essa sorte, porque isto é uma bolha liberal”, refere Paul. “Mas sempre que vou à minha terra, no norte do Estado de Nova Iorque, é impossível não me lembrar que estou num país governado por Donald Trump.”
Paul é originário de uma pequena vila no norte deste estado, já perto da fronteira com o Canadá. Apesar de partilhar o nome com esta cidade de 8,3 milhões, o estado de Nova Iorque não se assemelha em nada à cidade que lhe dá a fama. Mais conservador e mais rural, o norte do estado é em muito o oposto desta grande urbe. “Uma vez levei lá a minha namorada, que é afro-americana, e reparava que as pessoas que me reconheciam olhavam para mim com espanto”, diz, referindo-se a visitas ainda antes de Donald Trump ser Presidente. “Mas só atraía olhares, mais nada. Mas, quando Donald Trump foi eleito e voltámos lá, ouvimos pessoas a gritarem-nos coisas horríveis. Disseram à minha namorada para ir para o país dela”, diz. “Ela nasceu em Queens, tal como Donald Trump!”
Já John refere a pandemia da Covid-19. Em abril, esteve infetado juntamente com as 5 pessoas com quem partilha casa em Brooklyn. “Felizmente ninguém passou muito mal e, para nós que somos jovem, não passou de uma febre alta”, diz. “O pior momento foi mesmo quando soube que Trump disse que talvez desse para vencer o vírus se injetássemos lixívia nas nossas veias”, recorda, com uma cara de espanto teatral. Para dar ênfase, quase grita: “Como?!”
Sarah e Kim estão lado a lado. Começaram a namorar há dois anos, numa relação que apenas os pais de Sarah estão a par. “Os meus pais são liberais e aceitam bem o facto de eu ser lésbica”, diz. Já Kim não pode dizer o mesmo. Nascida na Carolina do Sul, foi criada numa família “profundamente religiosa” e que “nem sonha” que tem uma filha lésbica — e nem ela própria o assumiu durante muito tempo. Aqui, viver durante os tempos de Donald Trump deu-lhe uma ajuda.
“Depois de me ter passado o choque da vitória dele, decidi deixar de esconder quem era e o que queria”, diz Kim. “Percebi que tinha uma obrigação comigo mesma de viver a minha vida em desafio ao que Donald Trump representa. Por isso, saí do armário. Eis algo que posso agradecer a Donald Trump.”
Quando diz esta última frase, Kim e os amigos riem-se. John tira a garrafa debaixo do braço e serve mais uma rodada.
Os baby-boomers no poder, de Trump a Biden
“Eu sinto que foi a geração dos nossos pais, e de certa forma a dos nossos avós, que rebentou com a América ao ponto de termos ficado com Donald Trump como Presidente”, diz Kim.
Este não é um argumento novo. Quando estivemos na manifestação no dia seguinte à eleição de Donald Trump, há quatro anos, entrevistámos uma manifestante de 26 anos que apontou como, naquelas eleições, ficou evidente qual era a geração que mais importava no país: “Os baby-boomers ainda mandam neste país, não há dúvidas. Mas a nossa sorte é que eles vão morrer em breve”. Nessa manifestação, a enorme maioria dos participantes tinham idade para ser netos e filhos, poucos seriam pais e praticamente quase nenhum seria avô ou avó.
Porém, nada disse os impediu de saírem à rua para beberem champanhe a propósito da eleição de Joe Biden, homem de 77 anos e que a 20 de novembro chegará aos 78.
“É, ele é um bocado velho, admito que sim”, diz John, num tom irónico que leva os amigos a rirem. “Mas ao menos não é Trump.”
Nenhum destes quatro jovens apoio Joe Biden nas primárias. Paul e John estiveram do lado de Bernie Sanders, Kim e Sarah queriam que ganhasse Elizabeth Warren. No final de contas, acabaram por não votar nas primárias — inicialmente previstas para 28 de março, acabaram por se realizar apenas a 23 de junho por causa da pandemia, e numa altura em que era já evidente que seria Joe Biden a prevalecer. Por isso, não votaram nas primárias.
Nas presidenciais, a história já foi outra.
Destes quatro jovens, três não votaram há quatro anos. “Achava sinceramente que Donald Trump não ia ganhar e, já que não adorava a Hillary Clinton, abstive-me”, disse Sarah, naquilo que acaba por ser a justificação dos restantes abstencionistas de 2016. Kim votou nessa altura. “Por vezes ainda chateio a Sarah por não ter votado há quatro anos, sem dúvida que é algo que lhe atiro à cara de vez em quando”, diz a rir. Sarah também sorri, mas embaraçada.
Agora, votaram todos. “Seria uma loucura não votar”, diz Sarah.
“Joe Biden pode não ser perfeito e a Kamala Harris também está longe de sê-lo”, admite a jovem de 28 anos. E depois lança-se numa lista de razões pelas quais não acredita que aqueles dois sejam ideais para os cargos que foram eleitos.
“Joe Biden aprovou a lei contra o crime que levou à prisão gerações de afro-americanos e latinos de forma totalmente desproporcional e Kamala Harris, enquanto procuradora, levou isso da lei à prática. Depois, o Joe Biden já foi acusado de violação por uma mulher que trabalho com ele [Tara Reade] e isso é difícil de esquecer. Também não defende o cancelamento da dívida dos estudantes, é contra a universidade gratuita, não defende uma sistema de saúde público…”
Ao fim destas palavras, Sarah começa a abrandar o ritmo da sua fala, como que a travar discretamente um carro que já ia para lá do limite de velocidade. Depois, suspira e admite: “Joe Biden não é perfeito. E até tem muitos defeitos. Mas ao menos não é Donald Trump”. E nisto John estende o braço para o centro do grupo, que faz um brinde. “Cheers!”