No último capítulo da História em que a Europa estava a ser palco de uma guerra, a Fundação Nobel decidiu não atribuir nenhum Prémio Nobel da Paz. Foi o aconteceu entre 1939 e 1943, nos primeiros anos da II Guerra Mundial (e tal como já tinha acontecido na I Guerra Mundial), porque se entendeu que nenhum dos trabalhos nomeados tinha sido significativo o suficiente. Nos últimos dois anos da guerra, o Nobel de 1944 acabou por ser atribuído à Cruz Vermelha pelo apoio humanitário nos anos anteriores; e o de 1945 foi entregue ao diplomata Cordell Hull, pelo contributo no desenvolvimento da Organização das Nações Unidas.

Desta vez, a Fundação Nobel escolheu outra estratégia para gerir o elefante na sala: 226 dias depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, fazendo eclodir um novo conflito armado na Europa, o Comité Nobel Norueguês decidiu atribuir o Nobel da Paz a três entidades com origem num dos lados da barricada, mas sem nunca pôr o dedo diretamente na ferida: Ales Bialiatski, ativista bielorrusso perseguido pelo regime aliado de Putin; a organização russa Memorial, cujas investigações durante a guerra na Chechénia revelaram as atrocidades cometidas pelo regime russo; e o Centro de Liberdades Civis, uma organização ucraniana dedicada à luta pela plenitude do Estado de Direito no país.

Nobel da Paz vai para ativista bielorrusso Ales Bialiatski e duas organizações de direitos humanos, uma russa e outra ucraniana

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Ativista premiado ao Observador: “Há um estado de apatia, a TV diz que está tudo bem”

Quando conversou com o Observador, em outubro de 2014, Ales Bialiatski usufruía descontraidamente da liberdade que tinha reconquistado apenas quatro meses antes, quando foi libertado da prisão de alta segurança de Babruisk, no sudeste da Bielorrússia, acusado pelo regime de Aleksandr Lukashenko — aliado de Vladimir Putin na invasão à Ucrânia — de evasão fiscal. Naqueles dias, era como qualquer outro cidadão bielorrusso, que é “livre para ir a um concerto ou a uma exposição”, “​​dar um passeio na rua enquanto saboreia um gelado”. “Mas também sabe muito bem que não pode ir para a rua com um cartaz com palavras de ordem”, descreveu então.

Em agosto de 2011, nove meses depois de o Presidente bielorrusso ter subido ao poder, Ales Bialiatski estava entre os sete de oito opositores ao regime detidos durante uma operação em que as autoridades prenderam um total de 700 pessoas que se manifestavam contra os resultados oficiais das eleições. Acabou preso por alegadamente manter duas contas no estrangeiro para fugir dos impostos — na verdade, tal como a defesa de Ales Bialiatski tinha argumentado, as contas eram utilizadas para apoiar famílias de presos políticos e os valores que continham estavam isentas de impostos por se tratarem de donativos.

Ales Bialiatski seria libertado após cumprir 1.052 dias consecutivos de pena. Mas anos depois de ter recordado ao Observador os tempos em que dividia cela com homicidas, toxicodepentes e violadores — cinco dos quais o vigiavam para depois transmitir aos guardas cada passo e cada palavra do ativista — ou as cartas que escrevia ao filho e à mulher, que se tornaram as únicas vias de comunicação a que ainda acedia para quebrar o silêncio a que se remeteu na prisão, haveria ainda de voltar ao enclausuramento.

Enquanto resistem, não esperam surpresas

Esta sexta-feira, dia em que foi laureado com o Prémio Nobel da Paz por “promover o direito de criticar o poder e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos” e pelo “esforço notável para documentar crimes de guerra, abusos dos direitos humanos e abuso de poder”, Ales Bialiatski cumpre 450 dias de prisão. Em julho de 2021, voltou a ser detido por suspeita de evasão fiscal durante uma rusga da polícia bielorrussa à sede da organização fundada pelo ativista, Viasna (em português, “Primavera”), e aos seus funcionários. Torna-se agora o quarto laureado que estava detido no momento em que foi agraciado com o Nobel: antes dele, só o jornalista e pacifista alemão Carl von Ossietzky (1935), a ativista e política birmanesa Aung San Suu Kyi (1991) e o ativista chinês Liu Xiaobo (2010) tinham sido distinguidos nessa condição.

Na última entrevista que deu ao Observador, Ales Bialiatski pintava ainda um quadro negro sobre a Bielorrússia: “Continua a haver tortura nas nossas prisões, os reclusos são explorados e ainda há sete presos políticos. A propaganda continua a ser aplicada através dos meios de comunicação do Estado e a maior parte da população é afetada por ela — a maior parte nem vê uma ligação entre a vida deles e a vida política do país. Há um estado de apatia porque a televisão diz que está tudo bem. Os poucos media independentes que ainda temos continuam sob controlo e a censura não desapareceu. Qualquer jornalista sabe que está a ser vigiado e que o seu trabalho pode ser comprometido a qualquer momento.”

