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O exercício é puramente especulativo, mas não de todo irreal. O que aconteceria se o pior fenómeno meteorológico do século em Espanha, que semeou caos e destruição em várias regiões, com destaque para Valência, provocou pelo menos 158 mortos e um número ainda incógnito de desaparecidos, se passasse em Portugal? Perante a pergunta, especialistas ouvidos pelo Observador são categóricos: “Esperemos que nunca nos aconteça, que é melhor.”
Os números, além das imagens que chegam de carros arrastados pelas águas turbulentas ou amontoados sob as lamas, pontes desmoronadas e casas arrasadas, pessoas a tentarem salvar-se agarradas a pequenos arbustos ou árvores, falam por si. Olhemos para o município de Chiva, a cerca de 30 quilómetros de Valência, uma das zonas onde as cheias repentinas levaram tudo à frente. Neste local, choveu o equivalente a um ano inteiro em apenas oito horas: 491 litros por metro quadrado (mm). É mais do dobro do máximo alguma vez registado em Portugal Continental, 220 mm nas Penhas da Saúde (Covilhã), em 1997.
Ora em Lisboa, se chover durante cerca de 50 mm durante uma hora — que dará lugar a alerta vermelho, o maior da escala da Proteção Civil — estão garantidas inundações em zonas várias zonas, como a Baixa, Paço de Arcos ou Algés. Quem o diz é Pedro Miranda, investigador do Instituto Dom Luiz e perito em eventos climáticos extremos, sublinhando que bater recordes como os de Espanha seria uma “desgraça”. “O nosso sistema de escoamento das ruas não permite escoar tão rapidamente numa hora”, refere.
Apesar disso, Portugal está atualmente muito melhor preparado para lidar com situações de chuvas fortes e inundações do que há uma década, diz o climatologista Carlos da Câmara, também do Instituto Dom Luís. Mas ressalva que “ainda há muito a fazer” e que isso passa, por um lado, por mudanças estruturais, como as obras que decorrem para construir sistemas de drenagem em cidades como Lisboa e Porto.
Na capital, por exemplo, o plano passa pela abertura de dois túneis: um com cinco quilómetros entre Campolide e Santa Apolónia e outro de um quilómetro que vai desde Chelas ao Beato. “Vai minimizar drasticamente” os efeitos das cheias, sublinha o engenheiro Mineiro Aires. Nota, no entanto, que numa situação tão extrema como Valência poderá não ser suficiente. A esse propósito traça uma comparação com os sismos: “Se tivermos um abalo de uma violência e com uma conjugação de esforços absolutamente excecional, é muito difícil também que mesmo as estruturas anti-sísmicas resistam.”
Fenómeno que arrasou Valência também pode acontecer em Portugal
O processo que deu origem à tempestade em Valência é conhecido em Espanha como DANA (Depresión Aislada en Niveles Altos, em tradução livre Depressão isolada em Níveis Altos). Por cá, o termo mais comum é gota fria. Este fenómeno meteorológico acontece quando uma bolsa de ar frio se separa de uma massa polar nas camadas superiores da atmosfera. A partir desse momento, e ao contactar com massas de ar quente à superfície, vai seguindo o seu próprio caminho, muitas vezes errático, com chuvas torrenciais e ventos ciclónicos, como o Observador já descrevia neste Explicador.
O fenómeno, que também já chegou a Portugal (há vários distritos a amarelo e o Algarve está a laranja), ainda que muito mais enfraquecido, não é incomum no país. “Já tivemos situações semelhantes cá, mas não com a mesma frequência com que acontece na zona sudeste de Espanha, na costa Mediterrânea, sobretudo no princípio do outono, em que o mar ainda está relativamente quente”, começa por enquadrar Pedro Miranda, professor de meteorologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e perito em eventos climáticos extremos.
