Numa quarta-feira veranil, fico alguns minutos parado a contemplar a doca de Tróia, onde duas senhoras se atarefam a limpar barcos alheios, impedindo que o tempo e o estuário do Sado lhes corroam o fausto.
Dali, sigo para o casino, onde o Daniel Ferreira e o Francisco Kikuxo Fernandez (dois antigos profissionais do poker que agora trabalham ora como coaches, ora na organização destes torneios) me introduzem à etapa nacional do Vamos Poker Tour.
Entro no recinto onde decorre a competição de warm up, a primeira das cinco que compõem este torneio de seis dias. Os écrans gigantes informam-me de que esta sessão conta já com noventa e três participantes, que tiveram de investir cento e setenta e cinco euros à cabeça para participar. Admitindo a minha inexistente sabedoria sobre o tema, fico rapidamente a saber que se trata de um valor substancialmente inferior ao preço de entrada de outras sessões do mesmo dia (o torneio high-roller de mais logo terá um buy-in de setecentos euros) e a milhas de distância dos números exigidos em alguns dos eventos do World Poker Tour (a Liga dos Campeões desta modalidade), que chega a ascender aos duzentos e cinquenta mil dólares.
Regressemos à realidade de Tróia: o prémio para o vencedor rondará os quatro mil euros, explicam-me, uma quantia ainda insuficiente para atrair os nomes grandes deste desporto. Assim, por estes dias, estarão em volta daquelas mesas jogadores de poker vindos sobretudo da Península Ibérica, mas também alguns brasileiros e ingleses — surpreendentemente (ou talvez não), três canadianos marcam presença, os mesmos que aproveitam o bom tempo português para umas curtas férias a meio da temporada.
Passeio pelas seis mesas de jogo em atividade neste momento, mas depressa percebo que os meus rudimentares conhecimentos acerca do poker, a ignorância face a elementos fundamentais desta vida como a tensão competitiva e o secretismo de jogadores (muitos deles de óculos de sol, boné e headphones nos ouvidos), me impedirão de compreender grande parte do que ali acontece. Aliás, interromper jogadores no que me parece ser um processo de alguma transcendência interior ameaça ser o resultado do cruzamento entre uma ilegalidade e algo muito perigoso. Pelo que decido entrevistar os derrotados que, com um ar sereno e indiferente, vão abandonando as mesas.
Afasto-me e percorro os corredores — a esta hora praticamente vazios — com vista para o mar das máquinas de jogo. Paro em frente à janela, de onde vejo os barcos que há pouco eram lavados e uma família a regressar da praia para o hotel. Junto ao centro de acreditação, encontro Rhonda Shepek, uma das canadianas participantes no torneio e a única mulher em prova, que acaba de ser eliminada.
Sentamo-nos na zona do lounge, a poucos metros do bar, e ouço a história de vida que tem para contar. Rhonda é uma contabilista reformada que viaja pelo mundo em busca de torneios deste género, na companhia de Dominick French, o seu marido e ex-jogador profissional. Ambos colecionam as bandeiras que o site The Hendon Mob — grupo de quatro jogadores londrinos que, além de outras atividades, têm a maior base de dados de poker do mundo, ficam a saber, como eu também fiquei — atribui aos vencedores de prémios monetários nos mais diferentes países. Rhonda e Dominick chegaram ontem a Portugal, depois de visitarem sete cidades europeias em seis semanas. Tróia é o destino final de Rhonda, que depois regressará ao Canadá para passar algum tempo com a neta recém-nascida. Diz que nunca imaginou gostar tanto da reforma e que todos os dias acorda a achar que está a viver um sonho, por poder viajar pelo mundo a fazer o que mais gosta.
