Se o relatório do Tribunal de Contas fosse um filme, o título escolhido tinha de trazer um alerta de spoiler: “Ensino à distância e digitalização nas escolas durante a pandemia: Uma resposta rápida e adaptada à pandemia, mas limitada pela insuficiência de competências e meios digitais a requerer investimentos.” Em poucas palavras, as escolas foram rápidas, mas faltaram computadores e nem alunos nem professores tinham competências para fazer as aulas via zoom funcionar a 100%. Mais investimento, precisa-se.
O documento do Tribunal de Contas (TdC) é o carimbo de validação às muitas críticas que foram sendo feitas ao Governo nos últimos dois anos letivos: os computadores prometidos por António Costa para os 1,2 milhões de alunos do ensino obrigatório foram comprados com atraso, ficaram dependentes de fundos comunitários e não chegaram a tempo e horas. Mais de metade deles, cerca de 60%, só chegarão às mãos dos estudantes no próximo ano letivo, alerta o TdC, depois de as escolas já terem vivido dois anos consecutivos a ter de recorrer ao ensino à distância (E@D).
Apesar disso, o tribunal reconhece que perante o surgimento inesperado da pandemia de Covid-19, a resposta dada pelas escolas e pela tutela — ajudadas por juntas, câmaras e empresas privadas —, foi rápida, implicou o esforço de todos e permitiu manter viva a relação entre alunos e professores. Portugal foi também, segundo o documento que cita a OCDE, um dos países que mais meios procurou para tentar chegar a todos os alunos, até àqueles que são apelidados de “desligados”, ou seja, sem acesso a meios digitais e internet.
Um computador por aluno já em setembro? Promessa de António Costa será difícil de cumprir
“Sem surpresa, o E@D enfrentou obstáculos, sobretudo com o défice de meios digitais, que embora mitigados não foram solucionados”, escrevem os relatores do TdC, deixando a advertência de que este problema está longe de estar resolvido.
O documento do Tribunal de Contas — que examina se o Governo garantiu que todos tiveram acesso ao E@D, foram acompanhados e se as deficiências detetadas foram corrigidas — pode ser consultado aqui, na íntegra.
Em 10 anos, as escolas ficaram com menos computadores
A falta de computadores começa nas escolas e acaba em casa dos alunos. Em 10 anos, sustenta o Tribunal de Contas, Portugal retrocedeu de 1 computador por cada 2 alunos para apenas 1 para cada 5. Em relação à ligação à internet, o cenário melhorou, apesar de não ser o ideal e, no ano letivo 2017/18, havia 1 computador ligado à internet por cada 5 alunos. Dez anos antes, em 2008, com o Plano Tecnológico da Educação no terreno, a relação era de 1 para 224.
“As escolas confrontaram-se com computadores obsoletos, sem ligação apropriada à internet e sem utilização generalizada de plataformas digitais, mas o Governo só autorizou a aquisição já no final do ano letivo”, lê-se no relatório. Cerca de metade das escolas não utilizava plataformas digitais antes da pandemia.
A somar à falta de equipamentos, o TdC lembra que, em 2019, “Portugal não constava entre os países europeus com estratégias de educação digital”. O problema? Quando se avançou para as aulas online, este era um terreno desconhecido para quase todos na comunidade educativa. Para além disso, alerta-se na auditoria, faltavam políticas que comportassem o compromisso de investimento nas escolas em infraestruturas de tecnologia digital — isto porque o E@D depende do acesso individual a um computador, mas também de plataformas potentes de apoio ao ensino online.
O problema seguinte é detetado em casa dos alunos, já que em quase um quinto das casas portuguesas (19%) não há acesso à internet, a principal forma de ter acesso às aulas durante o ensino à distância. Em contrapartida, em 2019, 81% dos agregados familiares tinham acesso à internet em casa, sendo este acesso mais frequente nas famílias com crianças até aos 15 anos (94,5%), mas é um valor que, apesar de crescente, está abaixo da média da UE.
“Quanto aos alunos, embora a maioria possuísse meios digitais, ainda que partilhados com o agregado familiar, houve aqueles sem esses meios aos quais o Ministério da Educação não deu resposta, tendo as autarquias locais, associações e entidades privadas, solidariamente, procurado minimizar o problema”. Mas, mesmo assim, subsistiram alunos que não participaram nas aulas online por não possuírem os meios apropriados, lê-se no relatório.