O climatologista evoca a memória da tempestade que, na década de 90, “arrasou” a serra de Monchique, provocando graves inundações e deslizamentos de terra que levaram tudo no seu caminho. Em cerca de seis horas, choveram 260 litros por metro quadrado (mm). “Não houve mortes, porque na altura era uma zona rural, sem grande construção. Valência é a terceira cidade de Espanha”, ressalva. Mas há mais exemplos: em 2010, na Madeira, uma tempestade provocou uma enxurrada numa zona de serra que encheu as ribeiras até desaguar no mar junto ao Funchal e provocou 80 mortos.
Pedro Miranda sublinha que a topografia de Valência “ajudou a pôr a tempestade em ação”. “Formou-se no Mediterrâneo, mas só começou a chover quando foi obrigada a ‘subir’ as encostas de Espanha, onde despejou toda a água que tinha”. Em Portugal, com muitas zonas de montanha e muito declive perto da costa, estão também reunidos os ingredientes para favorecer fenómenos deste género.
No nosso país, as zonas mais propícias são precisamente as costas a sul, visto que as massas de água quente são a fonte de energia que alimenta este tipo de tempestades. O climatologista Carlos da Câmara nota contudo que cidades como Lisboa, Porto, Coimbra, onde são típicas as cheias por causa do Mondego, ou o Águeda, que também tem inundações frequentes, seriam algumas das que podem estar mais em perigo. Também Ponte da Barca, Caminha ou Ponte de Lima são candidatas a vir a sofrer com este tipo de tempestades.
O climatologista diz também que com as alterações climáticas estes fenómenos, sejam eles gotas frias ou outros que criem chuvas intensas, se vão tornar mais frequentes. Passando a uma comparação, usa o exemplo do jogo de dados viciados para sair determinado número — imagine-se o seis — com mais frequência. “Se eu atirar um dado e sair um seis não vou dizer que é por causa dos dados que está viciado. O que estou a dizer é que se o uso, a probabilidade de acontecer será maior”, diz. Com as mudanças climáticas não é muito diferente, já que potenciam o aquecimento dos oceanos e mares, como o Mediterrâneo, que tem estado “extremamente quente”. “É viciar os dados quando comparamos com a situação há 50 anos”, aponta.
O que acontecia se chovesse em Portugal tanto como em Valência?
A Comunidade Valenciana foi de longe a mais afetada pela gota fria. Mais de 360 mil pessoas não tinham esta quinta-feira acesso a água potável na região, onde até uma prisão serviu de refúgio às populações mais atingidas. As notícias de que em alguns municípios de Valência choveu tanto num dia como é normal chover num ano inteiro na região — os tais 500 mm — fizeram manchetes de jornais e abriram noticiários. O número é uma “brutalidade”, mas pode ser difícil de visualizar.
Carlos da Câmara propõe, por isso, uma comparação aparentemente inusitada: uma cozinha com cerca de dez metros quadrados onde, por cada metro quadrado, se despeja 100 garrafões. “É um total de mil garrafões de água só na sua cozinha. Ficaria com água até ao teto com uma facilidade enorme“, explica. “Uma pessoa acha sempre que um milímetro é uma coisinha pequenina e mesmo um litro é uma coisinha pequenina, mas pensa em garrafões e vai ver que 500 litros é uma brutalidade”, sublinha.
España sufre la peor inundación en décadas tras las lluvias torrenciales caídas en la provincia oriental de #Valencia. El número de muertos aumenta y sigue habiendo desaparecidos
Estas imágenes del satélite estadounidense Landsat-8 ilustran la magnitud del desastre, con imágenes… pic.twitter.com/yG9kJuYZwg— ESA España (@esa_es) October 31, 2024
Uma situação como a de Valência em Portugal seria, por isso, igualmente catastrófica. “Aliás, se tivéssemos mesmo que só 300 milímetros em quatro horas em Lisboa, seria uma desgraça, tínhamos inundações por toda a parte”, diz Pedro Miranda. O climatologista têm dúvidas de que mesmo gastando “fortunas” a construir estruturas como canais ou túneis seja possível enfrentar tal cenário. “São sempre dimensionados por um [valor] histórico. Tenho as minhas reservas de que funcionem para 300 milímetros numa área como Lisboa”, admite.
