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Ele, Éme (João Marcelo), sabe quem ela é, Moxila (Mariana Pita). O resto resulta de uma atividade de colecionismo de acordes e melodias

Ele, Éme (João Marcelo), sabe quem ela é, Moxila (Mariana Pita). O resto resulta de uma atividade de colecionismo de acordes e melodias

Éme e Moxila dançam no carrossel dos esquisitos

Há um ano editavam um álbum que insiste em renascer a cada audição. Agora, têm dois novos singles, incluindo uma ode a Fernando Mamede. E haverá concertos. A dupla explica-nos de onde tudo isto vem.

Um zero à esquerda é um número redondinho que não acrescenta nada. A matemática é clara: feitas as contas, um zero à esquerda é uma inutilidade. Contudo, permitam-me discordar desta calúnia idiomática — afinal a equação da vida também é feita de falhanços redondos. Há um extenso cancioneiro que comprova esta tese, desde o eterno “perdedor” Beck, até aos improváveis “losers” Lennon e McCartney, que naquele momento, não tenham qualquer dúvida, sentiam-se completos zeros à esquerda. Serve o preâmbulo para introduzir outro herói fracassado, Fernando Mamede, o primeiro recordista mundial do atletismo português que, até aos nossos dias, em sucessivas entrevistas, insiste na mesma tecla: é um flop.

“Quando vejo a medalha,
nada mais me atrapalha,
passo a meta em primeiro.
Ficar no pódio, no lugar cimeiro,
fez-me famoso no país inteiro.

Nem por isso esta história
termina com a glória 
do herói nacional,
depois de bater o tal 
recorde mundial
as outras provas corriam-me mal,
foi falhar que me tornou especial.”

“Estocolmo 1984”, da dupla Éme e Moxila, é uma ode lo-fi ao atleta de Beja, uma recordação na primeira pessoa da célebre corrida na Suécia, do recorde mundial dos 10 mil metros, e da subsequente carreira de provas que lhe corriam mal. Mas esta história tem uma moral: valem os erros do que as tentativas. Foi falhar que tornou Fernando Mamede especial. E levantemos ainda mais o véu destes versos: Éme e Moxila estão sempre preparados para um fiasco e esta é a maior liberdade que existe. “Às vezes quando a música não é autobiográfica, dá para dizer coisas muito mais autobiográficas”, consente Éme, finalmente convencido, depois de uma década a lançar canções autobiográficas na editora Cafetra Records, outrora o zeitgeist da cantiga independente lisboeta. “Falhar é um bocado inevitável. É preciso estar mentalizado que, a um certo nível artístico, estamos a trabalhar pela arte”, reflete Moxila, ao seu lado num café da Graça, habitat natural destes adeptos dos prazeres mundanos — “A bica o bolo, é tão bom engordar” — e dos passeios domingueiros de mão dada:

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“Anda vem passear comigo,
não sei o melhor caminho
mas qualquer há-de servir,
segue p’ró jornal e p’ró café,
nada é longe, nem a pé,
com companhia p’ra subir”.

"Natural de Braga, formada em Belas Artes, ilustradora e animadora, Mariana é Moxila quando grava cantigas, e foi como Moxila que conheceu Éme, nome de guerra do lisboeta João, então fundador da recém-criada Cafetra Records e emergente compositor de hinos pop-rock urbano-depressivos."

O álbum Éme e Moxila é uma encantadora brincadeira de crianças a duas vozes, um jogo de tessituras graves e agudas, sem qualquer livro de instruções. E a existência deste álbum precioso, um dos destaques do ano passado, foi uma mera casualidade. “A chama inicial foi estarmos os dois a passear”, contextualiza Éme. “Começou por acaso e tornou-se mais propositado”, continua Moxila, que vinha do EP O Cheiro da Alcatifa Faz-te Dores de Cabeça (são as alergias), que, como podem adivinhar pelo título, era mais nonsense do que qualquer gravação de Éme, um cantautor reconhecido na cena independente. Éme tinha uma canção pendurada — “Lilos” — e aproveitou uma conversa com a companheira para compor o resto dos versos; por sua vez, Moxila carregava um “Autocarro” de um lado para o outro, que chegou enfim a uma estação final com Éme. “Não somos muito pros de teoria musical. Surgiu naturalmente porque não o saberíamos fazer de outra forma”. A primeira composição propositadamente a meias foi “Exílio”, a devida homenagem aos empregos de trampa — “Trabalhar não é prisão/ Trabalhar é um exílio”. “Começamos a perceber que tínhamos uma ferramenta ao nosso dispor. Estávamos a gostar muito George Jones e Tammy Wynette, e Nancy Sinatra e Lee Hazlewood, e a ‘Exílio’ já foi escrita com essa brincadeira de diálogo”.