Novo equipamento tardou em chegar aos alunos
E é nesta tecla que o documento do TdC carrega uma e outra vez. Se, por um lado, o relatório dá conta da rapidez de transição para o digital — ministério, escolas e professores, sem experiência e no espaço de um fim-de-semana, implementaram o E@D em todos os anos de escolaridade —, por outro, relata a lentidão em adquirir computadores, lembrando as datas desta cronologia.
A suspensão do regime de ensino presencial foi decretada numa sexta-feira, 13 de março de 2020, e as atividades online arrancaram na segunda-feira seguinte, 16 de março, “uma ação reativa a um contexto único, nunca antes perspetivado”. Mas foi no final desse mesmo ano letivo, em julho de 2020, no âmbito do Plano de Ação para a Transição Digital e do Programa de Estabilização Económica e Social, que foi autorizada a compra dos meios digitais.
O TdC acrescenta que, por outro lado, a verba de 386 milhões de euros ficou condicionada à aprovação de fundos comunitários. A consequência (aliada a uma falta deste produto nos mercados internacionais) foi a de que os computadores só começaram a chegar aos alunos no ano letivo seguinte (2020/21) e mais de 60% do equipamento só chegará em 2021/22.
A este cenário, e a retirar ainda mais eficácia ao ensino online, somou-se outro detalhe: 48% da população portuguesa entre os 25 e os 64 anos não concluiu o secundário. Numa altura em que os alunos dependiam do apoio familiar para o estudo, devido à sua fraca autonomia e às falhas na literacia digital, a falta de habilitações literárias dos pais condicionou o seu acompanhamento em casa.
“Como expectável, o E@D teve um impacto negativo nas aprendizagens, acentuou as desigualdades, em especial junto dos alunos sem meios digitais e com maiores fragilidades, e perspetivam-se prejuízos para o futuro.” No relatório, prevê-se que só o encerramento das escolas em 2020 possa causar uma perda de mais de 212 mil milhões de euros de PIB ao longo do século.
A falta de meios digitais dos alunos foi a principal dificuldade sentida pelos professores que, segundo o relatório, não interagiam, em média, com dois alunos por turma. O nível socioeconómico das famílias foi a explicação para a fraca participação nas aulas online.
As insuficiências do lado dos professores também foram detetadas: ter de dividir os meios digitais próprios para dar aulas à distância com o resto do agregado familiar; deficiente ligação à internet em algumas zonas do país e pagamento das despesas com dados móveis para lecionar à distância. Acresce a falta de literacia digital de muitos professores e a ausência de conhecimento de práticas pedagógicas para proceder com eficácia ao ensino online.
A falta de formação digital dos professores é um problema que os próprios assumiram ao longo da pandemia e que foi recentemente diagnosticado num estudo do Conselho Nacional de Educação.
Cumprir programas com ensino à distância foi pouco eficaz para 78% dos professores
Quanto à ginástica familiar para dividir equipamentos, não foi única dos professores. O relatório frisa que o ensino à distância gerou pressão sobre as famílias já que os meios digitais disponíveis passaram a ter de satisfazer as necessidades de trabalho, de teletrabalho, e as dos alunos.
As recomendações: prevenir a substituição dos novos computadores
Nos conselhos que deixa ao Governo, o Tribunal de Contas é bastante claro: para evitar erros do passado, levando as escolas a, em breve, terem equipamento obsoleto nas mãos, deve ser previsto, desde já, um programa de substituição de computadores e tablets.
“Estima-se que a vida útil dos meios digitais seja de 3 anos pelo que, prevenindo um desinvestimento semelhante ao da última década, é crítico um plano estratégico para a necessária substituição”, defendem os relatores do documento.
Apesar disso, deixam o alerta: não existe, até à data, um plano para a sua substituição nem controlos preventivos da duplicação de apoios — uma vez que alguns alunos podiam estar a receber equipamentos de várias frentes — que acautelem uma gestão pública eficiente.
Por último, fica uma nota sobre os custos da pandemia. As despesas orçamentais da Educação diretamente relacionadas com a pandemia totalizaram cerca de 3,5 milhões de euros justificadas pela compra de equipamento de proteção individual para alunos, professores e outro pessoal. “Todavia, as despesas vão muito além daquele montante e das circunscritas ao ministério, uma vez que houve relevantes contribuições da RTP e da Fundação Calouste Gulbenkian (emissão do #EstudoEmCasa), da Segurança Social (apoios sociais) e de diversas entidades privadas.”
Só as autarquias locais adquiriram meios digitais para apoio ao ensino à distância no montante de, pelo menos, 4 milhões de euros.