Carlos da Câmara sublinha que a nível de ordenamento e dos sistemas de drenagem muito mudou ao longo dos últimos anos: “Estamos mais conscientes e começamos a perceber que a única forma de lidar com os extremos — não os podemos vencer — é mitigar. Para o climatologista, isso passa por trabalhar duas áreas: a educação cívica da população e mudanças estruturais. Aqui entram os sistemas de túneis que estão a ser construídos no Porto e em Lisboa.
O plano de túneis pensado para 100 anos
Chama-se Plano Geral de Drenagem de Lisboa. É descrito pela Câmara como a “obra invisível que prepara a cidade para o futuro” e um dos principais objetivos é precisamente “reduzir significativamente as inundações e cheias e os consequentes custos sociais e económicos.” É um sonho antigo, que passou por seis presidentes da autarquia da capital ao longo das últimas duas décadas.
O plano, que sofreu vários atrasos e concursos públicos, passa pela construção de dois túneis de drenagem com início nos dois pontos altos da cidade para escoar a água de chuvas intensas para o rio Tejo. O primeiro túnel, com 17 mil metros cúbicos de capacidade, fará o caminho entre Campolide e Santa Apolónia e o segundo entre Chelas e o Beato. O presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, chegou a afirmar que se os túneis de drenagem já existissem na altura das cheias de 2022, nas quais morreu uma pessoa que se encontrava numa cave, “as cheias não teriam acontecido.”
As obras para o primeiro túnel arrancaram em dezembro do ano passado e as do segundo cerca de um mês depois. Prevê-se que no espaço de dois anos ambos os projetos estejam concluídos, diz o engenheiro Mineiro Aires, que têm acompanhado a evolução dos trabalhos.
Começou a construção do túnel entre Campolide e Santa Apolónia. #Lisboa #PlanoGeralDrenagem ???? pic.twitter.com/YfPEdwDPys
— Lisboa (@CamaraLisboa) December 4, 2023
Os túneis, só por si, não resolvem nada. São a “coluna dorsal”, diz Mineiro Aires, explicando que também são necessárias as costelas e vértebras: “As ligações de superfície para dentro deles, para recolher as águas e para intercetar as bacias.” É, por tudo isso, uma “obra complexa”, além de cara — o custo dos túneis é de 130 milhões de euros, mas o global do Plano de Drenagem de Lisboa é de 250 milhões de euros.
Segundo Mineiro Aires, no decorrer do projeto têm surgido alguns imprevistos que podem provocar alguns atrasos. “Está a encontrar-se muita arqueologia, o que obriga a parar e avaliar. Há também a questão dos solos contaminados, que muitas vezes são detetados tardiamente”, enumera. Os estudos realizados prometem uma solução para 100 anos que pode evitar neste período cerca de 20 inundações graves que gerariam prejuízos na ordem das centenas de milhões de euros.
Mesmo este plano, como qualquer outro, enfrentaria dificuldades de eficácia perante uma situação como a que se passou em Espanha. “A situação em Valência é uma situação absolutamente extraordinária. Quando se fala em precipitações de cerca de 500 litros por metro quadrado é uma quantidade de água inimaginável”, sublinha Mineiro Aires.
Algés espera por intervenção em ribeira para ajudar sistema de comportas um ano após cheias
“Perante os acontecimentos normais, com este período de retorno de 100 anos, Lisboa vai ficar bastante bem protegida. Mas, se acontecer algo superior a isso, é possível que o que está a ser feito não seja capaz de só por si dar resposta”, admite. Mineiro Aires refere que o trabalho dos engenheiros é encontrar um ponto de equilíbrio para que as obras sejam viáveis e que garantam uma cobertura adequada aos riscos que são mais expectáveis. “Os que são mais excecionais, é impossível. A engenharia tem esta arte, tem esta beleza, que é o equilíbrio entre o desejável, o possível e aquilo que é melhor”, conclui.
Em Algés há também um sistemas de comportas a funcionar na ribeira para evitar enxurradas como as que em dezembro do ano passado causaram uma vítima mortal.