“Digo sempre obrigado
de acordar ao teu lado”

“Como assim? Estavas calado
Eu já estava acordada”

“Era em sentido figurado.”

O resultado é um ato isolado na música portuguesa, um casal adorável que troca carinhos e galhardetes em disco. Nem existe propriamente um caso similar noutras paragens, a country é permissiva ao diálogo de casal, mas usualmente em cenários idealizados — “Jackson” — volta e meia o indie pop também recorre à manha, mas sempre mais onírico que corriqueiro — Peter, Bjorn and John, por exemplo, autores do célebre “Young Folks”, nunca cantaram sobre abrir a caixa de entrada do e-mail e concluir que “vazio é bom não tem spam”.

As canções pueris de Éme e Moxila são um convite à bisbilhotice, sem os conhecer, arriscamos já: ela é bem-disposta e tranquila; ele ansioso e dramático. “É um bocado verdade, parte do real”, confirma Éme, com alguma fantasia à mistura, como em “Assalto” — refrão caótico, rasgado, marca registada Cafetra. “A casa foi mesmo assaltada. Mas não teve nada daquele drama. Foi exagerado para efeitos dramáticos.”

“Pareceu-me ouvir-te a abrir a fechadura
Segundo a seguir pensei que loucura
Tinhas ido o fim de semana a Braga
Vi alguém na nossa entrada

Saco a guitarra num instante
Para dar na cara do assaltante
Imaginei-o vacilante
Numa poça do seu sangue”

Estimam, mais ano menos ano, que o primeiro encontro entre João Marcelo e Mariana Pita tenha acontecido há uma década, numa feira de edição independente em Lisboa. Natural de Braga, formada em Belas Artes, ilustradora e animadora, Mariana é Moxila quando grava cantigas, e foi como Moxila que conheceu Éme, nome de guerra do lisboeta João, então fundador da recém-criada Cafetra Records e emergente compositor de hinos pop-rock urbano-depressivos, com “Lisa” à cabeça — “Viver na Lisa não dá/ Não dá, não/ Tá tudo em kiza/ E não há um pé no chão”. Os dois vão se reencontrando no circuito independente. “Conhecemo-nos como quem se conhece no trabalho, mas o trabalho era este”, justifica Éme, que no seu álbum anterior, Domingo à Tarde, de 2017, convidou Moxila para fazer parte da banda, pintar a capa do disco, e cantar em dueto — o dueto é “Muito Chorei eu Num Domingo à Tarde”, um vira embalado pelo cavaquinho.

"Sempre quis criar o máximo de significados com palavras e diálogos mais banais possíveis”, diz-nos Éme. “A mensagem não é uma coisa muito importante. É bom que as músicas tenham coisas lá dentro que as pessoas aproveitem, riem ou chorem, mas passar mensagens não é uma função da nossa música.”

O cavaquinho é um ponto de contacto evidente com o álbum anterior de Éme, não fosse Moxila de Braga; mas não lhe falem de canções tradicionais que esta artista é mais Gnration que rendilhados. “A influência [minhota] não é propositada, tirando o rasgadinho, que aprendi num vídeo do Youtube”. “A forma como a Mariana escreve e toca tem qualquer coisa de Minho, mas não é só lenços e filigranas”, reflete Éme. “São sensações, como a alegria específica do Minho.” O cavaquinho marca a entrada em “Não é o que parece”, mais um exemplo dos dois a pegar em instrumentos na expectativa de espalharem-se ao comprido:

“Tocar mal e cantar mal é que é bonito
que o erro vem do imprevisto
e é isso que se quer
Pego na flauta e desafino”