Quando a interrogo acerca do seu interesse no poker, Rhonda fala-me do frio canadiano, que levava a que os serões em família fossem passados ao pé da lareira, a jogar às cartas. Essas memórias, associadas à paixão pelos números, ao amor por Dominick e ao interesse em conhecer o mundo, através de pequenas excursões que nunca deixa de documentar no Facebook, fizeram com que, em 2019, se apaixonasse definitivamente pelo poker, ao ponto de no dia anterior, depois de aterrar em Lisboa às seis da manhã, ter passado sete horas seguidas no casino, de onde só saiu à uma da manhã.
A seguir, fala-me dos vários episódios de misoginia de que foi vítima nas mesas de jogo, onde já lhe disseram que em vez de jogar deveria estar a servir bebidas aos participantes. Rhonda encara isso com tristeza, mas explica-me que tem sabido usar os preconceitos destes homens, convencendo-os de que a sua condição feminina a torna inapta para este jogo, o que por sua vez aumenta a confiança dos rivais, que assim caminham alegremente para a ruína.
Regresso ao recinto, agora ligeiramente mais composto. Numa das mesas, o marido de Rhonda, com um chapéu de Bratislava, vai acumulando fichas. Na outra ponta da mesa, há um ligeiro desentendimento entre dois jogadores. Um rapaz de trinta e poucos anos acusa um outro, com sotaque portuense, de o ter desrespeitado ao dizer que na última mão tivera mais sorte do que juízo, concluindo essa sentença com o equivalente nortenho de “pá”. O dealer parece ignorar o que se está a passar, o que contribui para serenar os ânimos — ou então é uma técnica apurada ao longo de centenas de mesas.
O incidente resolve-se de forma rápida e pacífica e regresso ao lounge, onde encontro agora Jorge Chino, um madrileno rechonchudo de trinta e três anos, de chapéu e colares de ouro, que se prepara para entrar numa competição satélite de acesso ao evento principal.
Chino começou a jogar poker aos dezoito anos. Sempre gostara de tute, uma variação ítalo-espanhola deste desporto, mas assim que a televisão passou a transmitir o European Poker Tour percebeu que encontrara a sua vocação. Apesar de garantir ter ganhado treze mil euros no primeiro torneio, em que entrou com apenas com dez euros, explica que a princípio não foi fácil convencer os pais a aceitarem a sua escolha. Foi educado num colégio privado e a mãe era uma católica devota, que não via com bons olhos que o filho se dedicasse a jogos de sorte. As coisas só acalmariam anos mais tarde, quando o irmão, que trabalha como correspondente do El Mundo em Washington, disse à mãe que os seus colegas do diário desportivo Marca garantiam que o benjamim da família era talentoso.
Ainda assim, Chino lamenta que o poker continue a ser jogado em casinos, o que, defende, contribui para o estigma e preconceito em redor do jogo. Esta ideia seria reforçada poucos minutos depois por José Ramos um motorista de TVDE residente em Lisboa que participa mensalmente em torneios ibéricos de poker e que me assegura nunca meter um cêntimo nas roletas. Começou em 2007, no primeiro torneio organizado pelo Casino Estoril, mas nunca viveu disso porque quando o poker começou a tornar-se popular já tinha trinta anos e uma família para ajudar a sustentar.
Tendo ouvido tudo isto, começo finalmente a simpatizar com este jogo peculiar, e não apenas por ser cada vez mais adepto de desportos que possa praticar enquanto bebo um copo de whiskey. No poker há uma sedutora ilusão de ordem que tentamos impor à aleatoriedade, para nela encontrarmos algum conforto, ora convencendo os outros de que o pouco que nos foi dado é mais do que suficiente para triunfarmos, ora fingindo que nada temos que nos ampare a queda.
No caminho de regresso, penso se aquilo que levou o José, o Chino e a Rhonda a apaixonarem-se pelo poker não será, mais coisa menos coisa, o mesmo que há quinze anos me seduz tanto na literatura. Ainda assim, ao contrário deles, não me ofende a certeza de que tenho mais sorte do que juízo.