Mas, para o Comité Nobel Norueguês, o ativista bielorrusso é um símbolo maior do esforço para contrariar os poderes instalados. “Representa a sociedade civil no seu país de origem”, apontou em comunicado, e “demonstra o significado da sociedade civil para a paz e democracia”. A Viasna é o quartel-general dessa batalha de Ales Bialiatski: criada em 1996, tornou-se a maior organização não-governamental de defesa dos direitos humanos na Bielorrússia, e dedica-se a documentar e a protestar contra o recurso à tortura contra os presos políticos por parte das autoridades.

As duas organizações, russa e ucraniana, que batalham contra os poderes instalados

Ales Bialiatski receberá um terço do valor do Prémio Nobel da Paz — 917 mil euros. A mesma quantia será cedida à Memorial, uma organização não-governamental que, durante a dissolução da União Soviética, conduziu um projeto para assegurar que as vítimas do estalinismo não eram esquecidas durante a “perestroika” (reestruturação económica) e o “glasnost” (abertura) instituídas por Mikhail Gorbachev; e para documentar os crimes contra a humanidade cometidos pela União Soviética durante a Grande Purga e nos campos de trabalho forçado Gulag.

Este trabalho de vigilância foi crucial durante o conflito entre a Rússia e a Chechénia para trazer à tona as evidências de atrocidades cometidas durante a guerra, para procurar pessoas dadas como desaparecidas e recuperar os corpos dos que morriam em combate. Vários membros da Memorial perderam a vida para cumprir estas missões. O caso de Natalia Estemirova foi a gota de água: enquanto investigava os assassinatos e raptos perpetrados por milícias apoiadas pelo governo, em 2009, a ativista ao serviço da Memorial foi ela mesma raptada enquanto saía de casa e depois morta. A Memorial retirou-se da Chechénia após o assassinato: “Não podemos arriscar a vida dos nossos colegas, mesmo que eles estejam prontos para continuar o seu trabalho.”

Mesmo fora daquele terreno, a Memorial continuou a ser perseguida pelo regime de Vladimir Putin. Em 2016, quatro anos depois de o Kremlin ter implementado a lei do agente estrangeiro — que obrigava quaisquer organizações com atividade política a registar-se no Ministério da Justiça caso recebam financiamentos de quaisquer fontes externas à Rússia —, a Memorial foi avisada de que estava coberta por esta lei e que tinha sido multada por não se ter registado no Ministério da Justiça como um “agente estrangeiro”. O governo entendeu que a organização estava a “minar os fundamentos da ordem constitucional da Federação Russa” e que pretendia instigar “uma mudança de regime político”.

Foi apenas um episódio numa série de casos de assédio sobre a organização que culminou, em novembro de 2021, num processo colocado pela Procuradoria-Geral da República russa no Supremo Tribunal e noutro interposto pela Procuradoria de Moscovo no tribunal da cidade, ambos a requerer o encerramento da Memorial por violar a lei dos agentes estrangeiros. Ambos os tribunais ordenaram o fim da organização no fim do ano passado. A Memorial acabou mesmo por fechar atividade em abril de 2022, apesar das demonstrações de solidariedade da ONU, União Europeia e de países como os Estados Unidos ou o Canadá. Alguns dos seus membros continuam no ativismo, mas já não estão aliados à instituição entretanto extinta.

O outro terço do prémio foi entregue ao Centro de Liberdades Civis, que se tornou assim a primeira entidade ucraniana a ser galardoada com um Nobel. Por trás dela está Oleksandra Matviychuk, ativista defensora dos direitos humanos que fundou a organização em 2007 para pressionar o governo ucraniano a reformar o Código Criminal ucraniano, aperfeiçoar o sistema judicial do país e libertar os presos políticos na Rússia e nas regiões anexadas da Crimeia e Donbass. Nos últimos anos, o Centro de Liberdades Civis dedicou-se também a denunciar perseguições políticas na Crimeia e crimes contra a humanidade praticadas em Lugansk e Donetsk. Após o início da guerra na Ucrânia, a organização passou a denunciar também crimes de guerra praticados pelas forças russas.

Oleksandra Matviychuk reagiu nas redes sociais à distinção do Centro de Liberdades Civis e apelou à criação de um tribunal internacional para que Putin e Lukashenko sejam julgados por crimes de guerra. Exigiu a intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) e cada um dos Estados que a compõem na guerra na Ucrânia. “Podemos ter sido ouvidos na Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, mas certamente não nos corredores onde as decisões são tomadas por pessoas no poder”, criticou a ativista: “Se não quisermos viver num mundo onde as regras são determinadas por alguém com um potencial militar mais poderoso do que o primado do direito, as coisas têm de mudar.”

Para a Oleksandra Matviychuk, a ONU tem de liderar um plano para a “reforma internacional da paz e da segurança” e deve excluir a Rússia do Conselho de Segurança da ONU por “violações sistemáticas” da Carta das Nações Unidas. Mas a mudança também começa no cidadão comum, defendeu: “Os meus 20 anos de experiência na luta pela liberdade e pelos direitos humanos dizem-me que as pessoas comuns têm muito mais influência do que pensam. A mobilização em massa de pessoas comuns em diferentes países do mundo e a sua voz conjunta pode mudar a história mundial mais rapidamente do que a intervenção da ONU.”