Se o António Variações estava entre Braga e Nova Iorque, Éme e Moxila estão entre Braga e o centro de Lisboa, ecossistema de Éme, trovador da Graça ao Cais do Sodré, de Roma à Sé, um dos responsáveis, à boleia de B Fachada e outros que tais, pela reinterpretação lisboeta da música popular portuguesa, das baladas ao canto de intervenção. Contudo, neste seu terceiro álbum de originais, há uma distinção gritante: uma aparente abstenção política. “Não é que as canções não sejam políticas, têm é mais nuance e podem ser lidas politicamente”, defende o cantor que escreveu em 2017 os seguintes versos: “De barriga vazia/ Não há quem consiga/ Ganhar corridas para o pão”. “Sempre quis criar o máximo de significados com palavras e diálogos mais banais possíveis”, diz-nos sobre a sua recente mudança temática, que o permite discorrer de façanhas tão rotineiras como ouvir um podcast e passear um cão. “A mensagem não é uma coisa muito importante. É bom que as músicas tenham coisas lá dentro que as pessoas aproveitem, riem ou chorem, mas passar mensagens não é uma função da nossa música”.

“Faço o pequeno almoço,
fazes tu se eu não posso,
arranjamos sempre tempo.
Mas quando eu penso imenso
no clímax fico tenso,
às vezes até estraga o momento.
Dantes ia ao site do IPMA ver o tempo,
coisa que hoje em dia dispenso”

O manto da viola é um aconchego que acalma as ânsias de namoro. O mote de “Relaxado” é a serenidade, este casal está sobremaneira relaxado, sem disposição para afinar as vozes ou resolver dissonâncias. O caos moderado corre à feição das restantes edições da Cafetra, Éme e Moxila é de uma displicência perturbadora, no limite do ridículo e banal; em contrapartida, nunca é ridículo, muito menos banal. O álbum caseiro gravado durante a pandemia, com produção de Primeira Dama, é o culminar de uma década de canções de Éme. Em parceria com Moxila, o cantautor lisboeta concebeu enfim uma canção para chamar de sua, deslumbrado com o quotidiano, o ato de sair de casa, de colocar um pé atrás do outro, é pretejado de simbolismo:

“Chegado aos homens do telhado,
que ainda lá estão a trabalhar,
desço as escadas desalinhadas,
que me obrigam a andar
com consciência dos meus passos,
como quem força o respirar.”

“A solução é ir fazendo e ir falhando. Até não falhar assim tanto”, conclui Éme. “Ou até os falhanços todos juntos darem em qualquer coisa”, remata Moxila

Neste presente pós-pandémico, há tema mais pertinente que o nosso reencontro com a rua? A esta altura do campeonato, a mera existência é um triunfo, nada que assuste quem subsiste da música independente há mais de dez anos, com uma editora fundada em plena crise económica. “Um dos maiores méritos da Cafetra é existir. Quase tudo que começou na altura já acabou e nós continuamos como sempre. Parece-me um feito incrível ainda existirmos”, garante-nos Éme, que se estreou na edição dos discos em 2011, com o EP Passa-se Alguma Coisa Estranha Aqui. “Mas para continuarmos, tivemos que avançar, renovar a forma”, acrescenta, e justiça lhes seja feita, de Éme a Maria Reis, a Cafetra é um núcleo duro de amigos que continua a aprimorar esta arte de fazer canções. “A nossa ideia era sempre que surgissem outras editoras que pegassem na mesma coisa, e ainda fizessem melhor que nós. Ainda continua a ser o nosso objetivo.”

O objetivo altruísta desta editora comunitária ainda não foi cumprido. E voltamos ao início desta conversa, à sucessão de fracassos que suplantam as vitórias, os falhanços que abrem caminho. “A solução é ir fazendo e ir falhando. Até não falhar assim tanto”, conclui Éme. “Ou até os falhanços todos juntos darem em qualquer coisa”, remata Moxila. Estes dois zeros à esquerda prometem continuar a malograr qualquer expectativa, com concertos marcados dia 1 de abril na Casa da Cultura de Setúbal, e 12 de abril no Musicbox em Lisboa. Ninguém lhes diga nada que podem ficar convencidos, mas a dupla artística Éme e Moxila é uma vitória retumbante. Afinal, já cantava Tom Petty, até os falhados têm sorte.

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